Senhor Belo Cap 19




O cemitério velho, abandonado, ficava em cima de um penhasco, de onde dava pra ver o mar. A visão era um esplendor. Qualquer um, desejaria ser sepultado ali. Pros lados, um mar de coqueiral, a se perder de vista. As palmas a acenarem, ora pro céu, ora a abraçar a brisa de sabor marino. A visão deslumbrante que se descortinava a frente, raptava aos olhos, levando-os longe, tão longe. Até onde pudesse cegá-los de sal e solidão. Senhor Djalma ponderou que talvez seu corpo, estivesse sepultado ali. Procurou, a esmo, a própria sepultura. Tentou se reconhecer, entre os muitos rostos nas louças, das lápides.  Encontrou pessoas, que assim como ele, vagavam. Se eram viventes ou espíritos, era complicado saber. Tentar tocar não adiantava, o espírito não encontrava resistência e transpassava os corpos. A única saída era cumprimentar, puxar conversa. Se fosse correspondido, teria encontrado outro nas mesmas condições.

Algo o fez lembrar de Joelma. O canteiro com um buquê de flores amarelas. Joelma, uma mulata com quem tivera um namoro. Joelma negra, esguia, carnuda da cintura para as pernas. Joelma, uma mulher que sorria. Lembraria dela sempre, como uma pessoa que sorria. Sorria com os olhos, mesmo quando falava algo sério, ou corriqueiro. Sorria, com seus dentes alvos. Sorria, as vezes, espalhafatosa, como se anjos fizessem cócegas a sua alma. Sorria ainda mais, se o interlocutor a julgasse, inconsequente, sarcástica. Sorria com seus lábios sensuais. Sorria meiga, a provocar fantasias nos desejos sexuais de certos homens. E gargalhava, espetaculosamente! E como Joelma gargalhava! Sua gargalhada, se morta estivesse, deveria virar patrimônio cultural da humanidade. E ria de qualquer coisa. Mesmo que, o motivo da risada, nem fosse algo assim tão engraçado. Ria, se seu riso viesse a causar estranheza, a quem via, ou a ouvia rindo. Ria, a causar irritação num rabugento de plantão, de levar aos resmungos e impropérios. Ria a causar inveja a Irene de Caetano.  Joelma ria porque ria. Joelma, era mulher feliz.  

“Eu quero ir minha gente eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, nada/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene dar sua risada. Caetano Veloso”

Joelma domara o mundo. E avaliava os homens, pelo formato das sobrancelhas. Dizia: As sobrancelhas exageradamente cheias, definiam homens rudes, brutos no trato com as mulheres. As sinuosas, de homens delicados demasiadamente. Sobrancelhas falhadas, de homens indecisos. As que se uniam no cenho, pelo contrário, eram homens decididos, determinados na hora de agir. Bem como eram do tipo, pavio curto. Sobrancelhas finas, pertenciam a homens ciumentos, inseguros, as vezes violentos. Homens quase sem sobrancelhas, ou arqueadas demais, pertenciam a homens loucos, psicopatas. Pra ela, senhor Djalma era desses.

O mar se estava. Em toda sua exuberância, se exibia. Mar feito calda de pavão. Ao modo de dizer do matuto: se amostrava. Os que vinham da roça, pela estrada vermelha, e passava no portão do cemitério, ao chegarem naquele ponto, paravam pra admirar o mar. Sentavam numa pedra, acendiam um cigarro, feito de fumo de corda e seda. E o cheiro ia bater nas ventas dos fiéis defuntos, dos que dormiam, também dos que estavam acordados, sentados nas catacumbas apreciando a paisagem. Deu pra ouvir as gargalhadas de Joelma, lá para além do muro do cemitério. Talvez fosse ela mesma, voltando de uma festa no sítio. Estaria por trás do muro, flertando com um matuto. Mulata faceira. Mulher da vida. Das que ficam com um homem só por prazer.

“Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim/ Por uma coisa a toa, uma noitada boa, um cinema um botequim... Chico Buarque”

Senhor Djalma lembrou de uma vez, que foi pro sítio mais uma turma de amigos. Impelido pela euforia do álcool, se inventou de roubar uns cocos. Escolheu um coqueiro que julgou baixo. Se enganou. Não era tão baixo, só percebeu isso no meio da subida. Mesmo assim subiu, e subiu. A despeito das picadas de mutucas, conseguiu derrubar os cocos. O problema ficou por conta da descida. Afrouxou um pouco os pés, e pronto, rapidamente chegou ao chão. Só que metade do couro da barriga, ficou no tronco malvado. Lavou com cachaça o ferimento, e estaria tudo resolvido. Se os amigos, pelo resto do dia, não se divertissem às custas dele.

A desavença de Silvio, com o homem que o atacou no bar, tinha a ver com traição. O homem chamava-se Amilton, ficara sabendo que Silvio, que um dia fora amigo, andara baixando as asas pro lado de sua quenga. Também o atacou por causa de política. No passado senhor Amilton fora vereador de mandato, e perdeu a última eleição porque, segundo ele, pessoas como Silvio andara falando besteira a seu respeito. Teriam dito aos eleitores que não votassem mais nele. E o chamaRA de irresponsável. Foi o suficiente pra atacá-lo com intensão de tirar-lhe a vida.

Um jovem, estava, sentado sobre uma grande catacumba, de tijolos antigos. Encostado a uma imensa cruz negra. Tinha os olhos no horizonte marinho. Uma placa desgastada, dizia o nome dos que ali jaziam, com data de nascimento e morredoiro. Aproximou-se. Caramba! Reconheceu-o, era o belo mancebo que noutro dia o viu lanchando num bar. Seria ele, o pequeno Absalon? Senhor Djalma tivera com Nara, uma filha, uma menina chamada Rana. E com Joelma tivera Absalon que morrera, com apenas dois anos de idade. E sequer foi batizado, não vingou. Absalon estava enterrado ali. O filho que ele mesmo sepultara. Se vivo estivesse, estaria exatamente com vinte e cinco anos. Idade que o belo rapaz aparentava. Aproximando-se cumprimentou-o. Ao jovem parecia que já o conhecia a muito.  O rapaz como se lesse seus pensamentos, disse-lhe que não era seu filho. Seu filho Absalon estaria num outro nível, mais elevado que aquele. E que não crescera em estatura, permanecera, em tamanho, como saíra deste mundo. Se quisesse poderia levá-lo até onde ele estava. E foram. Caminharam por uma vereda além do muro do cemitério, que levava a um jardim. Envolvidos estavam numa neblina densa. O local remetia-os a um estado de muita graça, de muita paz. Senhor Djalma não pode aproximar-se muito, mas deu pra ver seu filho que dormia, embalado ao colo de uma mulher negra de rosto rechonchudo. Estava rodeada de várias de criança, de idade infantil, e brincavam em uma algazarra deliciosa. O vento que vinha do mar, tornava a tarde magnífica.

A bodega do senhor Belo, ficava na esquina da ladeira do chafariz. Era uma construção velha. Datada de 1686. Lá no alto do frontispício, assim informava. Construção tão rude, tão feia, datava-se porque era moda. Casas tinham eira, beira e brasões. Isso era sinônimo de prosperidade do dono, na época. Agora, porém nem a sombra do que um dia fora. Afinal, mais de trezentos anos se passaram. Tantas demãos de cal tinham as paredes a dar a impressão de gordas, de flácidas. Dois degraus mais elevado, separava o pavimento interno da casa comercial com relação ao terreno da rua. Entrava-se por uma das duas portas, e ia se encontrar num único vão de alguns poucos metros, seis por quatro metros, talvez. O piso era coberto de tijolos  achatados, quadrados. Não havia sortimento, nem variedade de mercadoria. Quase nada nas prateleiras. Os caibros do telhado retorcidos, enegrecidos, resignados na sua tristeza de velhos. O cheiro, uma briga entre o charque e o querosene. Nada havia lá que não estivesse desbotado. Como se as cores das coisas tivessem fugido. Foram todas pra lá fora. A bodega do senhor Belo. Os séculos não passaram para aquele ambiente. O relógio com algarismos romano, parado, às seis e dez horas. As baratas, os únicos insetos que sobreviveram, trezentos anos de história. No alto, pelo lado de fora, no canto direito, uma placa azul com letras brancas, indicava o nome da rua que começava naquela esquina: Rua Vigario Bello. E que nada tinha a ver com o dono da taverna.

