Melancolia 4º Episódio da Série Delliru's




O menino triste. Não falava. Não conseguia falar. O menino morava na ribanceira do rio. A mãe, os irmãos pequenos, o rio. Lá embaixo, chorando baixinho. O rio nada podia fazer. Medo, não tinha, de morrer. A serra olhava com tristeza. A casa de taipa, coberta de palha, solidão. E o menino que não falava, via. Melhor dormir, o dia todo. Dormir pra enganar a fome. Brincar, dava uma fome danada. Melhor dormir. A escola, tinha gosto de comida. Os outros meninos. Encrencavam o menino que não falava. Uma preguiça. Fazer atividades. O cheiro de merenda ia lá pras salas de aula. O recreio, tão aguardado. A irmã, magra. A cabeça cheia, de nada. Cabelo ruim. O vestido roto, pequenos seios. O apelido que odiava, de longe, eles gritavam. Ah se estivesse perto... Briga, seria na certa.
  
REFLEXOS...
Finalmente, a mãe saiu da cama. Finalmente. Motivo de alegria, vê-la de pé. Indo até a cozinha, devagarinho, caminhando. Só por isso. O dia ficou diferente dos outros. Diferente de todos os outros. O passarinho urbano. Um feio, bonito. O menino que não falava. Não era triste. Nunca fora. Triste era o que o julgava triste. Assim o via, assim ficava o dia. A tristeza, olhava pra piscina. Abandonada, piscina. Tristemente sozinha piscina. Um pato amarelo, brinquedo, boiando. Outros, ao fundo melancolicamente. Moça. A revista. Outra vez, mentia. A moça, a pele molhada. A moça, poesia.

O desenho, amassado ia pro lixo. O rádio, radiando. A janela, janelando, a estrada. A estrada indo. O carro que nunca dava problemas. Pensamento, problemas. As letras quase não obedeciam. O ano acabando, A esperança acabando. O livro acabando. O caderno acabando. O dia acabando. As nuvens acabando, a água acabando. O dinheiro acabara fazia tempo. O calendário do coração de Jesus, esmagado, a parede. Um fogo só. As folhas em branco, tão duras. As folhas secas, da goiabeira, vagabundas. O pé de manga testiculando seus frutos. O céu ficou. Um céu maior. O céu pássaros, céu músicas, melancolia céu, de tantas nuvens. Almas de tantos céus. Uma para cada.

PEDAÇOS...
Se ao menos fosse setembro. De que adiantaria querer que voltasse. De nada adiantava lamentar. De nada adiantaria querer. O que jamais poderia voltar. O carro sempre vai pra frente, o dia vai pra frente, as horas iam pra frente. A praça logo ali, em frente. O banco esquelético. Cadavéricos pensamentos. Perguntar-lhe-ia fosse o que fosse. Desistira. Sobre músicas, nada tinha a discutir, aceitaria opinião. Ninguém tinha.  

As casas, quarando, o natal. As casas, paradas, meticulosamente paradas. Tão. Estúpidas em suas posturas gélidas. Maquiadas pra festa. Impávidas de nunca oportunidade. A rua desenhada, de graça. A rua apressada interrupta, abrupta findando. A rua, descaradamente, estúpida de céu, de nuvens novas. As crianças sonhavam. Brinquedos novos, brinquedos qualquer, só que novos. Os pensamentos teimavam, no velho modo de pensar. O velho a pensar. Parados, enrugados. Enrugando horas, fermentando dias. Bolorentos, lentos séculos.

Nos últimos dois mil anos, nunca Deus dissera nem um a. No entanto falava-nos todo dia. Todos os dias criando um mundo novo. A cada manhã criava. E cria. Em cada amanhecer. Nem precisaria de calendário novo. Pra quê? Se todos já sabiam o que fazer. O que iria acontecer. Aconteceria. Abruptamente, impreterivelmente. Inexplicavelmente. Chovesse ou fizesse sal. Fizesse sol. O homem do campo iria pra roça. O barbeiro pra barbearia. O menino pra escola. O carroceiro a tanger o burro. Os juízes, os seus crimes. E todos, indo pros seus afazeres como se fossem viver eternamente. Ledo engano, cedo engano. Medo, engano...

