Luzia, A Estrela Dalva

Era mês de novembro, Lá pras bandas do poente, um solzão amarelo, preguiçoso, espalhava seus raios alaranjados, encima dumas nuvens brancas, esticadas, magrelas, feito filhas da rainha imperial. Bando de garças em asa delta migrava pro azul. Meu avô Antonio de Campos dizia que os meses mais quentes do ano, eram março e novembro. De fato. A quentura se alastrava na superfície das coisas dissipando cheiros característicos, esterco de boi na estrada, poeira vermelha na pele do negro sem camisa. Balaio de palma na cabeça, suor por todos os poros. As casas já vestidas pros festejos natalinos sorriam. Aguardavam a noite pra brilharem em piscas-piscas. Alegrava a tarde os folguedos, que angariavam prenda pras festas cristãs. Trio de tocadores de pífanos, zabumbeiro e fogueteiro, apupo da meninada. Dali a um mês, seria dia de Santa Luzia.

A Rua Santa Luzia nasceu na encosta do rio pelo lado direito. Separada pelo curso d’água, Quando dava uma cheia, ficava olhando pro lado de cá, feito catenga que perdeu o rabo. No início quatro casinhas acanhadas. Erguidas com vara de catingueira, tapadas com o barro da ribanceira, cobertas com palha de coqueiro. Manufaturas, nascidas das mãos rudes de seus próprios donos. Agricultores, fugidos da seca, migraram pro subúrbio da cidade. Hoje, um cortiço enorme. Casas de alvenaria, enfileiradas nas ladeiras que desciam pro rio, faziam inveja a suas irmãs mais pobres. Ruas descalças, sem meio fio, sem iluminação, esgotos a céu aberto, galinhas ciscando no lixo, bacurinhos chafurdando na lama negra que descia pro rio, roupas surradas, de cores cansadas, estendidas em varais improvisados com pedaços de fios. Os grupos da igreja: Carismáticos, Legião de Maria, Pastoral da criança, do idoso, dos enfermos, Clubes de serviços. De casa em casa, naquele bairro afastado, iam à cata duma caridade, a derradeira do ano a fazer.

Eunice, mais uma entre as outras, que morava ali. Enfeites natalinos em sua morada não havia, e o azul desbotado da fachada dizia que a muito, pintura não via. Uma pequena área na frente, um cimentado, nu de mobiliário. Uma janela. A porta da frente, uma folha corta em duas. A parte de cima aberta. Um “Ô de casa?” de cá; um “Ô de fora!” de lá dentro. E Dona Eunice, surgiu. Abaixo da linha do seu busto volumoso, cinco pares de olhos curiosos. Dona Eunice era assim, uma dessas caboclas que na juventude devia ter sido moça muita bonita. Mulher trabalhadeira. A tez morena dizia que aquela cor, os vincos na testa, e as mãos calosas, vieram da roça, do plantio do milho e do feijão, da ordenha da vaquinha Malhada. Do cantar cantiga pra espantar a solidão, na lavagem de roupa, lá no beiço do açude. Enquanto o vento assobiava assanhando seu cabelo moreno, premeditando seu futuro. Cedo ficou órfã, de pai e mãe. E veio pra cidade, trabalhar de babá, na casa do promotor de justiça Doutor Agamenon Valadares. Chegou a iniciar os estudos. Toda noite, ia pra Escola Batista Accyoli, apelidada de Bacurau, ave de hábitos noturnos do bravo sertão. Porém não passaria da terceira série do primário, de modo que mal aprendera a ler, e assinar o nome. Nas noitadas escolares, nos bancos da Praça São Pedro, conheceu o pedreiro Cícero Venâncio, namoraram e se casaram. E foram embora pra São Paulo. Cinco anos na capital paulista. E voltou pra Santana trazendo dois filhos pequenos: Marcos e Cicinho. Foi morar na Pedra D’água, com um viúvo, chamado Pedro Tenório, cujos filhos já eram homens feitos. Mais uma vez não deu certo. Finalmente estabeleceu-se na Rua Santa Luzia. Conheceu Valdemar, que era pintor de profissão, mas fazia bico de encanador, eletricista e servente de pedreiro, resolveram viver um tempo. E Eunice teve com Valdemar mais três filhos, Lúcia, Josuel e Eduardo. 
         