Senhor Belo continuava sentado na sua velha cadeira de balanço, na calçada. Ao ver senhor Djalma sorriu. Sorriu com seu sorriso peculiar. Os olhos quase serrados, as sobrancelhas brancas arqueadas, a barba cerrada. E os lábios. Ali, era onde retinha o segredo do seu sorriso. A boca um pouco trêmula. Deixava ver parte dos incisivos amarelados, num rosto quase nipônico. Senhor Djalma, sabia por conta dele era que sorria, aproximou-se. Senhor Belo, continuava olhando-o, e disse: Você lembra? Um dia, bem aqui, sentado nesta cadeira como estou agora, eu disse, que tudo isso ia lhe acontecer. Lembra?   

28 de setembro de 2020. 

 

QUASE O FIM..... Cap 18



“Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha...Pessoas cinzas normais, garotas dentro da noite, revolver. Cheira cachorro! - Belchior Alucinação - Fevereiro, 1976”

Silvio viu a morte se aproximando. Pareceu-lhe realmente o fim. O homem embriagado estava determinado a o matar. E morreria. No entanto, sem saber realmente, o motivo de ter que morrer.  Se por vingança, se por uma dívida, quem sabe, por engano. O problema era que o machado não tinha respostas pra seus questionamentos. Sibilava no ar buscando seu corpo, sem no entanto lograr êxito. Sem alcançar seu intento. Silvio tinha uma habilidade incrível para se livrar dos golpes mortais. Isso porque na juventude, tivera oportunidade de frequentar uma academia de artes marciais. Aliado aos bons reflexos, que ajudava bastante. Interessante, ver que, apenas se defendia, sem revidar a agressão. Dando saltos fantásticos, e esquivadas mirabolantes, conseguiu salvar-se. Saiu do estabelecimento, deixando para trás o burburinho.  Na rua ia pensando, tentando lembrar-se de onde conhecia aquele homem. E o porquê de querer tira-lhe a vida. Revirou o passado, por fim veio-lhe na memória. Conhecia-o das docas.

Senhor Djalma, outra vez, se estava a recapitular sua vida, e sua não-vida. Desde do dia que se entendera de gente, até o dia que morrera, e não-morrera.  Acontecimento semelhante, acabara de ocorrer com Silvio. Muito embora, não tivera ele, a mesma sorte. E mesmo morto, continuava tendo consciência das coisas que aconteciam ao seu derredor. E ainda nem bem haviam entrado na madrugada. Um cão bravio apareceu. E pôs-se a rosnar contra senhor Djalma. Era um cão de pelo negro, de olhos projetados, sanguíneos. Não parecia normal. Senhor Djalma tinha trauma de infância, com relação a cães. Desde a vez em que voltava da casa de uma tia, e fora atacado por um cão, um pastor alemão que, se soltando de seu dono, saltou de dentro do jardim de uma casa. Senhor Djalma, devia ter uns doze anos, o cão pastor alemão, o mordeu no braço. Haviam outras crianças, o cão porém, escolheu a ele pra morder. Isso o deixou revoltado, e passou a pensar que todos os cães o odiava. Passou a ter aversão pelos bichos. Não sabia ele que animais atacam levando a consideração a estatura, muito provável devia ser entre as crianças naquela ocasião, o menor dentre eles. Teve que ir ao hospital, tomou um monte de injeção na barriga, para o caso de o cão estar com hidrofobia. Por longos anos, não podia ver um cão que tremia.