CAMINHOS...
Motivos, pra mudar de vida. Queria. Motivo pra viver. Teria. Prometeria parar de beber. Tinha que parar. Tentaria parar de fumar. Tinha que parar. Jamais fumara, por si só. Sabia, não conseguiria. Sabia, ao menos tentaria. Faria uma promessa. Algo que exigisse algum sacrifício, algo físico, que doesse. Andaria mais de trinta quilômetros. Talvez. Como naquele ano. Quem sabe a última vez, que iria até a pedra do Padre Cícero. Acenderia, outra vez, uma vela. E se o calendário acabasse, e tudo virasse pó? E cinzas. Começaria tudo de novo, do começo. Uma dieta. Faria um regime. Correria até cansar. Mesmo que no outro dia não conseguisse nem sair da cama. Precisava pra sentir o corpo. Sacudir a poeira das horas, a gordura dos dias. O mofo do tempo. O cansaço, a incerteza, a certeza. A exaustão. Cansado de certezas. Precisava cansar de incertezas. E se morresse por isso? Não poria a culpa nos médicos, nem no tênis que fez bolhas nos pés. Se morresse poria a culpa na morte, que escolheu seus melhores momentos para vir buscá-lo. Barganharia.

A HORA...
Bom dia moço. Bom dia. Quem é a senhora? A morte. E o que quer? O que acha que quero? Veio buscar-me? Isso mesmo. Mas, já? Nem vivi direito. Pois é. Tempo foi o que não lhe faltou. Pra quem tem esse nome, e carrega consigo tão infame desígnio, até que a senhora é bonita. Guarde seus elogios, meu caro. Sei muito bem quem sou. Sou tudo o que ninguém quer. Ninguém me deseja. Não, em sã consciência. Detestável, execrável. Chego trazendo a paz. Paz que ninguém deseja. “A pior vida, é melhor que a morte.” Pra me prejudicar, o diabo inventou esta frase.

DELÍRIOS...
Começaria tudo de novo, do começo. Chovesse ou fizesse sal. Ou fizesse sol. Sobre músicas, nada tinha a discutir, aceitaria o que quisesse. A moça na piscina era a professora. Tão bonita de biquíni. Pele alva, bronzeando. Os cremes cheirosos. Os protetores caros. O chapéu, a toalha colorida. Lembrou do dia que viu a irmã nua. No rio. Desceu pra tomar banho. A irmã já estava lá. Sozinha. Ao vê-lo. Com uma das mãos cobriu um dos pequenos seios. O antebraço dessa mão cobria a auréola do outro seio. A outra mão docemente sobre a púbis, quase sem pelos. Ficou agachada, quase de joelhos. A margem d’água. Falava-lhe como se estivessem no casebre.  Despiu-se, mergulhou, bem fundo.

Na noite de natal foi à casa de uns amigos. Os ânimos exaltados. As músicas natalinas afagando corações. Incentivado pelos colegas tomou um copo de vinho. Até então jamais havia provado bebida alguma. O peito se aqueceu. A cabeça leve, levou-o as alturas. Sinos soavam tão longe. As estrelas pisca-piscavam. Os piscas-piscas estrelando. A noite lilás-rubro-lilás. Os faróis dos carros lançavam jatos de cor, todas, sobre o asfalto. A pista um arco-íris cintilante. Saíra sem ninguém perceber. Andou, andou até se cansar. Entrou no mato. Apesar de conhecer o caminho, várias vezes, tropeçou. Caiu na ribanceira, desacordou. 

O menino triste que não falava, porém em vingança pensava. O menino, a ribanceira do rio. A mãe, os irmãos pequenos. Chorava. Chovia baixinho. Balbuciou, o rio, nada poderia fazer. Medo da morte, já não tinha. Alguém ia ter que pagar. A casa de taipa, coberta de palha, e pronto. Chovia, o coração do menino. Por que faziam isso comigo? Melhor dormir. Dormir e sonhar com um mundo limpo de apelidos. Melhor dormir. Os colegas do menino precisavam duma lição.  A irmã, magra, o pichaim preso num laço. Os pequenos seios. O apelido que tanto odiava. Se perto estivesse de um deles enfiaria a faca no bucho. Disse isso, a si mesmo, com tanta força que cortou o próprio pulso. Sangue, sala de aula. Sangue...

