Outro Mundo... Cap. 24


 



Continuavam as lembranças, que se plasmavam. O sol à pino. Todas as coisas tinham, todas as coisas estavam, à séculos de luz, vermelho alaranjado. O que não estava assim estava puxando pra amarelo, literalmente. O que não era assim, ia pra era do fogo, de sol. E tudo o que restara era estrada. Estrada de barro, cercada de sol. E de arame farpado, de um lado e do outro. Só a frente, e o que ficou pra trás, livre estava. Pra quem quisesse, ir e vir. Não correndo, claro. Pois ninguém era doido sair correndo debaixo dum sol quente, daqueles! As estacas tortas, secas, desprezadamente secas! Cansadas, de ficarem debaixo daquele calorão! E ficavam, sem reclamar tantinho assim! Tristemente cumpriam o papel de cerca, resignadamente cerca, seca. As casas, teve delas que simplesmente morreram. Outras, foram embora. Permanecer ali, não era pra qualquer um não.  Aguentar o que aguentavam. As que conseguiram fugir, fugiram.  Negar um copo d’água a um cristão, isso não... Se alguém pedisse mostrar-lhe-ia o caminho do açude. O açude coitado, a muito que também morrera. Foi minguando, minguando. Até ficar esturricado. Sua pele, suas mãos, viraram esqueleto. Carcaça de açude. Açude de água leitosa. Água salobra, água que a “orelha de burro” inutilmente tentou esconder.

Uma menina. Ó que visão tão bela! Aquela cena para sempre ficaria, flutuando dentro de sua mente. Toda vez quando ia dormir a via. E permitia que voasse por dentro dos seus pensamentos. Tão à vontade, feito inquilino folgado. Pra lá, e pra cá. Pediu a Deus que a livrasse, do seu mau olhado. Pediu que a livrasse do pensamento pecaminoso. Pediu que a mantivesse pura. Permanecesse, e que sempre a visse naquele estado de inefável contentamento. E assim seria, todas as vezes que lembrava da menina. Estava vestida num vestido de renda estampado, que ia até perto do joelho. Escondia as pernas, bem torneadas, da menina morena. Na estrada, logo atrás, andando de bicicleta, vinha-lhe o anjo da guarda. Pedalou um pouco mais, e passou adiante. Na verdade, transpassou por dentro da menina, que sequer o sentiu. O anjo tinha cara de Junior. Cara de menino levado, travesso. De bermuda, chinela de dedo, camiseta regata. A menina com seu cabelão negro, escorrido. Preso por duas presilhas, por trás das orelhas. Os olhos castanho escuro sofriam de tanta luz. Combinava com a cor de sua pele. Os lábios de menina, que se já não fosse, logo, logo, seria, moça.

Havia um dinossauro lá. Se fosse qualquer um que contasse essa história, dificilmente alguém acreditaria. Só acreditava mesmo pois estava, com os próprios olhos, vendo o que via. Uma menina muito bela, com aquelas características, que por si só já era uma visão fantástica! Vê-la se dirigindo a um vale onde havia um dinossauro, algo simplesmente inverossímil! Havia um parque de escavações de fósseis pré-histórico, encravado ali. A menina tinha uma sombrinha, cujas cores combinavam com o vestido. E ia, tranquila, debaixo do sol causticante. Tranquila até demais. Andava como quem desfilava numa passarela. A sensação era de quarenta e poucos graus centígrados. A sombrinha, a dar-lhe ainda mais graça e beleza. A realçar as cores do tecido, da sua pele, e do cabelo. Os braços longos e graciosos. Um, estava dobrado até o colo, e segurava a haste da sombrinha, o outro estendido ao longo do corpo, segurava um pequena valise. O senhor Djalma reconheceu aquela valise, como sendo parecida com uma de sua mãe. Daquelas cujo trinco, se constitui de duas bolinhas de ferro que ao se cruzarem fecham a bolsa. Para abrir era só forçar as bolinhas no sentido contrário. Um súbito pensamento lhe veio, mas imediatamente descartou. Não, não poderia ser! Àquela menina jamais seria sua mãe.

O menino pareceu ser o anjo da guarda da menina, mas não era. Primeiro, porque anjos da guarda, dificilmente teriam problemas com espinhas, no rosto. E nos seios da face, daquele ali, se lhes criaram umas saliências, que o tornava ainda mais sapeca. Aparentava ter seus dez anos de idade. O menino, que não era o anjo, disse bem assim: “Hoje, eu vou pra casa do meu pai!” Essa frase, lhe saiu assim leve, brincalhona, de lá dentro do seu coração, andador de bicicleta. A menina não o ouvia, estavam em dimensões distintas. Acendia o garoto, o que já estava aceso, um sentimento de afeição muito forte, pelo pai. Deu pra sentir, ao ouvi-lo falar! Deu pra sentir quanta emoção havia, naquela frase dita! A euforia brincando dentro de sua alma. Pra entender o que se passava na mente daquele menino, de dez anos. Era preciso compreender que o amava muito. E que não via o pai, a meses. Haviam motivos vário, morava com a mãe, em outra cidade, distante. A separação, ocorrera de forma brusca, abrupta, dolorida, inesperada. O menino tinha só quatro anos. Foi uma barra! Ninguém perguntou, o que achava? Se queria que fosse assim? Ninguém, pra perguntar se não tinha outra maneira de resolver aquela situação!  Simplesmente aconteceu, e pronto. Engolir em seco, aceitar. Era a lei do: “Fazer o que? É assim, e pronto!” Se o pai, soubesse o quanto o amava. Talvez o amasse com mais amor. Se entendessem que quando a velhice chegasse, talvez fosse àquele que iria cuidar dele. Amaria com muito mais amor.  