O sol não estava nem aí pra as opiniões de quem quer que fosse, e isso ajudava muito. Porque em certa ocasiões, seria melhor não contar com certos amigos como aliados. Melhor entender de pontes, que de pessoas. Queria entender as garças. Voavam com tanta graça. A ele, parecia que voavam sem um trajetória definida. Ora iam pro sul, ora desviavam-se pro norte. Observava um bando, que seguia um pequeno grupo de bovinos. Os pardais, ficaram como vizinhos indesejáveis, o incômodo da vila. Tornaram-se, havia séculos, seres da urbe. Quisessem ou não, estariam lá, por muito tempo. As garças por sua vez, haviam migrado de regiões pantanosas, seu habitat. Por escassez de alimento vieram explorar o sertão, bravio. Tornaram-se amigas dos bovinos, e viviam com esses uma espécie de mutualismo. Comiam-lhe os carrapatos, enquanto os protegiam de qualquer ataque de serpentes, e as estas protegiam, de qualquer inimigo, que soubesse respeitar um rival de grande porte. Era algo interessante, ver a amizade de seres tão grande, com seres alados, tão pequenos.

Os prédios, as casas do vilarejo, cada uma delas contava uma história. Lembrou de uma festa da padroeira, já havia muito. Em que foi passear na praça com a namorada, de juventude. E percebeu algo no frontispício de um prédio, algo que nunca havia observado antes. No prédio figurava o brasão da família, em alto relevo, algo tão antigo. Mas que estava lá. Algo que nos dias comuns nunca observara, mas que o dia de festa revelou. O fato de estar com a menina ajudou a guardar a lembrança. O namoro com Severina iniciara-se na sala de aula, eram colegas de escola.

Não Severina, não foi seu primeiro, nem único amor. Apenas amou-a intensamente. Lembrou-se de Nara, outra paixão de juventude. Levado pela saudade, foi até o gueto onde Nara morava. Será que ainda vivia lá? As vezes as pessoas esquecem que o passado é passado. E lá, era onde devia permanecer. Já dizia o cantor Belchior "O passado é uma roupa que não nos serve mais." O subúrbio, pura desolação. Parecia um campo de guerra. Desumanamente devastador. As casas, em ruínas. Fazia anos estivera ali, nada mudara. Só o fato de estar morto. Pichações nas paredes, sujas, caveiras, cobras, punhais, frases que gritavam: “Morte ao inimigo!”

Havia muito lixo. Um amontoado de entulhos. Em todas as ruas era a mesma realidade. Não entendia bem o significado daquilo. Mas era a realidade que havia. Não tinha como discutir ignorar, a realidade era aquela. Monte de lixo, por toda parte. Parecia cenário de filme de ficção científica. Estaria sonhando? Mas era tudo tão real. Pediu muito a Deus para que aquilo não fosse verdade, apenas um sonho. Mas as casas pareciam tão familiar. Aquelas crianças brincando, junto aos esgotos, a céu aberto, porcos, cheira cachorro!

 "Morte ao Inimigo!" O inimigo para aqueles devia ser o governo. Um homem negro apontou-lhe um revólver, e deu-lhe ordem pra ficar parado. Dessa vez, era um revolver de verdade! Obedeceu. O homem veio até ele. Perguntou o que “aquela alma penada” estava fazendo na favela àquela hora. E disse mais, que costumava atirava primeiro, pra depois perguntar. Engraçado, como tinha razão, era no que se tornara, uma alma penada. Disse que ia a casa de uma amiga, se chamava Nara. Ela o viu de longe, veio até ele. Será que ainda o amava?  Não queria que ele entrasse na sua casa. Talvez, estivesse amancebada com um traficante. Não estava. Era uma mulher sozinha. Ela a filha de nove anos. Talvez tivesse vergonha da pobreza em que vivia.

E de repente estava de volta a praça. Não podia dizer o contrário do que via. Não acha que estivesse de volta ao passado, pois no passado não tinha carros com aquele alcance. Não tinha como ser passado, as roupas eram tão atuais. Estudantes, dois policiais...


Fabio Campos, 20 de Setembro de 2020. 