Fabio Campos, 21 de dezembro de 2018.

Angústia 3º Episódio da Série Delliriu's




O ônibus avançava na intensa avenida, sobre o asfalto molhado. Chovia. Cair de tarde de dezembro. Os prédios de apartamento, molhados, revigorados nas cores. Antes vivo do que mortos. Os faróis pelos pingos ofuscados. Os luminosos de propagandas acendiam o entardecer úmido. A cidade decorada, pro natal. Outro ponto de parada. A freada. O balão de ar esvaziando. A porta se abrindo. O rapaz, dum salto entrou. Alívio, depois de ansiosa espera. Buscou um acento, com o monobloco em movimento. Sentou-se numa poltrona do corredor. O cansaço de um dia corrido cobrava-lhe um cochilo. O corpo pedia. A mente, com tudo, não obedecia. A mente, ia revirando tudo o que havia feito naquele dia. Pensar, o impedia de relaxar. O sono reparador tão necessário, que não viria. Sabia, não viria, não conseguia dormir viajando. Olhos fechados, ao menos isso. Resolveu brincar de imaginar, onde, estaria passando a cada momento. Tentaria adivinhar. A cada tentativa abria um olho. Um declive, e o corpo era empurrado pra trás. Uma lombada, e o pulo no acento. Nas curvas, e a cabeça pendia pro lado. Onde será que já estaria? 

O ônibus parou. Pensou, mais um passageiro. Silêncio. Continuava de olhos fechados. De repente, sentiu algo duro, metálico empurrando-lhe o ombro com força. E uma voz grave ordenando: Documentos! Identifique-se! Abriu os olhos. O que viu? Um enorme olho negro, do cano de uma espingarda calibre doze, a poucos centímetros do seu rosto. A imagem seguinte era o rosto lívido de um homem. Era um homem pardo, barba cerrada, olhar de poucos amigos. De colete preto. Segurava firme a arma. E repetiu a ordem: Documentos! Identifique-se! Instintivamente buscou a carteira no bolso.

A pergunta que fazia a si mesmo era, como podia alguém estar triste diante do mar? Véspera de natal? Ele estava. Ficar triste não resolvia nada. Não naquele instante. O mar realmente não revelava todo seu esplendor. Chovia. Apenas isso não era o suficiente para se estar triste. As ondas molhadas de chuva quebravam na praia. Ininterruptas, como se dissesse é sempre assim. O vento frio, talvez gélidos, os ossos expostos dos lastros, das empanadas enroladas das jangadas, na areia. É triste uma jangada parada na praia. O livro, pra não desmanchar teve que ir parar debaixo da camisa. Os escritos virariam nada se resolvesse enfrentar a tempestade de peito aberto. A alma encolhida dentro do peito. Amornada pela tristeza.

A casa de Seu Joaquim, tão rude. Casa de afagar tristeza. Não tinha um pingo de medo da chuva, do mar também não. Uma pena, pois devia ter. Pra montanha chuvosa olhava com olhar de desdém. Pro céu olhava como quem olha pra Deus. Com respeito, sem medo. Apenas perguntando por quê? O farol semelhante a um Cristo, de pé, o olhar no horizonte, um monte de esperança dentro dos olhos. Os filhos que ainda conseguia abrigar no seu seio aguentavam trancos e barrancos. Os que um dia foram embora, um dia qualquer voltariam. Geralmente a cada fim de ano. E fariam festa junto aos que ficaram. Quando se foram pra cidade grande. Se arranjar na vida, lembravam-se tanto dali. Lembrava dos que ficaram, da escola primária, dos amigos de infância. Da areia do mar, da pesca, da chuva muito parecida com aquela. Perdera a conta das vezes que molhara de saudade e soluços os travesseiros. Não precisavam dizer, todos sabiam. As cartas chegavam com o papel roto, algumas palavras borradas de lágrimas enxugadas com a barriga do braço.