O que aquela casa estaria fazendo ali, perdida no meio do deserto? Resolveu ir até lá. Não parecia abandonada, dava pra sentir que havia almas de pessoas vivas por perto. Ao se aproximar do alpendre, a saudação: Ô de casa? E de lá dentro: Ô de fora! Era voz de uma senhora. Continuou: Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo! E logo veio a resposta: Para sempre seja louvado! Uma idosa, veio vindo lentamente, feito felino quando vai a caça. Trajava um vestido longo, de estampa verde com flores vermelhas, um lenço amarrado na cabeça. Rosto sofrido, queimando do sol, enrrugado. O moço Djalma fez-lhe um pedido: A senhora, poderia me dá um copo d’água?  A mulher desapareceu, engolida pelo escuro do interior da casa. Voltou com uma quartinha cheia. A água fria, dava ao barro, cor de molhado! A água que verteu pro caneco de alumínio, água Leitosa, mas fria! De barreiro, mas fria! Barrenta, mas fria! Caneco na mão, e mais uma pergunta: A senhora conhece aquela menina? Conheço...

30 de outubro de 2020.

Foto de ilustração, a cantora Paula Toller, da Banda Kid Abelha. Menina, mulher.


De Noite na Alma... Cap.23



Havia uma multidão, de gente. Animação esfuziante a encher o paço, enfeitado e colorido. Postes cravados de panfletos, lambuzados de uma cola de goma fresca, feita de farinha e água. Faixas de tecido branco, esticadas com barbante, cheias de nomes berrantes, e números extravagantes. O palanque, lastro de caminhão. A boca de autofalante, entre voz e zumbidos, apregoando inflamados discursos dos personagens públicas. Ovacionados a cada palavra, a discorrerem sobre as riquezas daquela terra. A bravura e a coragem daquele povo. A proclamarem em prosa e verso. O pescador, o tirador de coco que estavam lá. O coqueiral, de lá do alto, por trás das singelas choupanas apenas observava. Mudo, porém atento. Protegido pela escuridão, atentamente escutava. Tristemente sabia que tudo aquilo, não passava de falsa falação. Palavras engomadinhas, rodeadas de rendinha de filó. E que o vento levaria, pra bem longe dali. No alto-mar, ia se afogar, quem sabe, pra nunca mais voltar. Enquanto isso lá no alto! Bem alto, muito a cima das cabeças, dos pensamentos, da poeira levantada dos pés. O fantasma de breu, com seu lençol estampado de estrelas, com um olho espreitava os homens, o outro acudia o vale.  As mãos negras, uma afagava o mar, a outra sacudia o burburinho pra bem longe. E as falas saiam voando, viravam ecos, e iam voando, até morrer pregada, lá na cruz do farol. Três décadas haviam se passado, desde que o senhor Djalma, ainda moço, conseguira escapar de uma surra. Não uma surra qualquer, mas um linchamento, do qual poderia sair morto, e somente em espírito aqui viria, nos contar. 

Havia comparsas, espalhados pra todos os lados. Misturados no meio do povaréu. O comício se desdobrava. Acirravam-se os ânimos, muita balbúrdia. Ninguém se enganasse, o estopim estava no ponto. Pronto pra incendiar. Aguardava alguém louco o suficiente, pra acender o fósforo. Palavras de comando, provocações, insinuações vinham da turba. Gritos de ordem pra qualquer um dos candidatos que dissesse um A. Pregação entupida de adjetivos de encher ouvidos. Inflamados corações, decididos estavam. Enquanto os não simpatizantes, a rangerem os dentes. Esbugalhavam de insatisfação os olhos. Resmungos saiam de suas bocas. Entre dentes, um impropério escapou. E foi cair desgraçadamente nos ouvidos de um, muito atento, adversário. Teria ouvido muito bem, quando o jovem Djalma comentou com um colega, que aquilo tudo não passava de uma tremenda palhaçada! Ao que se chamava de palhaçada, para os fiéis seguidores era afronta! Jamais aceitariam, levar pra casa, tamanho desaforo! A charanga emudeceu. As vozes das cuícas e tamborins silenciaram. Alguém ia ter que pagar, por tão grave ofensa aos candidatos! Só podia ser intriga da oposição. O litro de cachaça, como em câmara lenta, foi passando de mão em mão.