Valdemar deu de aparecer com muitos objetos em casa, eletrodomésticos, bicicleta e até motocicleta. Um dia, a verdade, Valdemar andava praticando roubos, junto com outros dois comparsas. Envolvera-se também com venda e consumo de drogas, maconha e pedras de crack. Acabara preso. Já fazia um ano que está no presídio de Arapiraca. Era bem provável que, por bom comportamento, ganharia o indulto, e viesse passar com a família aquele natal. Na estante um retrato de Eunice, ainda nova, logo quando casou. Uma imagem de São Sebastião em gesso, e uma gravura de Santa Luzia, aquela que trás dois olhos num prato, numa moldura simples, arribada na parede que dá acesso a cozinha. Perguntado se sabia como Santa Luzia havia se tornado santa, Marcos disse que não, porém gostaria de saber.

“Santa Luzia nascera na cidade de Siracusa, na Itália. No século terceiro da era cristã. Era uma linda moça, abnegada seguidora da doutrina Cristã. Fez voto de castidade. Teria feito, ainda menina, votos de viver virgindade perpétua. Depois que seu pai faleceu, sua mãe queria que ela se casasse com um jovem rico, de tradicional família. Porém era pagão este jovem, não acreditava na doutrina cristã, nem era batizado. Nesse ínterim, entre namoro e noivado, a mãe da menina Luzia, adoeceu de doença, grave, incurável. E Luzia que era devota de Santa Águeda, levou sua mãe até o túmulo da santa de sua devoção. E eis que milagrosamente a mãe de Lúcia, nome antes da ordenação, ficou curada. Depois dessa experiência de cura, a mãe acabou concordando que a filha seguisse a vida religiosa. Consentindo inclusive que distribuísse o dote, que recebera do noivo, entre os pobres. Revoltado o noivo rejeitado, denunciou Luzia, ao procônsul do império romano. Na época os cristãos eram perseguidos e mortos, por negarem os deuses pagãos. Foi ameaçada de ser colocada num prostíbulo, sobre isso teria respondido: “O corpo só se contamina se a alma permite”. Mesmo assim os soldados receberam ordem de carregá-la. No entanto seu corpo pesava tanto que dezenas deles, não  conseguiam o intento. Levada ao cárcere, teve seus olhos arrancados, porém no dia seguinte estavam perfeitos como se nunca tivessem sido tocados. Por não concordar em oferecer sacrifícios aos deuses de Roma, diante de Cesar,e nem quebrar seu santo voto de castidade, foi decapitada. Antes da execução pronunciaria esta frase: “Adoro a um só Deus verdadeiro, a Ele prometi amor e fidelidade.”

Acabada a história de Santa Luzia, e a cortina negra da noite já tinha escondido do mundo o azulão chapiscado de nuvezinhas brancas e vasta luz. Era hora do Ângelus, de um rádio lá longe noutra casa vinha a oração recitada em latim.  Foram todos convidados a rezar uma Ave-Maria, e um Pai Nosso. Porém ninguém naquela casa sabia pronunciar as orações. Bem como nenhum dos filhos de Eunice era batizado. Ganharam dos visitantes, um catecismo e um terço de presente. Prometeram daquele dia em diante, irem à igreja pra missa das crianças, aos domingos pela manhã. Ao sair na rua uma estrela com um brilho especial pairava sobre as casas lá pras bandas dos montes aonde o sol se havia escondido. Aquela estrela era Santa Luzia olhando para nós. Mas a santa tinha um olho só? Quis saber a filha de Eunice. Não Lúcia, como ela está piscando conseguimos ver apenas um dos olhos.


Fabio Campos  

Trinta Mil Dias

Noite alta, em negrito, pairada sobre o sertão. A torre da igreja, gigante de olhos fechados. Fabuloso maquinário abrigado ao cérebro. Descomunal engrenagem de contar o tempo.  Imperceptíveis batidas de coração, solitário. De repente, a folha de aço do sino, pelo badalo bigornada, e queda o silêncio desacordado. Uma trinca de compassadas badaladas anunciava às três horas da madrugada. Caminhando pela Avenida Coronel Lucena, ia o boticário Olegário Pimenta. Projetada do seu vultoso corpo, alongada sombra, feito cão de guarda, aríete espetando o calçamento a sua frente. Banhada de luz da lanterna do poste, a rua, as casas, a calçada. Seu Pimenta nem sabia mesmo em que pensava, talvez no cafezinho fresco que degustara a pouco na mercearia do compadre João Soares. Nas reminiscências que os demais companheiros trouxeram, só pra rirem e se divertirem. Mas como achava bonita a madrugada. Lembrava que lá trás na juventude tivera a intenção de lançar um livro, tantas coisas já escrevera.