A ilustração desse capítulo é imagem da Caatinga, o Bioma do sertão. Encontrada no google em: Imagens da Caatinga"

 

 


 

Como um Filme... Cap 17



Senhor Djalma adentrou a barraca da velha Celina. As cores viva, as estampas alegres, contrastava com o verde do mato, com o tom pastel da areia do rio, onde fincada estava a nômade morada. Ela puxou conversa, disse que quando ele a visse nua, não precisava se masturbar. Sempre que precisasse era só falar, que o aliviaria sexualmente. E sublinhou dizendo que a masturbação enfraquecia o homem. Negra gabola, disse ainda que apesar da idade, conseguia satisfazer qualquer homem na cama. Visivelmente desconsertado, o rapaz agradeceu a gentileza. Mentalmente dizia pra si   mesmo, jamais iria pra cama com a concubina de seu pai.

Celina saiu da barraca, a acudir alguns afazeres. O moço, sem saber ao certo por que estava ali, deitou olhares sobre o lar de um vão só, da mucama. No pequeno móvel de cabeceira viu que havia um porta-joias, com tampa de madrepérola, ornada de falsas pérolas. O formato era de um crustáceo. Abriu. Dentro, diversos colares e pulseiras, quase sem valor. De repente um pingente chamou-lhe atenção. Um crucifixo de ouro, dezoito quilates, pequeno, pesava algumas gramas. No entanto de valor inestimável.  Tinha-o em valia, mais que todas as bijuterias que ali estavam. Conhecia aquele objeto, pertencia a sua mãe. Não queria acreditar, que seu pai, o tivesse dado a negra Celina. Achava mais provável que ela o tivesse roubado.

Naquele momento o que mais queria era entender porque a pessoa, o ser mudava tanto, desde a juventude a velhice. Mais mudanças físicas, que mentais. Pelo menos com ele fora assim. E morto, continuava pensando os pensamentos de vivo. Na mão uma fotografia de quando jovem, o flagrante ocorrera num bar. Estava com alguns amigos daquela época. Onde estariam àqueles? Nem sabia se ainda viviam, ou em que plano estariam? Talvez deles que já se foram. Amigos, deles que já nem mais estivessem ali. E por acaso, apareciam por trás, na fotografia. Quem sabe perambulavam por aí. Asim como ele, nem vivo nem morto. Será que se casaram? Tiveram filhos? E se se encontrasse com um dos filhos dele? Provavelmente o reconheceria, nele. E pensaria que seria ele mesmo. Diria: Mas como? Não envelheceu nada? A vida toda, era assim.

Um homem parecendo com um personagem de filme de faroeste, apareceu-lhe bem a frente. Assustou-se, era noite. Tinha a mão como se fora uma arma apontada pra sua cabeça. O indicador como se fosse o cano, o polegar o cão da arma, e os demais dedos como se segurasse o cabo. Temeu aquilo. Ora! Por que o medo, se não havia arma alguma na mão dele? Mas era como se tivesse. E prevalecia o medo. Tinha vontade de correr. No entanto os pés pesavam, como se pregados ao chão. Como se atolado, em areia movediça. Os dedos, as unhas dele, só tinha nicotina. No entorno da boca cicatrizes, feridas de queimaduras. O caubói era débil mental. Colocaram-lhe o apelido de “Django das Bitucas” a vida era catar binga de cigarro no chão. Rodou a arma imaginária no guarda mato, colocou no coldre inexistente. Lentamente girou nos calcanhares, e se foi.

Um rapaz o observava de uma mesa de bar, enquanto fazia um lanche. Era um belo mancebo. Talvez fosse, o anjo de sua guarda. Estava lanchando, não tirava o olho dele. Ora, e por que correspondia aos olhares? Melhor não olhar mais. Mudou a vista, tentou pensar em outra coisa. Olhou de novo. E o rapaz bonito já não estava mais lá. Acabou a dúvida, se se tratava de um anjo.