A falta de cafeína causava-lhe ânsia de vômito. Sentia tontura, e todos os ossos do corpo doíam. As articulações parecia que iam todas saltar para fora do lugar, tanta era a dor. Precisava de um gole de café. Era questão de vida ou morte. O ar fugia dos pulmões. Morria por asfixia? Para onde fora o ar? Dentro da cela, delirava. Tomaria um pouco de sua própria urina, como se fosse café. Talvez conseguisse aliviar a pressão, a garganta. Pensou na casa da avó, a chaleira fervendo no fogão à lenha. Dava até pra sentir no rosto, o calor do fogo. Estava era queimando de febre. A escuridão da cela ajudava, dando ainda mais imaginação às suas asas. O cheiro forte de urina, e do mofo das paredes, a náusea.  A força da imaginação, alucinações, convertia os maus odores, em suave aroma de café de caco com rapadura, de sua avó. O fantástico poder da mente. Era só querer, e ele queria. Os olhos fechados. Pôs o nariz dentro de um velho livro. E logo ali, na sua frente, uma cesta, cheia de pães, coberto com raspas de coco. Lá fora, um frio Enquanto ali, um pouco de neve, caindo devagar nas costas da mão. Suavemente cheirando tão bom, um pouco de doce. Um pouco de noite, servindo de cobertor a escuridão. Suavemente foi apagando, apagando.   

Um dos irmãos mais velho, do senhor Djalma, gostava muito de animais, em especial os de estimação, mais precisamente de cães. A irmã da cunhada, ia mudar-se naquela semana. Ponderou que sua cadela de seis meses de idade chamada Lili, não poderia levá-la. Tinha que deixar com alguém. O irmão do cunhado, que era o moço Djalma, de muito bom grado, aceitou ficar com a cadela. Enjeitada por motivo de mudança. A viagem longa e cansativa, não dava outra opção. Não tinha como a levar, de jeito nenhum. Com o coração partido, a cunhada partiria, deixando a fiel amiga. Temia que não suportasse e morresse no caminho. Optou por doar. Desde que o novo dono, tomasse muito cuidado com ela. E teve ele que fazer, pela primeira vez, uma promessa de verdade. Prometeu, cuidaria do animal mais do que dele próprio. Lili teve que aprender a dormir no quintal. Foi sofrimento, pra tirar o costume de dormir dentro de casa. E mais novo dono, novo nome lhe deu: Amora.   

O fio de suor gelado, descia pelo canto do rosto. Imponentemente ia cumprindo sua missão, de lavar a alma. Imitando a lágrima, no gosto, na cor. Tudo escuro. Ainda havia esperança de sair dali, vivo. Os ratos, andavam, e andavam num grunhido de dar nos nervos! E vinham até seus pés. As orelhas em pé, cheirando tudo, cheiravam seus pés. A repulsa fazia-o contrair ao máximo que podia os dedos, doídos. Forças não tinha pra sair do lugar. A alma ia, e ficava sozinho. A carne. colada ao encardido paredão, da cela. Riscos, riscos, o que queriam dizer? Fosse lá o que fosse, nada lhe diziam. Jamais os lera. Quem se importava com eles? Ele, Leviatã. Tinha pressa, avidamente aguardava suas condenadas almas saírem deles. Sebosas almas.

Já havia se passado, mais de quarenta anos, desde o roubo da primeira cadela do irmão do senhor Djalma. O pequeno pet, ele ganhara de presente, do filho do dono da sorveteria Central. Uma cadela, da raça pastor alemão. Tinha só seis meses quando foi dada de presente. Junto com a maturidade dela, viria também a necessidade de sair pra namorar, ter parceiros sexuais. Quando estava no cio, sujava as roupas no varal, rasgava o saco de ração, corria atrás dos gatos e passarinhos. Era o maior alvoroço. Toda tarde tinha a obrigação de levá-la pra passear. Num desses passeios, precisou deixá-la, por alguns instantes na casa da sua mãe. Prendeu-a pela corrente num pé de crote, no jardim. Ao voltar pra pegá-la, havia desaparecido. Desde então, nunca mais soube o paradeiro de Samanta.

O moço Djalma, estava a ponto de levar uma surra! Uma surra que se caso escapasse, nunca, jamais esqueceria! Na verdade seria um linchamento. O bate-boca saturou o ar atmosférico de álcool etílico. Das entranhas lançado no ar, faltando pouco pra explodir! Faltava alguém que acendesse um palito de fósforo. O indicador balançava freneticamente apontado para seu rosto: “Eu ouvi! Você disse! Você disse, que o candidato era um palhaço!” Negou que tivesse dito. Na verdade, dissera, só que de outra forma, que aquele comício era uma tremenda palhaçada. Na tradução do ódio, ficava o dito, pelo não dito.

O primeiro soco, projetado, continuava no punho cerrado. As palavras parada no ar, prontas para calar. O argumento mais forte, e também mais contundente prontíssimo para entrar em ação. O primeiro murro. O filho do senhor Belo, de lá longe observava tudo. Viu todo o desenrolar da contenda. Aproximou-se, com a autoridade que a farda, e a patente militar o revestia, interveio. Pegou o moço Djalma pela gola da camisa. E deu-lhe voz de prisão, por provocar arruaça em plena via pública. A ponto de causar revolta, entre os simpatizantes de um grupo político. Na condição de detido teve que acompanhar o policial. Naquele momento revoltou-se. Oh! Que pena, não soube avaliar. Foi preciso trinta anos, para descobrir. Dentre os que fazem a legião de Gabriel, um interferiu. Para que naquele pedaço de noite, um esboço de gente não morresse, espancado.