“Já ia alta à noite. Véspera de fim de semana. Pelas ruas de Santana, alguns jovens, trajando seus impecáveis ternos de flor à lapela, e chapéus elegantes na cabeça. Um litro de bebida passando de mão em mão, violões e algazarras. Feito bloco de fantasmas vagabundos, vai entrando pela Rua do Barulho. Se vão deixando para trás, a melodia tonta perdida na etérea neblina, e vai esbarrando nos madrigais. E tenta, quase sem conseguir, deslizar pelas frestas da janela, da sacada da doce normalista que àquela hora dormita e sonha, sonho em que seu amado como que saído do livro de conto de fadas, montado em seu belo cavalo branco vem buscá-la. A cidade dorme. A lanterna do poste derramando sua luz alaranjada, encima do ladrilho onde outrora os passantes passavam apressados pros seus destinos. Becos escuros, cri-cri dos grilos, coachar do sapo, vidas inferiores nos ermos. Donde o bêbado arriado sob uma poça de urina também dormia, pesado e descompromissado sono dos justos. Lá longe o horripilante chiado da rasga-mortalha, sussurros, pragas de mau agouro. Ainda mais longe o galo, arribando a cabeça, estufando o papo, estalando as asas, explode num canto estridente, reclamando o dia que teimava em não querer amanhecer.”

Matinas (rezar as três da madrugada)
Agora Lábios meus
Dizei e anunciai
Os grandes louvores
Da virgem, Mãe de Deus
Sede em meu favor
Virgem soberana
Livrai-me do inimigo
Com vosso valor
Glória seja ao pai
Ao filho e ao amor também
Que é um só Deus
Em pessoas três
Agora e sempre
E sem fim Amém

O sargento reformado, negro Sedecias Boaventura, todos os dias, as seis da manhã, descia a ladeira que ia da Rua Benedito Melo pra antiga Rua do Sebo. Preferia ir pelo beco estreito, de calçamento de pedras largas que dava justo na oficina de Quincas sapateiro, defronte ao ateliê de Juca alfaiate. Na companhia dos dois rumariam pro bar de Seu Antonio Pacífico. Uma vez ali, a prosa tinha mote garantido, da boca de cada um, brotariam os temas de sempre. Quincas falaria de futebol, começando pelo Ipanema Atlético Clube, indo descambar pras bandas do Rio de Janeiro, os últimos clássicos no fenomenal tapete verde, do estádio Mário Filho, imitaria João Saldanha e Mário Vianna, da rádio Globo, narrando gols que marcaram gloriosas vitórias do seu “mais querido” Flamengo. Provocando vascaínos e fluminenses. Juca poria um ponto final na contenda futibolística trazendo-os de volta a Santana do Ipanema, e falaria dos últimos acontecimentos no cabaré de Dona Brejão, diria de um comerciante, um conhecido matador de porco, da Rua Tertuliano Nepomuceno, envolvido com duas raparigas, uma delas enciumada, acabaram brigando por ele. O triângulo amoroso teria terminado na porta da cadeia Pública. O negro Sedecias sairia com uma história no mínimo curiosa, o que já fazia parte do rol de fatos por ele contado. Teria dito que no último sábado, na hora do almoço, lá no sobrado, na Pensão de Maria Sabão, conhecera uma velha cigana, das bandas de águas Belas, que depois de contar verdades sobre sua vida passada, acabou lhe contando uma história.
“Seu sargento, pode me acreditar, antes de vir pra cá, esta noite eu tive um sonho, no sonho dizia, que ia chegar aqui em Santana, um homem muito sabido. Esse homem, vindo do Pernambuco, ia prever alguns acontecimentos muito importantes: a morte de um político, a morte de um padre, e (fez uma pausa, se benzeu três vezes, e concluiu profética) a queda da torre da igreja matriz de Senhora Santana! Mas é assim Seu sargento! Muitas vezes é preciso interpretar o significado aquelas palavras! A queda da torre pode ser o desaparecimento da imagem da Santa. Uma pessoa má pode vir a se apossar da imagem original. A que foi consagrada pelo bispo, e daí coloca outra imagem qualquer, no lugar. E quem vai sofrer com isso? O povo! O castigo vem pode ter certeza!”