Silvio estava sentado em cima dum lajedo, que ficava bem à frente da choupana, lá no alto. Subúrbio da vila. Parte da sua vida viveu ali. Quando anoitecia a visão era fantástica.  Dava pra ver todo o vilarejo. As ruinhas, tudo tronchas! Um sobe-desce desgraçado. As carreirinhas de luzes serpentinando morro acima, morro abaixo. A casa continuava lá, de singelo talhado, com duas caídas d’água. Uma pra frente, outra pra trás. E era tudo tão simples. Um bico de luz, mal iluminava o interior. O alpendre guarnecido de janela. Senhor Djalma tinha para si o conceito, que um alpendre sem janela, se constituía dum erro ignóbil, execrável. Algo inadmissível. Dentro de casa, uma velha cadeira de balanço, das que se denominava de preguiçosa. O móvel mais importante. Toda tarde, alguém a levava para o alpendre. E a cadeira ficava lá, pacientemente a espera de uma pessoa em especial, o pai de Silvio. Ele chegava da rua, sempre calado, taciturno. Um Charlie Chaplin, sem os trejeitos. Tirava o chapéu, pendurava o velho paletó no respaldo da cadeira. Sentava-se calmamente.  Acendia um cigarro aromático. Aquela cena daria um quadro, uma bela duma pintura modernista. Composta por um homem, fumando um cigarro, numa cadeira preguiçosa, num velho alpendre, quase anoitecido.  Quedavam pensativos, o pai de Silvio, a cadeira, e o cigarro perfumado. A cena ocorria toda de tardezinha.

Naquele instante Silvio fumava um cigarro, semelhante ao do pai, e que também  ele, lá estava, na preguiçosa. Muito embora fisicamente, ninguém estivesse. Silvio tinha o palito de fósforo apagado, brincando entre os dentes e os lábios grossos, de homem negro. Senhor Djalma chegou, ficou por trás de Silvio. Observava também a vila. Quase num sussurro perguntou-lhe se lembrava, do dia da quermesse. Montaram uma barraca de quitutes e bebidas, na festa da novena de São Pedro Apóstolo. Silvio sequer se deu ao trabalho de virar-se. Ouviu e continuou olhando a vila. Lembrava-se sim, do dia que montaram uma barraca na quermesse. A pedido do padre, o amigo fez a vez de leiloeiro para as prendas doadas.

Sem saber porque perguntou por que Silvio, à época ficou rebelde, afastou-se da igreja. Por que deixou o grupo de cristãos, que se reuniam aos domingos e visitavam o abrigo de idosos? Não quis responder. Pensou em algo pra dizer. Disse que queria ser “hippie”, decidira viver perambulando, sairia de casa, pegaria apenas o violão, uma mochila de couro, algumas camisetas e sairia pelo mundo. Sair pelo mundo naquela tempo, era ir pelos bares com os amigos. Sem vontade de voltar pra casa.      

Era um sábado, no domingo era dia dos pais. Tinha uma lua, daquelas que parece um pedaço de unha, acesa, voando na esplanada de estrela. Jânio sabia tocar violão. E tocou, coisas muito bonitas de se ouvir. Estavam sentados no imenso calçadão da usina. Ainda mais olhando para o céu escuro, cravejado de pingos de luz.  O rio naquela época do ano, estava quase seco. Restaram alguns cacimbas d’água junto aos charcos. Os grilos entoando sua serenata. Silvio pegou sua comissão de leiloeiro e foi comprar cachaça para irem, naquela noite, pro rio. Ao entrar no bar, um homem mal encarado estava bebendo no balcão. De posse de um machado partiu em sua direção.

Fabio Campos, 12 de setembro de 2020.

Este capítulo, tem duas ilustrações: Um mural (O Original) feito por Aika (minha neta de 9 anos),  que se baseou num webdesenho, usou tinta plástica em parede bruta, com duas mãos de cal. Eu reformulei com autorização, claro, da autora. A minha versão denominei de "A Criação".