24 de outubro, de 2020. 

Ilustração: Mais uma foto, da capa do disco de vinil da Banda Kid Abelha[1985]...

 

Porta de Cadeia Cap. 22


 



Senhor Djalma tentava rememorar, ocasião que tivera que ir à delegacia de polícia. E por qual motivo tivera que estar lá. Lembrou, a primeira vez. Foi barra pesada!  Ocorreu ainda na infância. Tivera que levar a refeição de um irmão, que se encontrava detido, por envolver-se em uma briga, em via pública. A briga, teria o corrido entre o irmão e seu pai. Se iniciou dentro de casa, teve continuidade na rua, e terminou com a detenção. Por uma semana, teve que ir a cadeia, levar a principal refeição. O almoço, que não era fornecido pela instituição. Lembrava nitidamente de cada detalhe. Do zelo, com que sua mãe preparava a marmita, sempre colocava alguma fruta. Como era dos mais velhos, entre os irmãos em casa, cabia-lhe ter que levar. O percurso era pequeno, por diversas vezes o fez. A caminho, pensara: quando crescesse, a profissão que queria ter era de carcereiro. Por que? Pra poder soltar todos os presos.

E como desejou, que chegasse logo, o dia da soltura do irmão. Cadeia, passaria a ser considerado ambiente hostil, pesado! Terrível portal!  Tudo ficara tão fortemente marcante. Negativamente, marcante. Tudo,  eternamente, na mente marcado. Os rostos, de poucos amigos dos policiais. O rosto de pura revolta, dos detentos. O semblante de angústia dos familiares, e visitantes, ali. A cara fechada de um policial, dali por diante, entenderia como sendo premissa pra função. Policial tinha que ser carrancudo. O olhar diferenciado, para com os que não eram militar. Discriminação nada velada. Com um familiar qualquer, de um detento: o julgamento, insinuações. A humilhação durante a revista. Gestos, e comandos autoritários. Tudo para deixar bem claro quem mandava, e quem era mandado, ali. Ao entrar num presídio, era preciso entender que o mundo real, ficara lá fora. A realidade ali, era outra. Mais cruel que lá fora.  Ali, se anulava a igualdade de direitos. Ao entrar na cadeia, qualquer um deixa imediatamente a condição de um ser comum. Passa, ainda que não queira, a condição de suspeito, culpado de alguma coisa, delinquente em potencial. Forte candidato a meliante. Até que se provasse o contrário, passa-se a um ser potencialmente nocivo a sociedade, para os que faziam a cadeia. Pretenso reeducando. Se apenas parente de um daqueles, ainda que não se considerasse assim, passaria a ser qualificado, e merecedor, dos mesmos tratos daqueles. Além da famigerada hierarquia militar, que impunha suas regras próprias.   

O roubo de um relógio de pulso, um par de sapatos e uma calça social. Esses pertences foram subtraídos do irmão do senhor Djalma. Teria sido esse, o segundo motivo que  o levou, também ainda infante, a ir novamente a delegacia. O pai o levou, no dia que foi registrar o boletim de ocorrência. E depôs nestes termos: “Aproveitando a calada da noite, sábado passado. O ladrão escalou o muro do quintal da minha vizinha. Subindo na cisterna alcançou a portinhola que dava acesso ao tanque d’água, do banheiro da minha casa. Andando por cima das paredes, passou até a sala de visita, onde meu filho estava dormindo no sofá. Desceu da parede. Roubou os pertences. E saiu fazendo o percurso inverso. Quero dizer que, eu tenho uma pessoa como suspeito do crime. Trata-se do caseiro do meu vizinho. Mora duas casas adiante, pelo lado esquerdo da mesma rua. A minha desconfiança recai sobre o caseiro do promotor de justiça. Digo isso porque não é a primeira vez, que se apropria de coisas dos outros. Basta olharem a ficha dele, vão ver nos arquivos, que é verdade o que digo. Por conta própria, busquei as evidências que levou-me a tal desconfiança. Fiz a reconstituição do percurso que ele teria feito. E encontrei uma camisa, um chaveiro e uma caneta, abandonados pelo ladrão, no fundo do quintal. Objetos que teria ele, descartado. Cabe agora a vocês intimá-lo, interrogá-lo, pra confirmar minhas suspeitas.”  