Sexta (rezar ao meio-dia)
Deus vos salve, Virgem
Da trindade templo
Alegria dos anjos
Da pureza exemplo
Que alegrais os tristes
Com vossa clemência
Horto de deleites,
Palma de paciência 
Sois na terra bendita
E sacerdotal
Sois da castidade
Símbolo real,
Cidade do Altíssimo
Porta oriental
Sois a mesma graça
Virgem singular,
Qual lírio cheiroso
Entre espinhas duras
Tal sois vós senhora
Entre as criaturas
Ouvi Mãe de Deus
Minha oração
Toquem em vosso peito
Os clamores meus

Na pia batismal, registrado nos livro dos cristãos, filhos de Deus, e irmão de Jesus Cristo, como José Mariano Piano Quixabeira. Porém todos o conheciam desde o sítio Cava Ouro onde nascera, próximo ao povoado Riacho Grande, e em toda Santana Ipanema, pelo singelo apelido de Zé do Relógio. Do seu falecido pai, que era pernambucano, aprendera a arte de consertar as máquinas de medir o tempo. Consertava e fazia manutenção, desde um simples relógio de algibeira, ou de pulso, aos de pêndulo, indo até os colossais carrilhões de torre de igrejas. Por acaso nos encontramos na porta da igreja, a hora terceira. Não tão acaso assim. Todos os dias ele chegava, exatamente àquela hora aos degraus da matriz de Senhora Santana. Estava ali para fazer a manutenção do relógio da torre. Primeiro escutava as três badaladas, conferia a intensidade do som, o timbre do aço, e comparava a exatidão da hora, com um relógio que trazia no bolso, acondicionado dentro de uma caixinha de óculos. Somente depois disso iniciaria a escalada rumo ao maquinário no alto da torre. Neste dia porém, tinha uma história pra contar.

“Olhe seu moço, eu fui convidado pelo padre desta paróquia de Senhora Santana para consertar o relógio da Igreja que estava atrasando e sem manutenção fazia dias. Combinamos o preço, e tudo bem. Esse serviço que eu faço, não é fácil, é preciso entender de muitas coisas. O senhor por acaso, sabia que cada um de nós tem um relógio dentro da gente. Isso mesmo, ele está marcando os dias, as horas, os minutos, e os segundos que cada um vai viver. E está contando em contagem regressiva: quando zerar, morremos. É um relógio invisível ao olho humano, só Deus e os anjos do céu enxerga. Nosso anjo da guarda vê, e sua função é vigiar para que nada nos aconteça até nosso relógio de vida cessar. Meu pai contava que um dia a torre dessa igreja ia cair. Ia cair muitas vezes, mas iam ser levantadas outras no lugar. Depois de muito estudar foi que entendi, ele se referia não a torre propriamente dita, mas aos padres que passaram por essa paróquia, sempre que morria um padre era como se a igreja sofresse um abalo. Andei fazendo umas experiências e constatei que a torre está se inclinando, é uma inclinação de zero virgula zero, nove graus, por ano, para o leste. Quando a inclinação for tal que a vértice da base não fizer mais ângulo com o ápice da torre ela cai. Segundo meus cálculos isso ocorrerá daqui a trinta mil dias. Tempo máximo de dias de vida de um homem. E irá acontecer exatamente as três horas da tarde, hora em que Jesus Cristo foi morto na cruz.” 

Vésperas (Rezar ao cair da tarde)
Deus vos salve relógio
Que andando atrasado
Serviu de sinal
Ao verbo encarnado
Para que o homem suba
As sumas alturas
Desce Deus do céu
Para as criaturas
Com os raios claros
Do sol da justiça
Resplandece a Virgem
Dando ao sol cobiça
Sois lírio formoso
Que cheiro respira
Entre os espinhos
Da serpente a ira
Vós aquebrantais
Com vosso poder
Os cegos errados
Vós alumiais
Fizeste nascer
Sol tão fecundo
E como com nuvens
Cobristes o mundo
Ouvi Mãe de Deus
Minha oração
Toquem em vosso peito
Os clamores meus.


