Um Milagre de Natal

Era natal. A mata branca com sua vegetação tórrida, e suas veredas tortuosas. Com um pouco de imaginação, daria pra comparar às paisagens igualmente inóspitas do pólo norte, coberto de neve, nos singelos cartões. No sertão, apenas a noite, é que dizia que era natal. Nos piscas-piscas dos jardins, nas fachadas das casas, nas bolas coloridas enfeitando as árvores. E nas vitrinas das lojas, com seus papais Noéis de bochechas rosadas, longa barba branca e gorro vermelho, sorridentes, diziam que era natal. Dois jovens enamorados Breno e Cláudia se encontravam na saída do Ginásio Santana. 

Manhã natalina, algazarra de estudantes a saída do educandário. Ele percebeu-a preocupada. Sentados ao banco da Praça do Monumento. A farda azul e branca, combinado com o céu anil salpicado de nuvenzinhas de algodão. O semblante carregado, olhando lá pra torre da igrejinha de Nossa Senhora da Assunção, ela disse-lhe: -Estou grávida. Disse como alguém que diz que está com uma doença grave. Como alguém que  talvez fosse ela, havia acabado de falecer. Virando-se pra Breno encontrou um fantasma. Pobre rapaz, lívido, que mesmo sem falar dizia: -E agora o que faço? -O que digo? Não tinha a menor ideia do que deveria dizer numa hora daquelas. A confusão de pensamentos não lhe permitia emitir qualquer palavra. Talvez fosse melhor pensar que tudo não passasse de uma brincadeira. E que ela estivesse revivendo uma cena de novela que tinha visto na televisão. Enganava-se, era a novela da vida, vivida em tempo real. Não se sentiam culpados por nada. 

Em fração de segundos, suas vidas passariam como um filme. Todos os personagens desfilaram pelos seus pensamentos. Cláudia comentou que se sentia enganada, por tudo que estava acontecendo. Disse que Breno era igual a todos os outros rapazes, que pra conseguir o que queriam, diziam que tudo ia dar certo. Sem saber por que, Cláudia se lembrou do pai, Seu Alfredo. Lembrou do dia que fora se despedir dele, na Estação Rodoviária, indo embora pra São Paulo, se separou de dona Carmen sua mãe, cinco anos já haviam se passado desde então. Lembrou de sua mãe também, deixando-a com vó Emília e indo embora pra Belém do Pará, com um caminhoneiro que transportava madeira, chamado Zé Ribamar. Aquela união acabaria não dando certo. Sua mãe, não voltaria mais pro sertão, não tinha dinheiro. Em Belém, Carmen fez de tudo. Foi diarista, trabalhou de cozinheira, garçonete, recepcionista de hotel. Quando completou cinquenta anos, fez uns exames e descobriu um câncer no útero. Morreria abandonada num leito de hospital, sem mais ver sua única filha. Sem saber que Cláudia, apenas uma menina um dia qualquer iria ser mãe. 

Breno, um belo rapaz. A mãe professora estadual, o pai funcionário federal da Companhia Telefônica. Decidiram que mandariam o filho pra capital pra terminar os estudos. O deslize que cometera com aquela menina, não poderia comprometer o futuro brilhante que sonhavam pra ele. E Cláudia teve que se virar sozinha, continuou morando com a avó Emília na Rua Ormindo Barros, em Santana do Ipanema. Com a ajuda das amigas fez chá de bebê. E nove meses depois, saudável, pesando dois quilos e trezentas gramas, de cor branca como era o pai, no hospital Doutor Arsênio Moreira, nasceu Maria Vitória. Não se parecia com a mãe que era uma linda morena. 

O mundo continuou dando suas voltas. Muito sol brilhou no sertão fazendo o suor pingar da testa do caboclo no rabisco do arado. E na capital Breno se formou, terminou o curso de advocacia. Em meio a vida de República, muita bebida e farras, mesada dos pais todo mês. O suor vertido no rosto ali, somente na praia, sentindo a brisa do mar balançando as palhas dos coqueirais ao som de música preguiçosa:“Ai Ai que saudade ai que dó/ Viver longe de Maceió/Alagoas tem jóias tão raras que meus olhos não cansam de olhar/ Um delas és tu Pajussara/ Praia linda mais bela não há”. 