Senhor Saulo de Sales, criava uma ovelha no quintal. Cevava-a para o natal, que se aproximava. Jamais imaginaria que um dia seria roubada. Infelizmente foi o que ocorreu. Bela manhã de sábado. O sol, com seus magníficos raios, dando e vendendo no meio da feira. Esquentando as empanadas, avivando as cores das toldas coloridas. Senhor Sales, a esposa, e os dois filhos pequenos. Tranquilamente, misturados no meio do povo, faziam a feira do sábado. Alguns dias antes, Andrezinho um dos filhos de Saulo, de apenas nove anos, observava e achava bonito o bicho comendo. Sem limites, despejou meio saco de caroço de algodão pra ovelha. A coitada, ficou empanzinada! Tiveram que levá-la ao veterinário. Uma lavagem estomacal, e, tudo ficaria bem. Algo pior, no entanto, estava pra acontecer naquele sábado, o roubo da ovelha.

Ao detento recém integrado numa penitenciária, procedimentos bastante curiosos, ocorrem. O exame de corpo de delito. As fotografias da perícia técnica. Foto de corpo inteiro, de frente, de perfil, de costa, de busto. Fotos das particularidades, caso hajam. Tais como: tatuagens, cicatrizes, mutilações, anomalias genéticas, tudo que seja digno de registro. A arcada dentária, a impressão digital. Descrição: da cor dos olhos, cabelo, pele. A tabuleta pendurada ao peito indicará: data de nascimento, e data da prisão. Os pertences do detento, ficarão guardados, só serão devolvidos por ocasião de sua saída, se vivo. E entregues aos familiares se não vivo. No prontuário a descrição de comportamento, psíquico social do preso; e em que eventos se envolveu que o levou a prisão. Ganhará um número que o identificará.  A humilhante expurgação, passará por uma desinfecção, pra eliminar parasitas. A vestimenta de cores berrante, pra facilitar a localização, em caso de fuga. Se a vítima precisar identificar. É melhor que o faça protegido por espelho, para evitar constrangimentos, e futuras represálias por parte dos envolvidos. De tudo, o mais estranho: ter que raspar a cabeça.

Lá estava, a delegacia de polícia. Imenso bloco amarelado, de argamassa, tijolos esquadrinhado, esqueleto de vigas de ferro. Cerca de arame. Edificação solta, isolada, quadrada. Feito um gigantesco dado de jogos de azar. E que azar! Pra quem tinha que estar lá. Pra quem tinha que entrar lá dentro. Jamais se volta o mesmo.  Terrível portal! As poucas janelas, faziam a vez dos pontos negros do dado. Guarnecidas de barras de ferro, as do pavimento inferior. Com folhas de madeiras de lei, as do pavimento superior. Escassos detalhes chamavam a atenção na edificação: no frontispício o mastro com a bandeira brasileira hasteada; a escadaria de acesso a porta principal, o imponente letreiro anunciando: “Cadeia Pública”. Especial descrição, merece este último ponto. Devido ao modo como se apresentava: em letras pretas, gordas, que contrastavam com o fundo amarelo. O anúncio, por si só, impunha o devido respeito, ao prédio secular.

A mãe, do senhor Djalma. Em pé, encostada no umbral da porta de casa, soluçava baixinho. Um choro contido, no peito. Enquanto, via os longos cabelos do filho, cortado a faca peixeira, levado pelo vento. Os meninos da praça, brincavam com os cabelos do seu filho. O irmão do senhor Djalma, noutra briga se envolvera. Desta vez com um colega de ginásio. A polícia foi chamada. O cassetete cantou. Teve a cabeça raspada, no meio da rua mesmo. Igual ovelha tosquiada. Chutes de coturno nas costelas, pontapés no rosto, socos na boca. Algemas, uma corrente nos pés pra não correr. Jogado violentamente no lastro do camuflado Jeep, do exército brasileiro. A mãe, nada entendia. Por que tanta humilhação? O sangue ficou lá, ferindo o calçamento, até a chuva sangrar. Chuva, choro de Deus, se unindo ao choro de mãe.

17 de Outubro de 2020.  

Quarto Número 15 Capítulo 21

 



Senhor Djalma conseguia ver sua mãe, naquela velhinha, deitada num leito de hospital. Fisicamente não parecia, mesmo assim a reconhecia. Todos os dias sonhava com ela. E a via, às vezes, ainda muito jovem. Quando o sonho não vinha naturalmente, ele o forçava. Outro dia a encontrou, numa rua, e estava chovendo, era noite. Ela colocara a mão sobre seu braço, como fazem os casais. Estavam ambos, bem elegantes. Tinha como sendo sua mãe, porque no íntimo a sentia. Embora aquela senhora, não parecesse. Andaram por muitas ruas. A chuva torrencial lhes molhava os pés. A parte de baixo da calça dele encharcada. Os sapatos dela, de salto alto, molhados. Debaixo da chuva, belo casal. Com elegância desfilavam.  

Sabia, tinha que aproveitar. Pois talvez, nunca mais pudesse reviver aquele momento. Ela pediu que a deixasse num bazar. Era provável que fora ali comprar condimentos. Aproveitaria pra fazer uma fezinha no jogo do bicho. Não entendeu porque a deixou. E se corresse algum perigo? Precisava protegê-la. Arrependeu-se de tê-la deixado lá sozinha. Certa vez, contara-lhe que quando menina sua mãe, a avó do senhor Djalma, disse-lhe que sonhara com os tios numa contenda, uma briga feia. E teria dito: Hoje vou jogar no macaco, pois macaco é bicho encrenqueiro. E não é que acertou! A avó ganhou um bom dinheiro! Teria dado a sua mãe, dinheiro para realizar um sonho, tirar um retrato num estúdio, na casa do retratista. A mãe, porém, com vergonha não foi.

