SÍTIO CABEÇA DE MENINO (21º Episódio de T. Fashall) Mateus 18,7-9

A nona hora do dia, lá estava Tagor, no meio do deserto, da caatinga. A vegetação inexistia aos olhos, mas lá estava. Era só buscar. O que mais havia pó da terra. E seres estranhos camuflados nele. Como na terra da lua. Um sol desproporcionalmente pretencioso. A esturricar os couros, por fora e por dentro dos ossos, dos viventes atormentados. Um esqueleto de cachorro estendido ao lado da estrada sorria. E era sorriso de derrotado, e vencedor. Desobrigado de viver, debochava de si mesmo. Os abutres, já a festa tinham feito com sua carne. 

Magnólia haveria de fazer o que tinha que ser feito. Agradecida por estar viva, e amanhecer serena. Uma lata de querosene, com uma haste de pau improvisada, atravessada na boca. Usava pra carregar água do barreiro. O pano da rodilha no ombro, o chapéu de palha na cabeça. Amarrotado, desavermelhado de tão gasto. Cansado da lida desumana.  Silvia, a filha de Magnólia pretendia fugir. Tagor ficou sabendo, ele viu tudo. No tempo do ramadã, na peregrinação anual ao Taj Mahal. No reflexo do espelho d’água da fonte, viu tudo. A menina tinha somente quatorze anos. Botou na cabeça que iria embora dali. A sua outra na Índia naquela idade já era mãe do primeiro filho do príncipe. Todos os dias ter que acordar às seis da manhã, ir pra roça, estrovengar uns pés de mandioca. No lombo do jumento uma touceira da carne de Mani, levaria até a casa de farinha. 

O caititu aguardava-os, calado. Doido pra roncar. Depois de descascado e limpo, os braços branquinhos de Mani eram triturados na máquina. Virava um polvilho alvo. Massa cheirosa igual corpo de cabocla. E logo era levada pra mesa do forno. Com um rodo de madeira tinha que espalhar com veemência, pra não queimar nem embolar. O que ficava pelos cantos fatalmente viraria beiju. A farinha era o principal produto, a vedete das suas parcas refeições do meio dia. Juntava-se a um feijão fervido dentro duma panela de barro, cheia de água de barreiro e um punhado de sal. Nas manhãs, o astro rei que brilhava na mesa era o milho, e deleite de cuscuz. Olhando pro terreiro, ficava se lembrando dos dias frívolos, dias felizes de invernadas. No oitão da casa as hortaliças simplesmente nasciam, cresciam frutificavam. Tomateiro, hortelã, limoeiro, carambola, melão. O umbuzeiro cuja carga vingava somente as vésperas de semana santa. Arriscava desde já. Lá no alto olho servir uns maturis.

O barro marrom, quase vestido de preto estava morto. Amuado numa dureza, embalsamadora. O Can-cão e o Anum, as únicas aves que ainda dava pra ver nos galhos quase sem folha do juazeiro. O carcará e o Urubu-rei sumido dum jeito que parecia não mais existirem na face da terra. Mas era só morrer uma criatura, e do nada, eles apareciam. O mandacaru com seus olhos vermelhos chorava. A espetar o céu com raiva, como se quisesse com suas cruentas espinhas furar as nuvens. Quem sabe assim derramariam as águas que talvez encerrassem nas entranhas. Nuvens brancas, secas, sem água. Feitos limões inchados. Inúteis que só tinham tamanho. Porém, vistosas e bonitas, isso eram. Mas por dentro só gomos secos. Lúcia e Carmem foram pagar suas promessas. Levaram velas para acenderem nas capelinhas de fiéis defuntos. Largados na beira da estrada esperando almas penosas, de gente penante, penitente. 