Soluçava e não era gripe. A mulher deu-lhe um unguento pra passar no peito, no nariz. Sabia aquilo jamais resolveria. Não resolveria porque não era nada físico. Era soluço da alma. Não existia remédio pra curar soluços da alma. Nem noite de chuva, nem raios e trovões que acabavam causando queda de energia elétrica. Se já era triste com energia imagine sem. Se triste era a tempestade na praia quanto mais na alma. Se ficasse o dia, ou melhor, a noite inteira ali não teria a menor importância. Aposentada a alma, de férias o espírito. Melhor pensar no que nunca fizera. Pensar em como a vida as vezes pregava-nos algumas peças.

Eram seis assaltantes. O sol presenciara tudo, sem no entanto ter participação no crime. Chegaram gritando e atirando. Renderam o guarda logo que entraram. Tomaram uma senhora e mais outras pessoas como reféns. Trancou todo mundo no banheiro. Detonaram os caixas eletrônicos. A ação toda não durou mais que quinze minutos. Tempo suficiente pra chegada da polícia. A rua logo foi interditada. O trânsito virou um caos. Carros manobrando e voando pela contramão. Logo juntou gente nas calçadas. Muitos que iam chegando pensavam tratar-se de uma filmagem. Mas os tiros pareciam tão reais? E eram. Um policial protegido por alguns carros estacionados tentou chegar mais perto. Uma rajada de uma automática o fez recuar. Um projétil passou de raspão na sua cabeça.

O natal, não era pra ser uma festa triste. As lembranças, dos que não mais estaria entre nós. Ano passado ele, estava tão alegre, entre nós. Lembrou do menino que nasceu naquela gruta. Tinha um pai, uma mãe. Uma fogueira para o aquecer, o pai era catador de lixo. Vivia de juntar recicláveis, ferros-velho. A mãe lavava roupa de ganho. O quinto filho, acabara de nascer, naquele dezembro. Nascera no dia de natal. O pipocar dos fogos, tão distante. Tão distante, parecia não ser logo ali no outro bairro.

O menino perguntou ao pai, o que o papai Noel estava fazendo deitado no meio da rua? O pai disse-lhe que estava morto. Era um dos assaltantes ao banco. Nossa, Pai! O papai Noel virou bandido?! Aquele sim filho. Tentou amenizar. Na verdade, ele roubou as vestes do bom velhinho. Então, não vai ter papai Noel na noite de natal esse ano?

O quarto parecia que estava encolhendo. Na verdade, era ele que estava crescendo. Aquela noite em especial o quarto pareceu distorcido. As paredes, feito velas acesas, espantavam o frio, da noite, noite feliz. Triste noite de céu chuvoso. O gato dormia. Deu um forte vento. A sala escureceu, as velas apagaram. Teria que achar a caixa de fósforos. Tatearia até encontrar, no escuro. E o povo? Pra onde foi todo mundo? Um vazio, um silêncio. Ia passando alguém na rua, conversavam animadamente. Vinham duma festa.

De onde estava dava pra ouvir o mar. A viatura da polícia continuava parada a margem da rodovia. Já se passara um tempão. Um eternidade, tido e detido, dentro do veículo. Ainda mais algemado. Tempo suficiente pra pensar que perderia a noite de natal, estava preso. Tempo pra perder a esperança de voltar logo pra casa. Tempo pra pensar na burrada que dera. Viajar sem documentos. O ônibus àquela altura já chegara ao destino. A polícia continuava seu trabalho. A chuva não dava trégua. Todos os carros eram parados. Como fora esquecer os documentos em casa. Um policial se aproximou. Acendeu um cigarro. Tentou se proteger da chuva se encostando na lateral da viatura. Perguntou seu nome. Disse-lhe. Pela décima vez, perguntou por que estava sem documentos. Esquecera, simplesmente. Disse que acreditava no que dizia. Só não podia soltá-lo. Teria que levá-lo pra o distrito. Averiguar. Registrar o ocorrido.