Com os condimentos que comprara. Tivera a intenção de fazer um caldo, para ambos tomar. Um dia de chuva, um caldo. Uma sopa revigorante, cairia bem. Lembrou de ocasião semelhante, estavam à mesa. Era noite. A luz da lâmpada amarelava todo o ambiente. Os rostos avermelhados. O fumo quente subindo dos pratos, aquecendo os rostos. Aguçando narinas. Era uma cena magnífica, um casal sentado à mesa, degustando uma prato quente, numa noite fria. Estavam bem agasalhados. Nada tinham pra falar. Nada, pra perguntar um pro outro. Curtiam o momento, e muito prazer sentiam nisso. O prazer de ser companhia, um pro outro.  O dia todo haviam passado juntos. Tudo o que tinham pra conversar conversaram durante o dia. Desde as primeiras horas da manhã. E as falas foram escasseando, ainda mais ao cair da tarde. Do que haviam falado? Logo cedo? Poderiam voltar, com um assunto já comentado. Falaram dos filhos, de como é complicado entender cada filho. Afinal, aquela senhora, fora mãe de vinte e um. Mais de duas dezenas de vezes, vivera a maternidade. E dizia, não existir um filho igual ao outro. Sobre gostar mais de um, do que de outro, era assunto complicado. Tinha plena consciência que era assim que funcionava. Cria que com todas as mães do mundo assim se sucedia. E até aceitava a teoria de que os filhos que davam mais trabalho, os mais encrenqueiros. Eram os que exerciam maior empatia a seu favor. Senhor Djalma tinha um certo trauma, sobre esse tema. Não se sentia muito à vontade pra debatê-lo. Talvez tivesse complexo de Édipo. Visto pelos demais irmãos, como aquele que não dera certo, na vida. O desleixado, o que nem estava nem aí, pra nada. O pé frio da família. Aquele que tudo que fazia, dava errado.

Hospital, ambiente inóspito. Mesmo que o nome tentasse dizer exatamente o contrário. Hospital, terra árida. Duma aridez estranha. O cheiro de formol, remetendo a instituto médico legal. O silêncio reinante, era em respeito aos mortos. Hospital, de corpos inertes, paredes branca, luz artificial, gente artificial, ar artificial. Algodão, injeção, gosto de sangue, palidez, olhos serrados, boca semiaberta, rigidez cadavérica, etiqueta no dedão do pé. Cobertores com logomarca, travesseiro com logomarca. Macas com rodinhas, deslizando, dizendo: flap-flap, a cada tapete de borracha vencido.  Corredores, túneis que traziam, e levavam a um lugar donde não havia ida, nem volta. Transpor o portal dum hospital, o caminhar para um lugar de onde não existe retorno. Lugar onde se entra vivo, e se sai, semi-vivente, ou nunca-mais-vivente.  

Três, são os modos de entrar num hospital. Andando com as próprias pernas. Sendo conduzido, sentado numa cadeira de rodas, ou deitado numa maca. Nestes últimos casos, são duas as opções: consciente, ou inconsciente. Senhor Djalma lembrou da despedida do senhor Jorge. Estava em casa, dormindo, já passava das três da madrugada, quando o compadre Jorge veio avisar, que estava indo embora.  O hospital distava de sua casa, uns 200 quilômetros. Sentiu alguém batendo levemente nas suas costas. Alguém que dizia: Compadre, compadre! Estou indo! Senhor Djalma de um pulo, sentou-se na cama. Se pôs a pensar. O compadre, com quem estava até brigado. Alguns dias antes dele se internar, os dois se desentenderam. E agora ele viera avisar que estava partindo. Achou que aquilo fora uma espécie de pedido de perdão. Teria compadre Jorge, dado uns tabefes na sua filha, por ter arengado com a prima, a filha dele. Pronto a briga estava feita entre os compadres. Infelizmente a doença se agravou, ele foi hospitalizado. Ficara na expectativa, não iria visitá-lo, afinal estavam brigados. Mas assim que recebesse alta. Prometera, iria procurá-lo, pra fazer as pazes. Tal oportunidade, nunca chegaria.