Era tempo da novena, da vila do Brejo Seco. E tinha como santo padroeiro São Sebastião. Um cortejo seguiu pela estrada desigual. As roupas brancas dos tocadores, as fitas azuis contrastante com as vermelhas. O som dos pífanos brigando com a zabumba, o estridente som dos pratos, esganando a placidez da tarde. Os bacamarteiros estrondando seus rojões, enchendo de fumaça branca a napa azulina das cortinas da casa de Deus. Aquilo tudo não demoraria e viraria o avesso. E as cores, mortas de cansadas iam dormir. Os olhos agora dependeriam dos bicos de luz. As gambiarras cirandando o oitão, da porta da igrejinha de São Sebastiãozinho, imagem tão pequenina. Num altar de flores de pano e caixa de papelão recoberta com lenços rendado de filó. Dom Adalberto e seu terno branco, devido ao sentar, ficava amarrotado nas bordas.  Segurava com uma das mãos o chapéu branco, e com a outra um copo de vinho do padre. O pároco alertou que não embebedava, mas se tomasse um copo somente. Nos anos magros, a mesa de prendas ficava escassa, raquítica, feia. Um bolo de cuscuz, uma panela de carne de galinha guizada. Olhem só, esse ano tinha uns preás desviscerado, tratado com sal, só esperando fogo. 

Abelardo de Elúzia, também pensava em ir-se embora, sozinho. Não dormia de noite, pensando no que ia fazer. Abandonar mulher e filhos naquela lapa do mundo. Mundo de meu Deus, onde aprendera a ser gente. Elúzia sabia que ele ia mesmo era pro sul, pro corte da cana. Arriscar a vida no inferno verde. Mas os planos eram outros. Juntaria dinheiro, economizaria tostão por tostão. Intensão de voltar, porém, não tinha. De lá, pra mais longe ira. Fugiria daquele mundo doido, mundo de testar paciência do povo. Mundo de viver o povo a olhar o céu. Mundo de esperar Deus querer. Mundo desumanamente humano. Os três meninos teriam que aprender a viver a vida sem pai. Saber desde cedo que a vida cobraria de cada um deles, coragem por dentro do medo. De ter que abrir um poço de muitos metros de profundidade, cavando com raiva, com determinação, ora metendo a picareta, ora as próprias mãos. Enfiando no barro como quem busca ouro, até sangrar os dedos. Porque água era ouro naquele lugar.

Seu Antônio de comadre Estelita era um varapau de homem. Branco, parecia um norueguês, sofria naquele tempo de muito sol. O rosto, feito pimenta, ficava vermelho. Parecia que ia enfartar. O sangue latejava nas têmporas de vastas costeletas. E pra completar, antes das refeições tinha que tomar uma dose de cachaça. Dizia que era pra espalhar o sangue. Em dia de feira a casa ficava cheia de familiares vindo de longe, do Pedrão, do Gavião, do Caititu, do pé da serra. As mulas carregadas de panelas e potes de barro pra vender na feira. Os caçuás eram forrados com folhas de catingueira, pra amenizar os solavancos da cavalgada, e não acabasse quebrando as peças de argilas. Uma boca de difusora arribada no poste da pracinha central anunciava a missa. O padre na sua batina preta enxugava o suor que ia descendo pelo pescoço, empapando o colarinho branco. A fila das confissões encostada na parede, cheia de culpa, de piedade, de murmurações. O rosário Apressado, entremeado de lembranças aflitas, de obrigações esquecidas, que tentariam fazer antes de voltar pra casa. O jogo de baralho no cassino chinfrim de Seu Lira. A rameira angariando um freguês na tolda de fumo de rolo. A piada safada, oportuna. A gargalhada desprendida. O cigarro acendido, com as mãos em concha. A cusparada. Um asqueroso fio de baba na barba, despontada, por fazer. A saia espetaculosa da rapariga, dando nos nervos dos homens cínicos, dos meninos afoitos, e mais ainda das mulheres sérias. Mães de família angariando satisfações. A briga inevitável na porta do mercado. O furto oportuno, aproveitando a distração dos curiosos. 
   