Fabio Campos

Áurea e Adamantina


Áurea e Adamantina, duas mulheres que conheci e de que vamos contar. É preciso que se diga, ambas jamais se conheceram. Contemporâneas, tendo uma, já vivido mais que a outra. Muito mais, que apenas átomos de carbono possam mudar, e separar elementos. Tornando-as tão distintas. Uma, suave, tenra, macia, candura em flor de idade. A outra já avançada em idade, porém inexorável, pétrea, feito Bruce Lee. Ao menos um fato as unia, foram as duas, estudantes da Escola Municipal Senhora Santana. Tomado fui, de forte comoção ao ver dona Adamantina pela primeira vez. Ao entrar na sala de aula, lá estava. Destacava-se frente à algazarra de trinta e poucas cabecinhas irrequietas dos seus colegas de classe. Deslocada, intrusa Adamantina. Naquela época, com setenta e poucos anos. Incólume, misturava-se a uma turma de meninas e meninos, com idade de serem seus netos. Doía-me perceber que em meio à bagunça reinante, pouco se fazia conta de sua presença. Ao entrar percebi-a dedicada a extraordinária tarefa de domar as mãos cascudas. A muito custo, a façanha de manter firme o lápis entre os dedos. Apertava tanto que lhes fugia o sangue das falanges. E as letras do seu nome, iam surgindo uma a uma. Garatujadas ora sobre, ora sob, a linha da folha de papel branquinha do caderno.

Quase um decano havia se passado até nos encontramos outra vez. Num velório de uma amiga minha e dela, o reencontro. No silêncio daquele ambiente onde as pessoas velavam e oravam o esquife, tive a oportunidade de observá-la melhor. Ali se mostrou muito mais serena que antes. Quase dez anos, e praticamente nada havia mudado em si. Algo que sequer a denotasse mais velha. O tempo tem desses artifícios, de moldar as pessoas, dando-lhes a aparência que lhe aprouvesse. Somos obras originais e sem retoques, de extraordinário artista, senhor tempo. Dona Adamantina, em tudo lembrava uma velha índia, da cordilheira andina, boliviana. Seu surrado e negro chapéu coco, em sinal de respeito ao evento ali ocorrendo, trazia-o à mão. O que indubitavelmente punha a mostra sua luzidia cabeleira negra derramada duramente até a altura dos ombros. Sobre o porquê de ter parado de estudar, tinha uma história pra contar.

Contou coisas de sua infância. De quando completou nove anos de idade, obrigada a trabalhar na roça. Seu pai o senhor Manoel Brasiliano, era homem bruto, de poucas palavras. Sua mãe, dona Rosário da Divina Pastora, no mundo colocou dezenove divinas criaturas, ao mesmo tempo humanas. Pelo menos seis deles não vingaram. Adamantina estava entre os sobreviventes. E todo ano, quando Deus punha no céu seus sinais de que próximas estavam as chuvas, início da invernada. A família toda era obrigada a ir pra roça. E disse categórica: “-Amigo! Enxada é fruto que nunca amadurece!” O sol ainda era só promessa de clarear as veredas, e na casa todos já estavam acordados. A mãe na beira do fogo preparava uma refeição a base de feijão, arroz e carne seca com farinha de mandioca, que era levada pro roçado, num saco, que tinha um cordão franzido na boca. Os pequenos ajudavam levando apetrechos, facão, foice, cabaças d’água, enxadas. Tomavam café de caco, sem coar, com pedaços de rapadura pra adoçar. E duma cuia, iam tirando com a mão, fubá de milho, untado com leite, e ovo frito. Com aquele desjejum puxavam pra meio dia. Aprendera a manejar o arado. Dizia que mesmo com aquela idade, se entregasse a ela uma pareia de bois, num arado, garantia que sozinha daria conta de um lote de vinte tarefas de terra, ao cabo de um dia de serviço. E achava aquele trabalho muito mais maneiro, que a difícil empreitada de escrevinhar seu nome numa linha de papel. E que aquele toquinho de lápis, pra ela, era muito mais complicado de domar do que uma canga de bois emparelhados no arado.