Breno era idealista, esteve à frente das lutas sindicais e universitárias. Nos movimentos grevistas enfrentou a polícia, saiu nas manchetes dos jornais. Virou líder estudantil, dissidente político. Candidatou-se a vereador em Maceió, ganhou. Conheceu e casou-se com uma jovem arquiteta cujo pai era dono de uma empresa imobiliária, renomada no estado de Alagoas. Contratado pela empresa do sogro ascendeu economicamente. E só vinha a Santana do Ipanema, pra rever a família, na Festa da Juventude. Pouco interessado em saber como estava sua ex-namoradinha Cláudia, do tempo de rapaz. Muito menos se o bebê que tivera era menino ou menina e que nome tinha. Não mais lhe interessava saber que Cláudia tornara-se enfermeira, trabalhava no Posto de Saúde Municipal da Rua da Praia. E que havia se juntado com um rapaz chamado de Renato, que gostava de vaquejada, e vivia da venda de motos e carros usados. Feito pião lá se ia o mundo, fazendo redemoinho com a poeira das estrelas. 

Maria Vitória, estudou no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Numa das muitas vezes que foi encontrar a mãe, conheceu um rapaz, lá da Rua da Praia, chamado Clovis, que sonhava em ser jogador de futebol, não gostava muito de estudar, que só tinha dezesseis anos e Maria Vitória catorze. Por isso a mãe proibiu o namoro. Com a ajuda da avó Emília, Cláudia conseguiu mandar Maria Vitória pra estudar na Escola Técnica de Satuba. Desde então só vinha pra Santana na Festa da Juventude. Numa dessas festas Clovis encontrou Maria Vitória, os dois ficaram. Ao ir ao banheiro um rapaz da cidade de Batalha desentendeu-se com Clóvis e atirou contra ele. Levado ao hospital de Arapiraca, ficou em coma. Um dia abriu os olhos. A primeira coisa que viu foi um teto branco, uma luz acesa. Na parede ao lado, um papai Noel. A porta se abriu, duas pessoas entraram. Os olhos embaçados, a boca seca. Reconheceu apenas sua amada, que num largo sorriso, disse-lhe sussurrando ao ouvindo: -Feliz Natal, futuro papai!

Fabio Campos

O Fim do Fim do Mundo em Santana

João teve uma visão. Ele viu o sol, completando sua derradeira jornada no firmamento, ocasionando o ocaso mais aterrador e resplandecente que se contemplara até então. A caatinga do sertão, pra adiante da região das lagunas, fundia-se e confundia-se como o próprio astro de fogo. Aqueles que haviam tornado-se impuros, já tinham ido banhar-se na piscina sagrada. Pois temiam morrer retendo em si alguma falta. E João dizia: -Eu vi o fim do mundo. Tendo a fronte, curvada ao solo, voltada para o oriente, nem bem havia terminado de recitar a oração, e foi acometido dum profundo sono, e dormiu. E um mancebo revestido de tanta luz, que ofuscava suas vistas, apareceu-lhe. E arrebatando-lhe até o pináculo do templo, mostrou-lhe os quatro pilares da terra. 

E os pilares estavam abalados pelas iniquidades dos homens. Sobre a primeira coluna havia um ancião com vestes brancas. E segurava um cetro de fogo flamejante que apontava as terras ameríndias, com seu povo miscigenado. E havia ali ranger de dentes, cobiças e desentendimento. A ganância dos homens proporcionava tanto prazer ao demo, que sua baba, em fios asquerosos, descia dos seus caninos. E ao tocar o solo ressecava dois terço da terra, tornando árida e improdutiva, por metade de cada milênio passado, em espaços de tempo alternado. Gado grande e miúdo sob as labaredas de calor volatilizado.E as chamas tranlúcidas tornavam o cenário tremeluzente. E o calor abrasador consumia as forças, as energias, as carnes dos que tinham vida. Uma vez que tombavam, agonizariam e expirariam, e a morte viria lamber seus couros e ossos. Homens e mulheres, angustiados e desnutridos, tendo cingido o ventre, tentavam soerguer os animais que padeciam. Criam que de pé, o bicho ajuntaria forças pra sobreviver, não se entregando aos abutres, desistindo de viver. Tiravam de sua fé, a esperança de saírem da miséria em que se encontravam. Havia fartura sobejante, somente nos lares dos exploradores. Sob o teto dos que dominavam os povos havia empáfia, tédio, preguiça, desconfiança. E desprezo pelos que, apesar de pobres, se isentavam de atitudes vis, e punham sua honra e vida no temor de um só Deus supremo. Nesse ínterim quatro impérios ascenderam e caíram, iniciando em Roma e terminando no Novo Mundo. 