O irmão de Abelardo teve, por ele mesmo, os cabelos arrancados, um a um. O desespero, a angústia. Pior era saber que pra aquilo não havia futuro, nem cura, não havia saída. Ele ouvia vozes, dizendo pra fazer. Odiava aquele alguém que falava dentro de sua cabeça. Azucrinando o juízo. O bruxismo enervante, os lábios ficavam como que cortados à faca peixeira. A bola dos olhos, furados com agulha de costura. Raiados de sangue. Os pulsos cortaria, com gilete cega. O sangue vermelho tingiria a pele alva, respingando na calça jeans, desbotada. E depois que secava, o vermelho vivo, ficava vermelho morto, escurecido. O aperto no coração, a palavra ríspida, o ódio. Tagor se sentia impotente diante daquilo tudo. Sentia-se como um peixe fora d’água. Aquelas lembranças angustiante dando-lhe nos nervos. Não sabia. Aliás, lembranças não tinha que tivesse parentes no sertão. Era sufocante, os ares da caatinga. Exaustivo, causticante sertão. O sobrinho vinha pedir a benção. Achava estranho aquele costume, mesmo assim abençoava-o. Não queria se demorar ali. Tudo ali dava-lhe nos nervos. Sufocante verão, de não ter lugar bom pra por os olhos. De não ter os olhos onde descansar. Igor seu sobrinho e afilhado, disse: tio o senhor está tão esquisito... Talvez fosse a barba por fazer, o cabelo, as unhas por cortar. Era como uma ressaca que não sendo do mar, nem do álcool assediava-lhe moralmente. Os brios, o ego empedernido.

Havia uma tradição, de quando se estava com raiva, os mais velhos diziam: “Respeite-me! Ou eu arranco-lhe a cabeça fora!” Porque tinham como premissa seguir as Sagradas Escrituras. E segui-la ao pé da letra, sem pestanejar: “E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno. E repetia: "Está em Mateus 18-9” O que estava dito, era pra ser seguido. E, se devia arrancar um braço, um pé, ou um olho, pra eles as sábias palavras, valia também pra cabeça.

A luz intensa, a fotofobia. Sons de zumbidos nos ouvidos, náuseas. A sede, a falta de ar. Os pulmões como se tivessem cheios d’água, mas sem água. A serra pedia socorro, os céus, porém, mantinha-se calado. Os homens, mesmo nos seus silêncios, também pediam a Deus, socorro. As pedras, as únicas que não pediam nada a Deus. O tempo todo quarando, se bronzeavam caladas. Não reclamavam, nada exigiam. Apenas existiam, e isso era suficiente pros que são agradecidos. Tinham consciência que era paisagem. E as carroças esperariam os dias bons pra voltarem, e serem felizes novamente. E os livros falariam delas com muito amor, humor e graciosidade. E encheriam os dias de poesias, de alegria boa, feito água de enxurrada. O entendente precavendo-se mandaria fazer um muro de arrimo na jusante da ponte das águas do rio. Pra quando viesse a cheia, a enchente fosse contida e não ameaçasse as casas. O braço d’água acotovelando-se nas casinhas de contar, uma, duas, três cores.

Tagor criava coragem pra dizer do que viu. Um monstro de lodo saindo de dentro de um homem que não sabia que abrigava tal criatura dentro de si. Os sete homens ficaram estupefatos diante da façanha, três meninos também viram, e comentaram entre si o acontecido. Ao entrar na sala Seu Felisberto estava com raiva, raiva daquelas de esmurrar paredes, e quebrar copos de café, de desejar uma dose de uísque pra aliviar a cólera. Mas não havia motivos pra raiva só não gostava era porque os meninos perderam o respeito aos mais velhos. Uma espécie de inversão dos valores na hierarquia palaciana. Príncipe virava vassalo, e era encarcerado nas masmorras. E as prostitutas valiam mais que donzelas. E as quem saiam com a maior quantidade de homens eram as mais valorizadas. Igor, olhando pro crânio do boi no alto da estaca, lembrou de uma história contada por seu avô, sobre a tradição de se pendurar a cabeça dum boi na entrada da fazenda. Contava seu avô que um velho fazendeiro criava uma raça de gado manso, bom de lida. Mas apareceu no meio do rebanho um garrote valente que num momento de fúria imprensou seu dono contra a cerca. O fazendeiro não contou conversa dum só golpe de machado arrancou-lhe a cabeça fora. E mandou pendurar na entrada para que o rebanho todo visse. E temendo acontecer-lhe o mesmo o respeitasse.