Dona Emerlinda encontrava-se deitada. No quarto número quinze. O tubo de oxigênio ia com dois pontos pra dentro do nariz. Os remédios a deixava sonolenta. O respaldo da cama levantado, a cabeça de cabelos brancos apoiada num imenso travesseiro. A enfermeira fazia seu trabalho, enquanto a escutava pacientemente. Aferiu-lhe a pressão arterial, mediu a glicemia. Perguntava se era hipertensa? Era. Se era diabética? Não era. Se tinha alergia a algum medicamento? Não tinha. O que significava aquelas ferimentos na perna? Foram os ferros de proteção da cama. Numa vez que foi ao banheiro, se feriu neles. Dona Emerlinda queria contar o que lhe ocorrera naquela noite. Um bicho muito feio viera lhe atormentar no seu quarto. Um homem com cabeça de bode, todo verde, como a pele dum camaleão, dentes e língua de serpente. Teria dito, que a sua hora teria chegado. E mandou que fizesse um exame de consciência, pra ver que caminho merecia seguir.  Subir para a luz, ou acompanhá-lo, até o vale das trevas? Mostrou alguns dos seus erros. Lembrou das intrigas de dona Emerlinda.  Intrigas, por problemas tão banais, e que duraram tanto tempo! Décadas! Explicou que aquilo era pecado, o pecado do orgulho! A entidade julgou que ela merecia punição. Perguntou, e se se arrependesse? Ele falou, tempo para arrepender-se ela tivera muito, porém já passara. Mostrou-lhe tantas vezes que fora a igreja, e nem se confessara! Mas, e as coisas boas que fizera? Não contava? Contava, serviu, pra abonar outras iniquidades do passado. Na hora que a cama sacolejou, se sacudiu freneticamente. Era a briga entre Leviatã e o anjo da guarda de dona Emerlinda.

O hospital, e as particularidades incríveis. Aquele monte de gente, indo e vindo. A indústria da doença, o comércio da saúde, a política da morte! Gente nascendo, gente morrendo, gente de carne e ossos, gente que nem mais isso tinha. Uma verdadeira feira, o produto os enfermos  que iam sendo exportados e importados. Uns para a luz, outros para as trevas. Os reciclados, voltando a vida. Um agonizante passou deixando um rastro de sangue pelos corredores. A moça da limpeza disse que outro dia, viu no chão, um rastro de sangue como aquele. Pegou pano e rodo e saiu limpando, seguiu o rastro que foi dar no banheiro. Ao chegar lá, pra sua surpresa todas as paredes do banheiro estavam completamente sujas de sangue! Mãos espalmadas, as palavras “Socorro me salve!” sendo escrita com sangue! Alguém que ela não conseguia ver, escrevia! Largou tudo, e correu a chamar alguém. Ao retornar, nada havia lá. Tudo limpo. Tudo tranquilo.

Naquela noite, a moça da limpeza, ficara sabendo que aquela ala do hospital era mal assombrada. Limpava o quarto quinze. No passado um fazendeiro, possuído por um espírito maligno. Na sua propriedade, armado com uma espingarda calibre doze, matou o filho e a nora. A polícia foi chamada. Deu-lhe voz de prisão. Ameaçou atirar nos policiais. Preferiu tirar a própria vida. Apontou a arma por debaixo do queixo, e detonou. Ficou sem os olhos, e a massa encefálica saiu por cima da cabeça. Lá estava o fazendeiro, no quarto quinze. Fumava um cigarro. Embora os mortos, só eles percebiam. A fumaça do cigarro subia. Mas só os não viventes viam. O sangue coagulado, grudado ao cabelo. A espingarda apoiada ao ombro. Os olhos sem órbitas. Disse: Boa noite, senhora! Teremos um ao outro por companhia. E a noite, está apenas começando.

Fabio Campos, 10 de outubro de 2020.


Terríveis Portais Cap. 20



Uma casa em ruínas. Senhor Djalma se encontrava lá. A porta, as paredes, tudo em situação deplorável. Percebeu que ao longo do tempo, aquela casa passara pelas mãos de muitos donos. Em diversos ambientes se transformara, nesse ínterim. Muitas vidas teriam vivido, ali. Além de casa de morada, fora estábulo, intendência, escritório contábil, casa de jogo, agência de viagem, quitanda, restaurante, bar, lanchonete, açougue e mercearia. Para cada tipo de vivência, uma gama de personagens a viu. Um rol de episódios, via descortinar entre aquelas paredes. Alguns dos eventos ali ocorridos, foram tão impactante, tão forte, que imprimira no ambiente um certo ar, pesado. Lúgubre, Sorumbático. Os espíritos das coisas ruins que lá ocorreram, lá permaneceram.

Viu uma cama saindo do chão, sem que ninguém a erguesse. Sem que ninguém com corpo, carne, ossos, músculos, e outras coisas que só os viventes possuem, a içasse. A cama subia, lentamente, tendo sobre si, uma velhinha, que tranquilamente dormia. O leito da idosa, subia, e subia, bem devagar. Subiu alguns centímetros do piso do quarto, e parou. O urinol, as chinelas, o pequeno tapete de por os pés. Essas coisas continuaram no chão. Enquanto que a cama, simplesmente subira. Com a velhinha bastante idosa, que dormia. De repente, a cama começou a dar solavancos, sacudidas um tanto violentas. Isso fez a pobre senhora acordar atônita! Sem saber o que estava acontecendo. Um grito horripilante ecoou, na madrugada assustadora. Um forte baque, e a cama retornou ao solo. E tudo silenciou. A pobre senhora, desmaiou. Foi parar no hospital.