Parecia que nada havia que pudesse aplacar aquela dor. Angústia. Dor que não doía. Dor que não passava. Um aperto dentro do peito. A esmagar-lhe o coração. Demoradamente, sem pressa de acabar. No distrito perguntaram se era “171”? “X9”? ou “Maria da Penha”?. Pediu que não o colocasse na sela. De nada adiantou, era procedimento padrão. Por que nem sempre acreditam no que dizemos? Mesmo que o que digamos seja a expressão da verdade.  A única verdade. Jesus menino nascera. Uma véspera de natal preso. Uma certeza tinha. No revellion daquele ano uma história pra lá de maluca teria pra contar.

Fabio Campos, 14 de Dezembro de 2018.

ÓDIO 2º Capitulo da Série Delliriu's




O policial sacou o revólver e deu voz de prisão. Como resposta, o caubói disparou vários tiros. Acabou alvejado o guarda, que também acertou o caubói. Tiros despedaçaram litros de uísque, arrancou lascas de madeira. Não sabia como e porque tudo aquilo começara. Sabia apenas que estava lá. Antes comodamente sentado, a mesa. De repente tiros. Dentro do peito a dor. Os dois olhos, bem abertos, crispados de sangue. Uma espécie de sono profundo foi tomando conta do corpo. O sangue tingindo o mosaico. Apagou. Letargia, vivera por aqueles anos todos. Atrapalhava o raciocínio. Martelava as têmporas. Marcas indeléveis. Irremovíveis, ficaram. Não restava a menor dúvida.

O menino que um dia fora, se estava, sentado no canteiro da praça. Chorava abraçado aos joelhos. Ficou lá um tempão. Levara uns tabefes dos quais jamais esqueceria um dia.  Tabefes desses que a vida dá, pela mão de algumas pessoas. Não sentia pena de si mesmo. Sentia ódio. As têmporas latejavam, o sangue fervia. Doía um dor difícil de doer. Ainda mais quando pensava tais coisas. Vinham-lhes outras ainda piores. Aquela surra que levara de um amigo de infância então. Odiava lembrar o quão humilhante fora. Odiava-se por não ter forças suficientes para vencê-lo. Odiava não possuir habilidades que julgava ter. Nos filmes tudo parecia tão fácil. Mais uns e outros percalços ao longo do caminho da vida. E passaria a andar armado, com um revólver Rossi, calibre vinte e dois.

E se fosse buscar onde tudo realmente começara? Teria que nascer de novo. Teria que voltar ao ventre da mãe. Viver novamente a infância. Buscar os dias de sua adolescência. Reviver os dias em que se dera em casamento. A questão era, seria possível ficar livre? Não cria nisso. Achava aquele sentir, algo com o qual teria que conviver pro resto da vida. Como um vizinho incômodo colado ao espírito, amigo confidente da alma. Se havia. Sempre estivera lá, em tudo quanto era sua existência. Sempre pronto a surpreender-lhe. Sempre.

Os olhos crispavam, toda vez que o possuía. A fisionomia parecia de outro. Se conseguisse olhar-se no espelho. E ver bem fundo nos olhos, no momento exato, talvez conseguisse ver o outro dentro dele. O que o possuía. E que tanta estranheza lhes causava. Bastava contrariar-se. E o homem pacato, do diálogo morria. Pra nascer um outro. que o desfigurava. O descaracterizava. Um que adorava contendas, amava fortes discussões, brigas. Pra onde, em tais ocasiões, ia a razão? Pouco importava, não sobrava-lhes espaço, muito menos tempo, pra pensar nisso. Não, quando esse outro lhe possuía. Razoar, verbo que só se ousa tragar junto a sensatez. Tornava-se essencial, muito mais forte que ele.

Outro dia, disseram-lhe que tinham visto o rosto do outro, dentro da sua face. Isso certamente, no auge da violência,  no topo. No clímax. Preferiu levar pro deboche, o cinismo. Dizer que se estava tornando discípulo de leviatã, achou leviano. Motivo ainda maior pra aumentar mais e mais tão execrável sentimento. Não gostava da ideia de sentir-se usado. De sentir-se invadido por quem quer que fosse. Soberbo não gosta jamais de admitir perda. Palavra extirpada do seu sanguíneo dicionário. Ainda mais quando a perda refere-se a domínio. Se havia uma saída seria tentar controlar os impulsos. Reter os ânimos. Nada fácil, quando assume o controle o ódio. Nada mais tem vez. Até sair dele. Até esfriar.