Tagor pediu pra ficar só mais uma semana ali. Tempo suficiente para conhecer melhor o afilhado. Os sobrinhos, a filha que tivera na adolescência com Leonor. Se dependesse dele, pirataria, nunca mais. No entanto como era bom lembrar do passado. Dos tempos de corsários e ataques aos castelos de nobres. E os cangaceiros reconheceriam neles tudo o que mais lhes inspiraram. O chefe deles seguiu o cangaço, depois de ouvir umas histórias contadas por Tagor. Naquela mesma noite os legendários atacariam o Rancho do velho Felisberto. Donde, arribada numa estaca, a cabeça de um menino agora mesmo gotejava sangue.   

Fabio Campos, 20 de janeiro de 2017.


CAVALO DOIDO (20º Episódio de T.Fashall.)



O suposto sequestrador da irmã de Tagor, tinha cabelo vermelho metálico. De onde tirou essa ideia? Disse, ter achado no local do crime, fios de cabelo, que pareciam de metal. Poderia ser de uma peruca. Mas não era. Afirmou categórico, depois de analisar o achado, no seu laboratório. Concluiu que a ponta dos fios tinha bulbo, e raiz. Enfim, possuía material orgânico e genético. Aqueles saíram de algo que tinha vida. Havia fortes indícios de que o criminoso fosse um alienígena. Tagor fez investigação nos arredores da casa de sua mãe, pra ver se alguma câmara de algum estabelecimento teria captado imagem. Encontrou uma, na quitanda da esquina.


A vila, tão antiga quanto atual. Os prédios jamais envelheceram. As águias no alto dos pedestais, de belas asas estendidas. De ferozes garras crispadas sobre a flecha e a serpente petrificada. Olhavam com semblante fechado, ameaçador. As janelas, do prédio da justiça, nunca se cansavam de vigiar a rua principal. Poucos tinham ideia do que significava ser velho e atual, ao mesmo tempo. Os vultos históricos nos porões em molduras escuras e tristes adormecidos num torpor crudelíssimo, desumano. Envolveram-se em sombras, silenciados seus fortes brados de revolucionários, tempos depois chamados de heróis. Encerrados nos negros e sombrios canos dos imensos canhões. Em suas munições obesamente mortas, de agora. Enferrujados os vômitos de fogo e ódio, ressequidos, esquecidos. As bandeiras não mais flamularam seus azuis, seus brancos, seus vermelhos, de outrora. Alagoas distando de França e de Kansas apenas um lance de olhar. Traçar no mapa, um paralelo desde a Vila de Étole Chavalier, passando por Wichita no Kansas, indo a coordenada 09° 22’ 42” 43” W de latitude, e 37° 14’ 43” W de longitude, e teremos uma placa tectônica imaginária, cobrindo a Europa Meridional, e Américas Meridional e Setentrional. Pra ser mais exato, um maciço continental compreendido desde a vila da Ribeira do Panema no estado de Alagoas – Brasil, a uma cidade na América, indo a Vila de E. C. em França. Mas o que de comum havia entre estes três pontos geográficos? A meros mortais talvez nada dissesse. Aos meninos das bicicletas sim. Dizia, da origem de cada um deles. Marcos, Lucas e João.