Senhor Djalma por um instante se deteve no hall, avançou para uma sala de visitas. Imensas cortinas em tons verdes, carregadas de babados e franjas brancas, impediam a entrada de luz pelas janelas laterais. Tantos eram os objetos de louças, que tinha medo de esbarrar e quebrar um deles. Elefantes, tigres de bengala, cães e gatos, ninfas, e um negro com uma cânfora ao ombro. Chegou a uma sala ampla guarnecida de uma espécie de dispensa e mezanino. Um negro com um lenço amarrado na cabeça pelada, de lá de cima no parapeito, olhava-o, pondo cuidado aos movimentos do intruso.

Uma senhora muito velha, se estava, sentada numa poltrona. O cabelo todo branquinho. A pele do rosto, dos braços, enrugada. Colocaram-na a um canto, de modo a permitir livremente a passagem de quem ali circulasse, ou se quisesse passar para outros cômodos. Sobre um mesinha redonda alguns objetos, xícara de porcelana, um crucifixo de aço, a estatueta de uma santa sentada, com um chapéu de caubói na cabeça. Tudo iluminado por um abajur cor de carne. A senhorinha conversava sozinha, com certa dificuldade pela falta de dentes incisivos. E mesmo da prótese dentária, que jazia num pires, enrolada numa lenço branco. Falava sozinha, a respeito da hora da janta que não vinha. Acontece que já jantara, mas não lembrava. Falava do horário dos remédios, que teria que tomar após o jantar. Também os remédio já tomara. Da canseira nas pernas por estar a muito tempo na mesma posição. Insistentemente chamava por uma moça chamada Gedalva. Talvez fosse a governanta, que simplesmente ignorava os chamados da pobre idosa. Senhor Djalma caminhava feito um gato, sem fazer o menor barulho. Ao passar pela velhinha, percebeu que a mesma era cega.

Senhor Osvaldo Brito era conhecido de todos. Conhecido vereador de mandato, na vila do Porto. Sua fama ia longe. Até a capital. Fama de muitas coisas. De coisas ruins, viu? Dentre outras, de encrenqueiro, dos que não levava desaforo pra casa. Raparigueiro, paquerador, inclusive de mulheres alheias. Trambiqueiro, mau pagador. E de matador de gente. Só andava armado. Nunca a polícia, mesmo sabendo, o desarmara. Nas abordagens, quando era revistado, sempre tinha uma conversa. Conversa de pé de ouvido. E ficava tudo resolvido. O vereador tinha um escritório de consultoria, na rua principal do vilarejo. Como orgulho exibia na parede, um diploma de Técnico contábil. Na parte dos fundos, mantinha uma oficina de conserto de máquinas de datilografia. Dentre os rapazes que estavam sempre por lá. Três eram seus empregados. Entre outros afazeres, consertavam máquinas de datilografia. Senhor Brito vereador, mantinha um acordo com o prefeito. Era amigo do gestor, de modo que nunca faltava serviços de consertos de máquinas de escrever, em sua oficina. Em época de eleição o escritório-oficina virava comitê eleitoral. E ficava, ainda mais, cheio de cabos eleitorais, bajuladores, puxas-sacos, jogadores de dominó e baralho. Em ano de campanha, o conserto das máquinas, andava a passo de tartaruga. Foi justamente num ano de eleição municipal, um crime abalou a vila do Porto.

A rua do açougue pela primeira vez ficou iluminada. Uma gambiarra de lâmpadas incandescentes foi improvisada. Um caminhão virou palanque, enfeitado de bandeirolas coloridas, com as cores e os números do partido. Um banner gigante exibia a foto do candidato, que era todo sorriso. Metido no seu tradicional paletó. O serviço de som foi testado, e o povo foi convocado. A praça ficou repleta de gente. Todos queriam ouvir as propostas dos candidatos. Preencher a noite barulhenta com balela de políticos mentirosos, programa de índio. Fogos explodiam no ar, a cada instante. Alguns daqueles estouros, não eram tiros de revólver? Eram sim!  Tiros de revólver! Teriam vindo da rua do matadouro...

Enquanto prefeito e vereadores discursavam, um carro preto passou devagar pela rua da cadeia. Foi andando bem devagarzinho, até sumir na escuridão da estrada. Instantes antes, os faróis estavam apagados. Lá no final da rua do matadouro. Um homem amparado pela escuridão, seguiu até a casa de Zequinha da Força. Devagar bateu na porta. Com o rosto quase encostado na folha da porta, chamou pelo moço da companhia de luz, que já havia se recolhido. Embora não havia ainda agarrado no sono, por conta do barulho do comício. Acendeu a luz. Ao abrir, recebeu três tiros, a queima roupa. Morreu na hora.

Na vida, um homem terá a oportunidade de transpor vários portais. Muitos sucumbirão diante de alguns. Três deles, o fará tremer nas bases. O primeiro, o da verdade: O portão do cemitério. Pouco importa se vivo, ou morto. Rico ou pobre. Ali, as diferenças se anulam. Ali, todos se igualam.  Ali, onde ninguém, é melhor que ninguém.

Fabio Campos, 03 de Outubro de 2020.