Um dia Adamantina, viu crianças indo pra escola. Achou interessante. E como iam felizes, brincando contentes. Daí concluiu que a escola devia ser um lugar bom, e teve o desejo de ir também. Ao chegar a casa, depois de mais um dia de trabalho, fatigada do serviço duro. Dirigindo-se ao pai pediu: -“Pai! O senhor deixa eu ir pra escola?”. O homem rude rebateu sua proposta, dizendo que o serviço no campo era mais importante. Adamantina já esperava tal reprovação, e contra argumentou garantindo que, o tempo supostamente perdido na escola recuperaria com o trabalho de arado. Mas o homem estava irredutível. E pra colocar ponto final naquela história, disse que moça que queria aprender a ler, o interesse era tão somente pra escrever carta pros namorados. E isso pra ele já era em si uma grande desfeita. Adamantina não dada por satisfeita, tomada de coragem, disse que ele, seu pai, era um homem ignorante. E só porque não tivera tido oportunidade, não devia privar os filhos de estudar. Disse isso de uma só vez. E correu a se trancar no quarto. O pai a seguiu, e fê-la abrir a porta. Se dizendo espantado com o que acabara de presenciar, não admitindo tal afronta, aplicou-lhe uma surra tão severa com o relho de bater nos animais, que no outro dia não teve condições de ir pro campo trabalhar, tal fora o estrago, nas costas, nos braços e nas pernas.

Áurea a outra menina, continuava menina ainda. Apenas dezena e meia de anos tinha, desde a última vez que a vi. Filha de camponeses, também viera do campo. Cabelos encaracolados, derramado até o colo, traziam a cor da avelã, de adocicado perfumo nos cachos. O que mais atraía em seu rosto fino, eram os olhos amendoados, e íris cor grafite. Perspicaz, nas aulas de ciências queria saber o porquê de certas coisas. Se dizia apaixonada pelas palavras e coisas abstratas. A matéria lhe punha certo receio, pelo caráter transitório, porque tudo lhe parecia tão volúvel talvez. O que tanto a gente desejava num dia, noutro poderia não mais querer. Teria um dia, desejado ser menino, só pra ter mais liberdade. Tomar banho na chuva sem blusa, sem a preocupação de cobrir os seios. Queria não ter o desconforto do fluxo de sangue, a cada mês. Achava chato ter que se depilar. Queria saber tin-tin por tin-tin a história do hímen elástico, e se os meninos conseguiam saber se uma menina não era mais virgem só pelo andar. Queria mesmo era jogar bola no campinho, ficar na rua até tarde como seus irmãos podiam. Só porque eram meninos, achava injusto isso. Por outro lado gostava de ser menina. De sentir-se feminina, vaidosa, de se olhar no espelho, fazer maquiagem, usar brincos, pulseiras, coisas que estavam na moda. Queria ter um bumbum maior, pra não ter vergonha de vestir biquíni, por se achar muito magra. E que às vezes, só às vezes, achava meninos tão bobos. Deles que zombavam, e ralhavam ao folhearem, sem autorização. seu caderno. E se encontravam poesias feitas por ela, recitavam em alta voz só para colocá-la em situação vexatória.

Disse-me um dia: “-Áurea Cândida! Acho meu nome horrível!” Tentei persuadi-la do contrário, dizendo-lhe que nomes possuem significados interessantes. E importava buscar a essência das palavras. Por exemplo, áurea significava algo feito de ouro, grafita era um mineral, aquele da ponta de seu lápis, precioso tanto quanto o diamante, e o que separava um do outro em grau de dureza, era apenas um rearranjo nos átomos de carbono que cada um possuía. Cândida vinha de candura, pureza. E que a palavra candidato vem de cândido. Lá na Grécia antiga, os senadores vestiam-se de branco para representar a pureza, de seus atos, na tomada das decisões em favor do povo. Ouviu atentamente a explicação. Para em seguida começar a escrever, creio que mais uma de suas poesias. Quanto ao seu nome, estava lá no meu diário de classe: Áurea Cândida Grafitas de Matos.