Wichita foi uma das primeiras cidades em que Tagor vivera. Ainda era aldeia indígena quando isso acontecera. A vila surgiu a partir de três tribos indígenas: Keechi, Waco e Tawakoni os precedentes de Tagor eram desta última nação. Isso foi lá pelos idos de 1870. Na época o vilarejo contava com pouco mais de 600 aldeões, que vivam do comércio de pele de animais selvagens, e da criação de cavalos e gado de raça. Era entreposto, ponto de parada das carruagens, vindas do leste em direção ao velho oeste. A bandeira da cidade além das cores azul, branco e vermelho, traz até hoje, uma cabana de palha tradicional, e a silhueta de um búfalo e um veado. A família Braga ali se estabeleceu e cresceu a partir da domesticação e criação de cavalos selvagens. 

O avô de Tagor da América, chamava-se “Cavalo Doido”. O missionário morávio Paul Truman que estudava a língua nativa delaware, num diário deixou escrito um episódio lendário ocorrido entre o avô de Tagor, e um janota californiano que viajava pro leste. “Cavalo Doido” entrou na taberna e o maldito western Willian Colt zombou de sua cara. Depois que o índio pediu, tabaco e chá ao taberneiro o californiano teria perguntado se o índio não queria apito também. Todos riram. E o índio desafiou o cawboy para um duelo. Desafio aceito. o punhal foi a arma escolhida. A rua ficou repleta de colonos para ver o embate. Os frequentadores do saloon aproveitaram para uma rodada de apostas. Com uma corda, os dois homens amarram-se ligados pela cintura. Segurando o punhal com uma mão e a corda com a outra, começaram o embate. O punhal do homem branco alcançou o índio abrindo um talho na altura do peito. “Cavalo Doido” fez valer o apelido que tinha, com a corda enlaçou um dos pés do senhor Willian, derrubando. Dominou-o jogou o punhal longe, poupando sua vida. Passou a esmurrá-lo, até pô-lo a nocaute.    
  

O cabelo de metal talvez muito tivesse do sangue dos moicanos. A princípio, de um homem, um ser humano normal. Embora o rosto parecesse de borracha sintética, quando falava a boca não se movia pra sair os sons da voz. Os fonemas no entanto saiam perfeitos, fluentes, e eram entendidos em qualquer língua nativa. Usava óculos de lentes e hastes escuras, muito na moda nos anos quarenta. De terno e gravata. Tagor, sustentava que talvez aquele não possuísse um coração, não dizia isso no sentido figurado. Mas coração órgão mesmo com artérias, vasos e veias cheias de sangue fluindo, como nós simples mortais temos. 


Os olhos de Antonieta eram azuis, ainda mais azuis ali, dentro da boate Azul. Tão belíssima imagem de mulher quase nua, a banhar os pés numa piscina de muita luz. Na mão alva de dedos longos e unhas pintadas, uma taça de uma bebida adocicada, com cheiro de fruta cultivada em solo de Cisjordânia. Licor de damasco. Um pequeno fruto boiando no líquido diluindo-se em vermelho.  Um corpo nu, o que a mente do homem via, ou pelo menos era o que mais queria ver. Apesar de estar calmamente sentada, ele conseguia vê-la andando na passarela. O som da música muito alto, a mente entorpecida pelos fluídos de etanol, mesmo assim conseguia fantasiar o toque dos saltos altos dos mimosos sapatos de Antonieta. O coração acompanhando o pêndulo e o ponteiro do relógio pendurado na penumbra. Marcando ritmo com o bico do salto, no polido piso marmóreo que refletia suas coxas bem torneadas.