O avô falava de um adágio indígena. Dizia que dentro da gente existem dois lobos. Um que incessantemente busca tornar-nos bons, enquanto outro com igual intensidade quer a todo custo tornar-nos maus. Estão sempre lutando, um contra o outro. E quem vence?  O que mais alimentamos. A neve, e seu poder de aplacar a cólera. O frio da montanha. Entrar na montanha, enfrentar a nevasca talvez fosse uma saída. Encarar o lobo dos maus impulsos, e tentar dominá-lo. Os músculos davam-lhes sensação de força. Mas não de poder.

Um dia, chegaram dois caras, numa moto a casa. Bateram palma. De dentro via-os, porém não era visto. O que queriam? Comprar-lhe o revólver. Engraçado, como souberam que tinha um pra vender. Não dissera a quase ninguém. Foram até o quintal. O caubói avaliava o artifício de fazer buraco em gente, como um ourives que avalia uma jóia. Uma estaca velha serviu de alvo. Deu uns tiros. Acabaram fechando negócio. Depois que se foram, se deu conta do perigo que correra. Poderia ser morto. Aqueles, não restava dúvida de boa índole não eram. As sobrancelhas arqueadas poderiam servir de símbolo do ódio. Dão um aspecto violento ao rosto. O drama, a tragédia e a comédia nas encenações representadas pelas máscaras da tristeza e da alegria. E o ódio? Odiou não estar ali representado. Afinal não existe drama sem ódio. Sem mocinho e bandido. De tanto ódio encaliçaram o coração, nem conseguem mais desarquearem as sobrancelhas.

O silêncio dentro do ódio é doentio. Odiar, tão humano quanto amar. Tomados de ódio as pessoas tornam-se explosivas, espalhafatos no agir. Tomados de uma força que impulsiona com fúria, da qual não tem controle. Diferente da raiva. A raiva é momento. A raiva é rompante, o ódio pode vir com premeditação. A raiva é impulsiva. O ódio é estudo. O ódio exige discernimento. Desprendimento da alma. Os que odeiam premeditam. Esperam, têm paciência. Criam o momento certo.
O ódio, foi ter com leviatã. Foi uma conversa bem franca. Se é que isso fosse possível entre estes dois. Discorreu-lhe seu tratado, sobre o que causaria aos que decidissem dar-lhe guarida, ficar com ele. Aumentaria os batimentos cardíacos. Encheria de rubores suas faces. Dilataria as pupilas, aumentaria a pressão arterial e da retina, ressecaria a boca, causaria espasmos musculares. Aumentaria a função renal. Liberaria na corrente sanguínea taxas extras de adrenalina. Servir-lhes-ia uma sopa de sódio e potássio, a alterar o metabolismo. Promoveria uma nata de aflição no mais profundo do ser. Até desencadear distúrbios nervosos, e descontroles nas sinapses neurais. Os tiques e momos se tornariam constantes. Como podia deixar-se involuntariamente ser usado por tão vil impulso?

Ficava repetindo a mesma frase. Disse que não odiava. Mas mentia, já ia pra quase três décadas que odiava. Só que negava.  A afronta, a calúnia, falsos testemunhos, infâmias, injúrias, difamações. O desprezo, o orgulho ferido, a soberba. Um carnaval de maus sentimentos arregimentado por ele. A revolta de que lhes haviam manchado a honra. O orgulho ferido. Que honra? Não Havia desonra, onde não há honra. Havia sim ódio solúvel, cristalino, límpido, puro, correndo nas veias. Arregimentando células para metástase futura. Ódio puro. Pura subserviência a leviatã.

 Se Deus resolvesse livrá-los de tudo isso. Que pena, ficariam feitos zumbis. Intrínseco ao ser humano tais atributos, da ira, da cólera, da raiva, do ódio. A questão não é livrar-se dele. Mas como conseguir dominá-lo? Conviver sem se deixar dominar. Muitos anos se passaram.