 


 

O Olho Cego de Edward Cap 16


Já dizia o filósofo Paulo R. V. : “É melhor morrer, do que perder a vida. Pois, se perde... Dá um trabalho danado pra achar!” E não raro haviam aqueles, que, desnecessariamente, acabavam perdendo. A vida, pode ser que se perca, e vire fumaça dentro do céu, ninguém sabe até quando. Quem sabe, gastar o resto da vida procurando, no oco do mundo maltrapilho, magro de meninos, obeso de gente. “Viver é melhor que sonhar” já dizia Belchior, fosse no peso-pesado matinal, ou na marina calmaria da tarde. Arfada, corria rente a sarjeta. Por onde vão os homens-vida, ranzinza de paz. Aboletada, dos aperreios. O pai do senhor Djalma aconselhava: “Ter mais de uma profissão era um trunfo, para quando vier os tempos difíceis.” Quando ainda portava sobre o corpo seus cinquenta e poucos anos, disse bem assim: “Ser açougueiro, ser padeiro, são ocupações dignas, capazes de dar o sustento de um pai de família.” Um banqueiro de jogos de azar, apesar dos riscos, podia ser um bom ganha pão. O avô de senhor Djalma fora barbeiro, mascate, revendedor de carvão vegetal, negociador de saca de feijão. Teve delas que as exerceu concomitantemente.   

Senhor Firmino, foi barbeiro por muito tempo. Ao longo dos anos, mudara de ponto várias vezes. Senhor Djalma ainda era menino, mas lembrava muito bem, a barbearia ficava num quartinho anexo a casa. Ao lado da marcenaria de senhor Lourival, na ladeira que dava pro mercado da carne. O menino Djalma quando ia cortar o cabelo, ficava observando atentamente o trabalho do fígaro. Algumas coisas achava interessante. A exemplo, de um pedaço de couro semelhante um cinto, em que o barbeiro esfregava como se amolasse sua navalha. Um espelho ostentava o desenho de um chapéu da marca Coty. Qualquer um que se olhasse naquele espelho, via-se portando um chapéu. Estratégia de marketing da chapelaria, pra vender.

O paletó naquele tempo, era uma indumentária que os homens ocidentais adotaram como vestimenta oficial, para estar na sociedade. Senhor Djalma guardaria com muito nitidez, aquela foto da revista de notícias internacionais em que o primeiro ministro britânico sorria ao lado do mahatman Ghandi. O líder indiano coberto com seus mantos e seu cajado na mão. O inglês metido no paletó e de chapéu. O encontro de dois mundos tão opostos. Assim se sentia naquele momento.

Um retrato em preto e branco. Senhor Firmino entrou no banco. Nisso o sol vinha desembestado, rodeando os muros, pulando dentro dos quintais das casas, espantando as galinhas. Doido, apressado porque já era perto do meio dia. O sal salgando as nucas e os braços úmidos de suor dos homens. Dois moleques de rua espreitaram o pobre homem. Na saída do banco, seguiram-no. Já ia quase perto de casa quando atacaram. Um deles segurou-o pelos braços, às costas, enquanto o outro rapidamente vasculhou seus bolsos, até encontrar a carteira. Queriam só o dinheiro. Jogaram seus documentos no mato. Vida dura.

O mar pode ficar muito seu amigo, se você se dispuser a ouvi-lo. Os afagos, podem vir em forma de um beijo, salgado, inebriante perfume marinho, de entardecer reconfortante, serenos cabelos do mar roçando o rosto daquele que o contempla. O mar, puxava conversa, mas somente com quem o respeitava, e dispensava-lhe total atenção. O perigo era se apaixonar, morrer de amor, se entregar, ao mar. Ele o arrebatava todinho. Levantava e levantava sua saia, suas ondas na praia. Se enamorado num fascínio, num torpor, numa hipnose, numa embriaguez, Levando ao delírio de drogado. A encher os olhos de azul, de brilho molhado, de sopro, nos ouvidos. Ouvia-o soluçar baixinho, dizendo o quanto amava-o. E se abraçavam e brincavam, como antes. Tirando-lhe o que tinha de mais firme, os pés no solo. Tendo o poder de trocar sonhos, em suaves pesadelos. E ficava só olhando, ele carregar as nuvens pra bem longe da terra. Levando as embarcações, pro fim do mundo. Afogando em precipícios, os desejos mais secretos que alguém pudesse ter. Escondendo tesouros valiosos, junto ao seu ventre levando monstros gigantes que se deliciavam, submergindo e emergindo, doidamente. Cavernas, precipícios, prados, cânions, cemitérios de gente e monstros. Tudo, tudo, lá no fundo do mar. Vales tenebrosos que alma humana alguma jamais imaginou existir. Nunca senhor Djalma imaginou conhecer tanto dele. Mas sempre o respeitou. Sempre o temeu.