Sobre a segunda coluna, um profeta de longa barba e cabelos brancos, de olhos fechados, recitava premonições que aconteciam à medida que seus lábios se moviam. E duas guerras ocorreram em dois segundos, e a Europa se banhou em sangue. E quatro anti-cristos brotaram do ventre de mães amaldiçoadas. E desde a primeira descendência foram esconjuradas pela santa inquisição. Como flores de horror e gemidos aterradores tiveram seus filhos. Um deles nasceu nos Países Baixos, outro na Ásia Menor, outro no Oriente Médio e outro na Península Ibérica. Um deles quis conhecer as entranhas onde havia sido gerado, donde havia saído. E sua mente doentia o faria deslumbrar-se com a visão cesariana, que ocasionaria a morte de sua genitora. Outro sonhou possuir a terra. E um outro, quis tornar a terra povoada apenas pela raça ariana. Precisaram de dois mil anos para que sua geração até a quinta potestade perecesse. 

A terceira coluna estava fincada sobre a cortina e o mar de fogo, em que havia se transformado a Oceania. Encimava o pilar, um cavalheiro do zodíaco. O braço esquerdo apoiado ao peito trazia na mão um livro com capa de couro de búfalo, enlaçado por um cinturão de couro de serpente, cuja tranca era as ofídicas presas encravadas no lóbulo da capa, ali havia a inscrição em latim, em letras douradas: “ Timor Dominis Initum Sapientiae Est” que quer dizer “O Temor de Deus é o Princípio da Sabedoria”. À destra, apoiada a um dos rins cingido, trazia uma ampulheta, que vertia do bulbo de cima sangue em pó, que caía sobre as montanhas nevadas no bulbo de baixo. E o Filho do Homem fugiu para o deserto, e ali foi tentado pelo “tinhoso” por três vezes. E Ele escorraçou o “Coisa Ruim”, e foi servido pelos anjos. 

A Quarta Coluna brotava no sertão das Alagoas. Mais precisamente na cidade de Santana do Ipanema. O profeta que estava de pé sobre esta coluna, ora ficava translúcido, e passava por três estados da matéria, água, gelo e vidro, em seguida tornava-se de carne e osso e finalmente de barro terracota, se fazia. E suas vestes eram como de um monge malaio. E portava um objeto estranho, parecido com uma balança, ou um astrolábio. Talvez servisse para mensurar almas. E foi atingido por um raio de prata, feito fio de espada, vindo de uma nuvem negra, espessa, que parecia ter vida própria, saída de um vulcão que vomitava larva de fogo. E o profeta se desmanchava por completo, para em seguida se soerguer e iniciar tudo outra vez. E João gostaria muito de saber o porquê de aquele pilar se suplantar justo na terra de Santa Ana. E um querubim apareceu-lhe no céu com uma faixa branca trazendo-lhe a explicação. Dizia a faixa em várias línguas: Os espinhos do mandacaru são para que nunca esqueçamos a coroa de espinho que pusemos sob a cabeça de Cristo. A cana, para que nunca esqueçamos de que com ela bateram na cabeça de Cristo. A terra árida para não esquecermos o caminho do golgota, onde Cristo verteu seu sangue precioso. 