Um dia, ia saindo do trabalho, em pleno sábado. Trabalhava num canteiro de obras. A firma construía estradas pavimentadas.  Passava do meio dia. Céuzão blue de azul. Caminhou até a margem da rodovia, na esperança de pegar uma carona. Bom voltar pra casa. O espírito cantarolava uma das músicas de Tim Maia, daquelas que faz a alma se desvencilhar das preocupações, saindo pra curtir as melhores praias do Brasil. “Descobridor de sete mares, na verdade eu sou assim”

Um quiosque meio que abandonado. Um reboque da polícia rodoviária federal. Dois policiais cochilavam. Esplendor de azulão de céu, como um mar calmo. As nuvens flutuando feito ondas. A placa de sinalização amarela e preta. A mosca no pelo do braço, refletida no rayban do policial. O som que dava pra se ouvir era das nuvens fofas, vagarosamente se beijando. De repente a calmaria foi interrompida pela chegada de um carrão vermelho. Um Car Manguia riscou cantando pneus no asfalto. Parou no acostamento. Dele desceu um caubói. Trajava com elegância camisa de botões, calça jeans, cinto de imensa fivela, botas de couro, imenso chapéu de massa branco.

Olhou pra um lado, olhou pro outro. E disse bem assim. Ô rapaz? Topa tomar uma cerveja comigo? O rapaz, a que se referia, claro, o único ali, o que gostava das músicas de Tim Maia, que topou. Invadiram o barzinho quase abandonado. Do outro lado da rodovia, um dos policiais largou seu posto. E veio vindo em direção ao bar. Nem bem se sentaram. Sacando dois imensos revólveres, o caubói perguntou: Sabe atirar? 

Fabio Campos, 07 de Dezembro de 2018.

MEDO [1º Conto da Série Delliriu's Cap. 1]



Vidraças e luz. Pessoas. Gente vária. Sala de espera. O céu do avião. Cartazes, avisos, recomendações médicas. Estúpida sincronia de passantes, ao longo de um corredor estreito. Cada um carregava no próprio corpo sua história. Histórias às vezes compartilhadas. O passado, no subconsciente. Turbilhão de sentimentos, a maioria ruim. Os compromissos poderiam acabar todos naquela sala. Tudo era questão de escolha.

A alma, que nunca envelhece. O corpo sim, esse envelhece. E adoece. Os dias vão se agrupando, feito folhas de um livro que parece nunca ter fim. Puro engano. Amarelando, vão se desbotando, virando pro outro lado. Ciclistas passavam no asfalto, com suas roupas coloridas, capacetes reluzentes, músculos ágeis. A meta chamando a seguir, em frente. Os óculos escuros. Suor suado, suor salgado. Namorados voltando da escola, de mãos dadas. Em que pensavam? O sinal vermelho pra pedestre, verde pros automóveis.

A vida indo, andando. Um cão sem rumo, nada comera até então. Revirou um resto de lixo. Guardanapos de sanduíches. Uma música gemida ao banjo, vindo diluir-se pelas frestas de sol na vidraça. A tevê solitariamente ligada trepada na parede. O apresentador do jornal, bem motivado, a noticiar uma chuva de sol, um tsunami de calor sobre a cidade. As nuvens cinzentas, marcadas pro final do mês, viriam antes do décimo terceiro, talvez.

O menino, tinha um curativo no olho direito. O velho, um tampão no olho esquerdo. Os vidros de remédios dentro das caixas tarjadas de vermelho só saíram do ambulatório, com receita médica. Os balcões de vidro, as janelas de vidro, o olhar de vidro. A carência de amor, mesmo que de vidro. A falta de compreensão, na receita médica. Os meninos sem natal continuariam sem natal. Enquanto houvesse natais. O viaduto, nada via. Cego de cimento e concreto. Os desenhos sucateados, praticamente impedidos de brincar com a cidade. Sufocados pelos entulhos de construção.

O sorvete sorveteando na mão, entre os dedos. Entrando na igreja. O sorvete e os santos. Os santos de olhos angelicais não queriam sorvete. Gravemente olhavam. A pele de cera, de protetor solar. Os pés cheios de poeira, orações e velas derretidas. A língua seca. As pupilas dilatadas. O véu na cabeça da santa ficou noutra cidade, noutra igreja, noutros tempos. O oratório, ponto obrigatório. Antes de ir pro centro cirúrgico. A fé, guardada no bolso.