Fabio Campos

Finados

Dia de finados é dia bom pra ler um livro. No dia dos que já partiram, é dia de pensar na vida. Dia quente de verão, dia bom pra refletir. O sol nasce mais cedo. O mormaço, o calor de cedo começado, vem dizer que não é dia muito bom pra ir ao cemitério. Dia de mistério.  Dona Maroca morava na Maniçoba. Todo ano na véspera de finados, ia com seu neto Marcelo até o campo santo, lavar a catacumba da família. Lavava, arrancariam as ervas daninha, depositaria um ramalhete de flores, e orações. E dizia a sim mesmo, finados é um dia que está se perdendo no tempo. Onde já se viu um dia santo como esse, a gente passa nas ruas, nas praças, os jovens estão bebendo, se divertindo, o som do carro ligado a toda altura. -Santo Deus! Aonde esse mundo vai parar?

Na casa de Seu Benjamim, ele fazia questão de ir com a família inteira. Dona Isaura acordava bem cedinho fazia café reforçado, na mesa um cuscuzeiro fumegante, uma jarra com leite, num tacho enorme ovos de galinha de capoeira fritos. Pães num saco de pano com renda de filó nas bordas. Manteiga, uma panela de macaxeira fumaçando no fogão. E o cheiro de charque torrado ia lá longe aguçar os olfatos dos viventes, e dos que já morreram que vagavam errantes. Intumescido o focinho dos felinos, e de saliva se enchiam os dentes dos caninos. Dez filhos, todos eles iriam. Lucinha, uma das filhas moça de seu “Bêja”, naquele ano, não pode ir porque estava menstruada. Moça “naqueles dias” devia evitar entrar em cemitério. Os mais velhos diziam que não era bom, apenas diziam, não explicavam porque, ai de quem perguntasse. Alguém arriscava dizer que se a moça tivesse perto de suspender o fluxo, se entrasse lá, a regra, acabava se estendendo por mais dias. E isso era o bastante para quem queria uma explicação. Dona Maria José a parteira morava pra lá do bebedouro, todo ano ia fazer sua penitência. Naquele ano deu de aparecer uma ferida na perna, da sua erisipela recorrente. Foi, mas ficou no portão, não entrou. Tinha medo que a ferida demorasse a sarar. Assistiu a missa, de longe. Fez sua oração pros seus entes queridos, pensou com saudade em Durval, seu falecido marido que era marceneiro, um acidente vascular cerebral o levou, já fazia três anos, rezou. E sua reza fez de tudo pra subir aos céus, sufocada pela algazarra reinante no mundo dos vivos. Os vendedores de vela, e do sorveteiro a toda altura anunciava pros viventes, e os mortos no seu dia ouviam, porém não sentiam os sabores dos picolés que tinha na caixa de isopor a tiracolo.

Adonias e Zé Cutia eram amigos, dois serventes de pedreiro, gostavam de beber cachaça todo dia. A depender da ocasião, o dia todo. Encontravam-se na bodega de Ciço “Pé Cotó”, bem no meio da ladeira da Rua Santa Luzia. Maria do Carmo fazia-lhes companhia. Nos vigores da juventude Do Carmo fora linda meretriz. Os melhores anos de sua vida vivera no baixo meretrício. No Cabaré de Suné, uma daquelas casinhas acanhadas, que margeiam o aterro da Avenida Pancrácio Rocha. A música alta, copos cheios de cerveja. O perfume, a muito custo conseguia disfarçar o cheiro do lamacento lodaçal, em que transformaram o Camoxinga, lá no bairro Artur Morais. Depois de velha, Do Carmo virou macumbeira e ganhou o apelido de Maria Paçoca. Naquelas mentes encharcadas de vapores de álcool, surgiria um plano macabro. Na véspera do dia de finados, resolveriam que os dois homens, iriam invadir o cemitério pra decapitar um defunto. Segundo a rameira, num ritual de magia negra, a cabeça do finado, imploraria para que lhes devolvesse o corpo. E eles prometeriam que só faria o que pedia depois que relatasse os números da loteria, e os três ficariam ricos.