Ororubá era um gigante de pedra, na serra talhado. Os índios o veneravam, no tempo de sua descendência. O gigante havia adormecido, desde que os nativos pereceram. E deveria acordar no dia do juízo. Ele encerrava em seu ventre, um terço das águas do dilúvio. E João viu o terceiro profeta abrindo o Livro da Revelação, e o vento das nuvens do céu soprou sobre as páginas, e parou na página que mostrava o fim. Orurubá acordando do seu sono profundo, ao bocejar deixava escapar a água do seu ventre, e o rio Ipanema virava um mar revolto que seguia destruindo tudo que existia as margens do seu curso. A torre da igreja matriz partindo-se ao meio pela força das ondas, foi a última cena que João viu. O cavaleiro do apocalipse abruptamente fechou o livro, e tudo voltou à calma de antes. E o céu antes tenebroso tornou-se límpido imensamente azul, tranquilo. Ainda não é chegada à hora do fim. Disse a voz retumbante, vinda do cosmo infinito. 

Fabio Campos

O Sujeito que Matou outro Por Causa de uma Pecha

Essa é a história de como e porque um amigo matou o outro por causa de um apelido. Metódio Calixto nunca foi desses almofadinha saído das entranhas de escritor romancista, que nem sabe o que é sofrer na vida, não foi não. Seu Metódio foi gente de verdade, homem de carne e osso, cabra macho do sertão das Alagoas. Metódio rijo, substanciado. Substancial também, criado com leite de vaca no tempo comum, leite de cabra, no tempo da fartura, e leite de jumenta no tempo das vacas magras, ou mesmo pra tirar uma maleita do corpo. Esse caboclo lanzarino, de quem vos falo, tinha as mãos calejadas, e seus braços eram dois verbos chamados trabalho. 

E quando vinham os dias grandes, de festas. Festa do feijão e da padroeira Senhora Santana. Seu Metódio e a família rumava pra cidade. Nessas ocasiões, punha traje caprichado. Tradição de pai pra filho. O homem colocava um terno de tecido azulão com uma camisa de manga comprida por dentro, uma gravata borboleta, uma flor na lapela. Na cabeça, um Prada enorme. De botas canos longos e espora montava em seu cavalo alazão e puxava o cortejo. Atrás vinha o carro de boi com os filhos e a esposa. Os meninos todos com camisas e calça de tecido dum azul claro, monocromático. Nos pés, alpercatas de couro cru, na cabeça chapéu de couro. A esposa com o filho mais no novo no braço, trajava um vestido de chita, com estampa de flores, uma sombrinha colorida. O eixo cantando, carro de boi avançando, deixando pra trás um rastro de bosta de boi e cheiro de água de colônia. 

Eulâmpio Dorotheu também era homem do campo. Tão real que, se o que a gente escrevesse exalasse cheiro, só em falar dele, daria pra sentir o bodum, entranhado nele, dos bodes e dos porcos que criava. Galinhas de capoeira no terreiro, e se dessem chance entravam de casa adentro. E galinha sabe como é não é? Elas emporcalham tudo por onde passam. Na época da seca, se valia dumas tarefas de palmas que cevava o ano inteiro pra alimentar meia dúzia de cabeça de gado. Um silo de trincheira cheio de forrageira, capim búfeo, capim pangolão e guandu pra aplacar a fome dos bichos. Sua propriedade ficava vizinho a de Seu Metódio. Família numerosa tanto quanto. Se inverno era tudo fartura. Tudo verdinho, verdinho, no aceiro, pega-pinto, pião roxo, catingueira. Os meninos iam tudo na roça colher feijão. Por trás de casa se formavam grotas o que propiciava a semeadura de hortaliças. Esparramava que era uma beleza, tomate, abóbora, melancia. No dia de bater o feijão, os vizinhos juntavam todos os filhos e iam para o terreiro de casa era uma festa. 

Os dois amigos e vizinhos se conheciam desde pequeno. Ali nasceram e cresceram. Herdaram as propriedades dos seus pais. Estudaram na escola isolada de Olho D’água do Amaro, sem que chegassem a concluir o primário. Sabiam ler, malmente escrever um bilhete, porém cubar a área de uma propriedade os dois sabiam. Mas entre aqueles dois roceiros haviam lá suas diferenças. Seu Metódio era organizado pra tudo que fazia, e gostava da limpeza, já Seu Eulâmpio era um jeca, desleixado, e não se importava com a aparência. Isso dava pra notar olhando pra um e pro outro, pra suas casas, pros bichos que criavam e pra roça também. Dava gosto ir até a casa do primeiro, tudo muito simples, pois pobreza nunca foi sinônimo de miséria. As galinhas ficavam presas num Grajaú, o chiqueiro do porco bem cuidado. O curral limpo e a ordenha ele fazia observando toda uma técnica de higiene. Seu Metódio era metido a inteligente, quando recebia a visita do agrônomo do banco deitava conhecimento pra cima do homem. Dizia ele que todos os dias lia a Bíblia. Sempre que os dois amigos conversavam acabavam discordando um do outro. Sempre divergiam de opinião, fosse lá o fosse. Isso vinha desde a infância. Quando eram pequenos lá no pátio do grupo escolar, nas brincadeiras em que havia disputa, eles acabavam brigando. Quando isso acontecia, e sempre acontecia, eles não se intrigavam, porém inventavam apelidos um com o outro. E na primeira ocasião apelidavam-se mutuamente. 