Numa praia de Malibu, imaginou-se os dois. As palhas do coqueiro abanavam um sopro caliente, de sol e candura, dourando a pele. A deixá-la ainda mais sedutora, mais mulher. Tagor desejou-a, profundamente. No seu coração desejou aquela fêmea. Não sabia quando veriam se de novo. Aproveitar o momento favorecido pelos deuses numa viagem perfeita, própria deles. Cavalgante no lombo de Pegásus. Como primícias dos céus para um mortal. Uma vez a cada virada de estação do ano tinha direito a um encontro daqueles, e era outono. Sonhou tanto com aquele beijo. A excitação, os corpos exacerbado em formas. Os másculos inflados de desejo, virilidade aflorada. Feito mustang afoito dominou a fêmea, e a possuiu. O beijo levou-o as estrelas, ao cosmo, a profundidade do infinito. Fazer amor com Antonieta era momento indizível. De provocar desejos aos deuses do Olimpo. Afrodite sobre seu divã arrepiava-se,  mordia o lábio de inveja. Eros aventurava-se descer dos seus átrios vindo pousar na terra, sobre o corpo nu de Antonieta. A acariciar suas carne em brasa. Seu sexo se abrindo em flor exalando cheiro inebriante. Se despetalando pro varão, loucamente viril. A explodir em gozo, enchendo a via láctea de outros milhões de espermatozoides, brilhosamente ofuscantes. Universo, de milhares de centelhas de vida. Para depois mansamente no colo de Vênus se lançarem, languidos. As estátuas no palácio do Cassino de Caesar permaneceram todas caladas. Continuaram olhando, porém nada diziam. Não interferiam, porque não queriam. Embora morressem de desejo. 


Tagor Fashall menino de muitas nações e povos. Sem precisar encarnar em outros seres, muito menos sendo highlander. Sendo eternamente ele mesmo. Simplesmente nascia onde quisesse. Em vários lugares ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes. Nas suas aventuras ia, buscava suas origens verdadeiras. Isso incluía estar em lugares diferentes, em épocas diferentes. Em quintas e últimas dimensões, vivendo, não outras vidas, mas a mesma em espaços de tempo distintos. Conhecendo outros meninos de suas várias infâncias. Tendo outros inimigos que os levava a outros crimes. E a buscar incansavelmente a justiça. Outras Antonietas de suas juventudes. E sua irmã não saía da cabeça. Onde estaria Júlia agora?


Fabio Campos 07 de janeiro de 2017.

P.S. A Gravura é de autoria do próprio autor usada em outra publicação aqui mesmo neste blog.

Outono de Tagor (19º Epísódio da Saga de T. F.)


O delegado, metido num velho blusão de couro, do qual nunca se livrava. Ninguém jamais o viu sem ele. O chapéu caqui, os óculos ray-ban. Enquanto aguardava pra ser interrogada, Elisa, analisava aquele rosto empapado. Associou-o ao de um personagem do filme “Conan - O Bárbaro”. Talvez aquele malévolo, que se transformava em cobra durante uma orgia. O policial assistente, de pé, ao lado do birô. Com ar de desprezo olhava para os que ali se encontravam. Como sentisse que merecedor não era de ter que viver tudo aquilo. Voltar pra casa era o que mais queria. E o que mais fazia era planos, de ir ao mercado do bairro, compraria ração pro cachorro, cervejas, pilhas pro barbeador portátil. Sempre esquecia alguns compromissos não tão imprescindíveis assim. Trocar a lâmpada queimada do abajur, comprar cotonetes e lenços na farmácia, colocar os sacos de lixo pra fora. Tentaria lembrar-se de não podar muito o pé de Cássia do jardim. A mulher o odiaria por isso. E que geralmente ia pra lista dos itens “sempre esquecidos, sempre adiados”. Detestava, mas infelizmente, outra vez, levaria trabalho pra casa. O maldito caso da menina desaparecida intrigava-o. Levaria aquele caso na mente o resto do dia, da semana, enfim martelaria no pensamento. Era um jogo de quebra-cabeça, onde as peças não se encaixavam. Faltavam algumas, sobravam outras.
      