Depois de escalarem o muro, eis que estavam no cemitério. Já sabiam direto aonde ir. Eles mesmos tinham ido pro sepultamento de um ancião, um agricultor, que se chamava Pedro Cândio e morava na Rua de Zé Quirino, falecera naquele dia. Zé Cutia levava um facão e uma enxada, Adonias portava uma lata de querosene vazia pra colocar o sinistro dentro. Tudo era breu, acostumados à escuridão vislumbravam os contornos das tumbas arribadas de cruzes. Delas erguidas em alvenaria, delas gradeadas de ferro, delas nuas, somente um montículo de barro. E as mães piedosas, mais tarde acenderiam velas, e chorariam seus filhos ali sepultados. Se criança ganhavam o nome de anjinhos.

 Seguiam, e o que reinava era o silêncio. O álcool anestesiava-lhes os pensamentos, o que ajudava a disfarçar o medo. Ignorando o efeito do anidro, os sentidos lhes davam nos nervos. E qualquer ruído, além dos produzidos por eles mesmos, respiração ofegante, chiado dos chinelos e deglutição de cachaça, era motivo de calafrio. Pra chegar até a sepultura de Seu Pedro Cândio eles passariam em baixo de um pé de castanhola. Era um pé amêndoa razoavelmente pequeno, seu tronco fino e copa reduzida, lembrava a silhueta duma avestruz gigante, no meio duma cidade fantasma. De repente entre uma catacumba e outra, os dois homens se depararam com um enorme lobo negro, de pelo viscoso e eriçado. O grotesco animal nem parecia estar em posição ameaçadora. Sequer dava pra ouvir o rosnar de sua ira, ou o ranger dos seus dentes, nem a baba viscosa a correr-lhe pela boca. Porém o que fez os dois viventes, no campo dos mortos, se encherem de horror, era que no lugar dos olhos, o cão tinha duas bolas de fogo. E havia algo preso a sua boca. Isso mesmo era uma cabeça humana! O maldito trazia a cabeça de Seu Pedro Cândio presa aos dentes pelos cabelos.

Os infelizes lacaios, largando o que traziam, saíram em desabalada carreira. Tanto era o medo que os cegava, e já não sabiam pra que lado ir. Saltavam as catacumbas, feito trôpegas gazelas desengonçadas. Pro lado pra onde estavam indo havia um velho poço, desativado, coberto com velhas tábuas. Um e outro pisaram em cima, com o excesso de peso as tábuas cederam e os dois foram tragados pela boca do poço. Engolidos por mais de vinte metros de abismo, em trevas e água podre despencaram. No fundo pontiaguda vara de vergalhão os aguardava para o abraço da morte, e os espetou dum lado a outro. Com o impacto abriu-se enorme fenda donde jorrou sangue aos borbotões. Nem se deram conta que transpassados pelo ferro pareciam nacos de carne num espeto pronto pra assar no fogo. Tinham pressa de fugir dali, se desvencilharam do ferro, porém perceberam que seus corpos permaneciam lá, inertes. Não importava que ficassem então, precisavam sair dali. E escalaram a fétida parede de pedras do poço. Ainda deu pra ver ratazanas enormes chegando sobre eles mesmos, atraídas pelo cheiro de sangue.

Ainda era madrugada quando chegaram a casa de Maria Paçoca. Ela já havia iniciado os preparativos para o ritual de bruxaria. Várias velas acesas no chão formavam um cinco Salomão, no centro vários objetos grotescos, cabeça de caveira, dentes de animais entre outros. Eles entraram, já não precisavam que ninguém lhes abrisse a porta. Aproximaram da mulher, que não dava conta de suas presenças. Em vão tentaram falar-lhe sobre o ocorrido, simplesmente ela não os via. Com raiva começaram a derrubar o que havia na mesa, cartas de tarô, uma estatueta do preto velho voou sobre a cabeça da mundana. A do capeta vermelho sorrindo caiu e partiu o pescoço. A garrafa de cachaça tombou e um incêndio se alastrou rápido. As labaredas num segundo consumiu o forro da mesa e se espalhou como agilidade. Maria Paçoca sob o feito de maconha, em vão tentava salvar seus malditos relicários de praticar magias. Nem se deu conta que o fogo lhe lambia as vestes, e seu cabelo em chamas dava-lhe o horripilante aspecto de uma medusa flamejante. Pra finalmente tombar e ir aos poucos vislumbrando entre as chamas seus dois amigos. Sem se darem conta que agora eram finados.

Fabio Campos.