A velha Celina não queria ficar velha. Era uma negra dos seus setenta e tantos anos. Esguia, nos seus metro e setenta e pouco. Aqueles olhinhos fundos de pouca inteligência, mas sorrateira que só! Escondia como podia, sua carapinha nagô, em baixo dum lenço estampado. Talvez tivesse vergonha da descendência negra. Do rosto pros braços a diferença gritava. Enchia a careta de pó de arroz. Nos braços e no colo o negrume que não dava pra esconder.  Que pena, a pele não podia esconder. Vergonha pra raça, negra. Um branco e uma negra nus numa cama. Era como o algodão misturando-se com café. A mão da negra andando por cima da pele branca, um escravo garimpando no sal. Senhor Djalma era um jovem, mancebo ainda, viu quando ela saiu do quarto nua, e foi se lavar numa bacia no lado de fora da cabana. O homem com quem estava era seu pai. Ele não deu ousadia de dizer palavra. Foi embora.  

Senhor Edward tinha um olho cego. O olho cego era meio branco, meio azulado. Dizia, mesmo sem falar, que alguém podia ser cego dum olho, e mesmo assim ser feliz. Não o incomodava, o fato de ter um olho cego. Pelo menos parecia não o incomodar. Só não gostava que ficassem olhando demasiado pro defeito. Isso tirava-o do sério. Isso poderia ser “uma correspondência biunívoca” dizia, quando alguém falava algo e citava “um denominador comum”. Talvez quisesse ser autêntico. Ironizava dizendo: “Eu enxergo melhor com esse olho [e apontava o cego], do que com o outro!” Só não pedisse pra provar, que era briga certa. Só vestia camisa de algodão, de gola, de mangas curtas, e a tradicional carreira de botões descendo no peito. Senhor Edward tinha umas manias bem esquisitas. As mãos sempre inquietas, a dar petelecos no vento, com os dedos médio e anular. Como se atirasse, à sua frente, bitucas de cigarro invisíveis. E coçava a barba rala, debaixo do queixo magro. Pra isso, fazia uma careta que imitava um sorriso grotesco. E tinha um ajeitado no óculos de grau, como se estivesse fora do lugar. Era o tempo da República. Não o estado de governo, mas o albergue, que dividia com outros três colegas. O amigo Edward, a quem o senhor Djalma resolvera visitar naquele final de semana, gostava de cantarolar baixinho, uma música religiosa. Trocava, no entanto, algumas palavras por palavrões. Com ar de ironia dizia: “Sou ateu. Graças a Deus!”  Havia pilhas de livros velhos por todo canto. Pelo chão, na cama, na cozinha, e até no banheiro. Livros comprados no sebo. Bastava abrir um pra encontrar uma dedicatória, de um ex-dono, que, datava, assinava e punha endereço. Comprava-os pra estudar. Senhor Edward estava na universidade. Dizia porém, que não tinha pretensão, nem tão cedo, de terminar o curso de filosofia. Convidou o senhor Djalma para visitar a cidade universitária. No domingo estava quase deserta, mas estavam lá assim mesmo. O campus era para o amigo do senhor Djalma, como o Olimpo. Um lugar onde só os deuses mereciam estar.  E lhe foi cicerone, pelos jardins das delícias, as fontes da meditação, os campos de concentração, o parlatório, o coliseu, a piscina das ninfas, o ateneu, a fossa das lamentações, o palácio dos cachorros. Pra cada edificação, pra cada espaço, uma denominação própria, dada pelo senhor Edward. Senhor Djalma muito teria o que aprender, daquele mundo. Coisas da vida, choque de opiniões.

05 de Setembro, de 2020.

A ilustração deste capítulo é detalhe do LP de Raul Seixas "Os Grandes Sucessos de Raul Seixas - 1983"