Aqueles homens severos, dados com a lida no campo tinham gosto em comum. Quer ver uma coisa que eles gostavam. Gostavam de corrida de vaquejada, da festa de apartação, de corrida de argola. De correr na pega de boi brabo solto na caatinga. E todo um ritual teria de haver antes de se embrenharem na mata. Um padre desses que gostam de dinheiro, de política e buchada de bode, era trazido pra rezar missa no terreiro da fazenda do prefeito, e recebia entre as oferendas, os paramentos do vaqueiro, chapéu de couro, perneira, peitoral e gibão, corda e chocalho. E em meio ao canto lamuriento do aboio, e o toque do berrante, sorviam grandes goles de aguardente, engoliam nacos de carne assada com farinha e punham um sinal da cruz sobre a fronte. Vida de gado não é adjetivo metido a besta, que vive de boca em boca todo boçal. Vida de gado é objeto direto. Espinho de mandacaru furando a carne, ferro e brasa. Assum preto cego dos olhos, goela seca, poeira vermelha entupindo as ventas, gosto de sangue pisado, na boca. Suor escorrendo na testa e moscas sobrevoando versos e pronomes. 

Tem um ditado que diz que Deus não dorme, e parece que o diabo fica lá longe espiando. E não é que os dois vizinhos se meteram em mais uma discussão e Seu Metódio num rompante de fúria, sem saber como, lembrou-se do apelido que o vizinho tinha na infância: “-Barrão coxo!”. É que Seu Eulâmpio realmente tinha um defeito que o fazia puxar duma perna. Pra ir pra cidade Seu Metódio tinha que passar na frente da casa de Seu Eulâmpio, e como permanecia a rixa, Seu Metódio sempre que passava apelidava o amigo desamigo. Uma semana, quinze dias, um mês e toda vez o apelido. E veio uma manhã de sábado que o homem amanheceu pelo avesso, no momento que o vizinho ia passando que o apelidou recebeu foi o tiro. De espingarda em punho Seu Eulâmpio saiu direto pra delegacia, foi se entregar as autoridades. 

E eis que veio o dia do julgamento. O advogado de Seu Eulâmpio iniciou a defesa caprichando no pronome de tratamento do “Meritíssimo senhor juiz de direito!”. Até aí tudo bem, as formalidades no trato entre os integrantes das causas forenses exigia o protocolo. Ocorreu que o causídico continuou insistindo no pronome tratamentoso, não parando mais de repetir o tal jaculatório. O excelentíssimo senhor juiz, irritado de tanto repetência, do “Meritíssimo”, explodiu aos berros dizendo pra o advogado parar com os comprimentos iniciais, e prosseguir a defesa. Porém o jurisconsulto contra argumentou: “Meritíssimo Senhor juiz! Até o presente momento tudo o que tenho feito foi elogiá-lo, com um pronome de tratamento, que em muito enaltece, o nobre colega. No entanto vossa excelência se mostra profundamente irritado!” E virando-se pro corpo de jurados concluiu. “Agora imaginem senhores jurados, o Meritíssimo senhor juiz, que é um homem versado nas letras, se irritou com palavras polidas que só lhe teciam elogios. Agora imaginem este homem rude, trabalhador rural. Todos os dias apelidado, pelo seu vizinho. Todo dia sendo humilhado, diminuído na sua moral, com adjetivos depreciativos perante sua família. Quantos de vocês aguentariam isso?” Seu Eulâmpio foi absolvido. 

Fabio Campos