O terceiro menino da bicicleta, naquela manhã entrou correndo em casa, vindo avisar que a sua vó estava no meio da sala estirada, e que sua irmã desparecera. Ainda eram nove horas da manhã daquela quarta-feira, muito cinza, quando isso acontecera. O dia amanhecera nada normal. E infelizmente acontecera. Os outros amigos dos meninos estavam jogando bola no campinho, e nada viram de anormal. A não ser um carro de luxo que ao entrar no subúrbio chamava sempre a atenção. Parou na esquina e ficou um tempão lá, sem que ninguém saísse de dentro. Um grupo de meninos que assistia a pelada ficou observando. Sentado na linha lateral do campo. Olhavam pro jogo, olhavam por carro. Os que jogavam também, entre uma jogada e outra olhavam. Um senhor idoso passou a caminho da quitanda, um dos rapazes lá da esquina pediu-lhe que lhes desse algum trocado. A intensão era comprar um frasco de cola de sapateiro para se drogar. O velho, irritado com a abordagem esquivou-se. Foi derrubado, um dos garotos meteu a mão em seus bolsos à cata do dinheiro que achava que havia nele. Mas só encontraram um canivete, um molho de chaves, uma carteira que só tinha cartões de apresentação de mototáxis e disk-quentinhas, uns talões da companhia de energia e da água não quitados, a carteira que dava-lhe direito, como idoso, de andar nos coletivos gratuitamente, um pente ensebado, sujo.

Esmurraram lhe perguntando onde escondera o dinheiro, ele nada disse. Apenas esbravejou, tentando levantar-se. O sangue do seu lábio estourado vermelhou um pouco da poeira da estrada de terreno baldio. Dona Esmeraldina não sabia explicar direito o que acontecera estava muito confusa. Só lembrava nitidamente de estar sentada na cadeira da máquina de costura quando foi arrastada com muita força. A brutalidade do seu agressor fora tanta, que ela perdeu o equilíbrio, foi ao chão. A dor persistia na região pélvica. Ela dizia que era dor subindo do ‘vazio’ pra responder na espinha, que era como ela chamava a coluna vertebral e o baixo ventre. Levou coronhada de revólver e ficou passando a mão no calombo na cabeça de cabelos branquinho. Achava que era suficiente o que falara.

A morte já havia visitado praticamente todas as casas daquela rua. Começando pelo dono da loja de carros. Nunca na vida ele tinha vendido um carro como no dia que Felix Anderson foi a sua loja. Disse: “Eu quero aquele carro”. E como demoraram a atendê-lo simplesmente entrou num que estava na vitrine estourou a vidraça da loja, e foi se embora guiando seu mais novo e único automóvel, jamais adquirido na vida. Um talão de cheques inteiro no valor das prestações deixou assinado no birô da concessionária, e foi-se embora. Os cheques nunca seriam compensados, não tinha fundos. E dona Júlia, quase quarenta anos depois diria: “Como eu queria ter um carro daqueles. Antes que venha à morte.” Tagor disse-lhe que mais do que um carro, melhor era andar a cavalo. Viajar de carruagem, atravessar o mar de navio, sangrar as nuvens de dirigível. Justo ele, que já havia feito viagens em todos aqueles transportes. Dona Júlia disse que quando casara foi da igreja pra casa à cavalo. Mas não podia desviar do foco. Sua irmã havia desaparecido e a vila de Étole Chavalier estava afundando. Como assim afundando? Isso mesmo, uma equipe de agrimensores contratados pelo condado. Com seus teodolitos e varas milimetradas puseram-se a fazer medidas até conseguirem as provas. Do alto do morro mais alto do entorno da vila dava pra perceber, algumas montanhas nunca antes vistas daquele ponto agora estavam visíveis porque outras elevações baixaram de altitude. O governo teria que tentar reverter a situação. Enfim saber o que estava acontecendo pelo menos. Do jeito que estava não dava pra continuar. A vila inteira iria desaparecer, caso se confirmasse aquela teoria. E ainda mais as profecias de um louco que atendia pelo nome de “Candeeiro” que apregoava em praça pública que a vila estava afundando por castigo, pelos pecados dos aldeões, pelas falcatruas do prefeito, pelas sevícias das mulheres mundanas, dos ladrões e viciados em jogo e pelo uso de drogas. E anunciava em tom profético: “Arrependei-vos! Bando de serpentes! O fim está próximo!” Lembrava em tudo o batista bíblico.

O policial, dentro da viatura. Encontrou Tagor quando ia pro subúrbio, parou, desceu. Ficaram conversando. Disse que tinha saudade do tempo em que era jovem, que estudara na escola de freiras. Falou dos amigos de infância, e que alguns não alcançaram futuro promissor. Lembrava com carinho de cada um deles. João, o filho do pintor, era excelente jogador de futebol, mas não sabia que fim levou. Wilson, tornara-se policial como ele, mas teve diabetes aos quarenta. Não se cuidou. Nem um tipo de dieta, teve gangrena, morrera recentemente. Manuel havia, a cinco anos, num final de ano como aquele, ligado pra ele, desejou feliz natal, feliz ano novo. Pela voz deu pra perceber o quanto estava bêbado, mas também muito emocionado. Apostaria que ao desligar teria chorado. E não mais tornou a ligar. Lamentava pelos que não absolveram os ensinamentos mais úteis de seus professores. E não sabia dizer exatamente, como conseguira chegar a ser policial. Considerava-se um homem de paz, e na profissão errada, talvez. Sabia que os dias de caserna estavam contados, em breve iria pra reserva. Ultimamente sonhava todos os dias com a aposentadoria. Os dias violentos, traumatizantes, quando era jovem e afoito ficariam somente na lembrança. Não se orgulhava muito do que muitas vezes tivera que fazer. Bater, bater, agredir, prender, bater. O delegado com os lábios, fazia um bico de preocupado. Assim fazia toda vez que era obrigado a pensar. Quando estava jogando baralho, principalmente quando estava perdendo, fazia aquela cara. Por detrás dos óculos ninguém sabia o que seus olhos diziam.


Tagor descobrira um invento interessante. Depois de alguns dias fabricando-o, nos porões do seu laboratório na rua do Candelabro subúrbio de Étole Chavalier, eis que ficou pronto. A princípio concebera-o como um aparelho de refrigeração portátil. Devia servir para baixar a temperatura do corpo. Nos dias de calor intenso de verão. Uma espécie de dínamo em miniatura, com uma pequena reserva de gás que cabia acoplado ao chapéu. Ao ser acionado criaria um campo de ar refrigerado entorno de quem o estivesse usando. O dispositivo também teria a opção vapor quente, para o rigoroso inverno francês. Pra se testar a eficiência da geringonça teria que esperar alguns meses. Nada, no entanto, impedia de ver como funcionaria ainda que fosse outono. Ao usá-lo Tagor faria uma descoberta incrível. O dispositivo deixava-o com o poder da invisibilidade. Ao passar em frente a barbearia simplesmente não conseguiu ver sua imagem refletida na vidraça. Os transeuntes não davam conta da sua presença. Mas toda as células, moléculas, átomos, sangue e órgãos do corpo permaneciam no mesmo estado de matéria. De modo que logo descobriria isso, ao colidir com um dos meninos da bicicleta. O menino ficou estupefato ao perceber que batera num obstáculo invisível. Pior, algo que além de não ver, soltara um palavrão.

O que importava no momento era saber onde estava sua mãe. Outra vez veio-lhe o rosto de sua tia entrando na delegacia, para contar ao delegado o ocorrido. E ele ali, apenas um menino frágil, olhos arregalados, indefeso.

Fabio Campos, 02 de janeiro de 2017. 

P.S. Gravura que ilustra este episódio, encontrada aleatoriamente na internet. Autor: desconhecido.