O cavalo do santo, com seu olho negro. Grave pensar de cavalo. A pisar pisada de cavalo, impávido colosso de guerreiro. Os monumentos, vivendo nuvens virarem fumaça, corpos de concretos, almas de valentes que nunca esqueciam o ódio. Era o que os mantiveram vivos. Até então. Vinte, trinta, sessenta anos de ódio. Isso render-lhes-ia excelentes cânceres pulmonares, biliares. Aguardaria calmamente que envelhecessem. Não tinham pressa.

Julgar é escuro. Intuir é obscuro. A inocência é divina. As almas são feitas para a luz, nascem para luz. Adoecem se no escuro. O escuro cega. O claro também. Tudo a depender da intensidade.  A água quando viesse seria pra espalhar vida. Ceifar vidas, quando tinha raiva. O dia chuvoso aguardado com apreensão. O ciclista foi tomado pela enxurrada, não largou a bicicleta. A água arrastou-o pra dentro do bueiro. Melhor morrer que perder a vida. Porque um trabalho danado daria pra reencontrar. Melhor morrer com dignidade, de ciclista. Melhor morrer que sentir a dor da perda.

O asfalto pulsando seu sangue quente. Seus músculos exalando cheiro e suor.  O lixo entupindo as vistas, entupindo pensamentos, entupindo bueiras, criando detestáveis moscas varejeiras. Asquerosas, incômodas. Os dinheiros sempre perigosos. Fosse qual fosse o estado físico que se encontrasse sólido, líquido, gasoso. A saúde dos olhos, custando os olhos da cara. A doença ainda mais cara. O ódio custando os olhos da cara. O ar atmosférico nos pulmões virando oxigênio, se transformando em adrenalina. Aumentando os batimentos cardíacos. A pressão arterial. A morte lhe sorrindo.

O sistema medroso, aparentemente quase sem alteração. Totalmente alterado. Porém. Não fosse o tensiômetro, ninguém jamais descobriria. Sabia, estava à beira de um colapso nervoso. O médico, amigo, comentou. Nada que alguns “emes éles” de adrenalina na veia não controlasse. O amigo médico, conhecido de infância. Lembrou de uma brincadeira boba que gostava de fazer. Imitava o Topo Gigio, aquele ratinho italiano, dos anos setenta. Fazia assim: Puxava demasiadamente as orelhas, até ficarem vermelhas. Enchia as bochechas com bastante ar, punha os lábios preso dentro da boca. Pra completar, ficava vesgo, de propósito. Era bem engraçado. Arrancaria risos, ainda hoje se mesmo médico anestesista imitasse o camundongo.

Teve que tirar toda a roupa, menos a cueca. A anestesia, além de local era intra-cutânea. Se é que existia algo desse tipo A assistente diante da sua semi nudez agia com naturalidade. Conversava como se estivessem num salão de festa, rodeados de gente. Embora só houvesse os dois ali. Solícita, simpática. Os nervos entrevando a alma. Entravando os gestos. Os objetos e pertences seriam entregues aos familiares. Sentiu-se como um cadáver vivo.  Como nos “is emes éles” da vida. Em que os parentes vão até lá, pra reconhecer o corpo. Nesse caso perfeitamente reconhecível. Ainda vivo. Medo embota a alma.

O que antes estivera obscuro foi ficando apenas escuro, e depois muito claro. Tanto que cegava. As luzes, muito forte, chegava a doer nos olhos. Na verdade cegavam. Os cheiros múltiplos causavam náuseas. Talvez, efeito da adrenalina. A água consumida em excesso, o ar condicionado provocando muitas idas ao banheiro. Teve uma sede incontrolável. Medo de morrer. Não entendia por que, antes dali, medo nenhum tinha de morrer. Medo da dor tinha. Medo de sentir dor, era medo assumido. Da morte não. Preferia morrer a sentir dor.

A mulher, ao lado na sala de espera. Até então desconhecida, tornou-se familiar. Como não! Eram da mesma cidade do interior. Puxar conversa ajudaria a descontrair. Arrepender-se-ia da conversa pra descontrair. A mulher falou em dor. Sentira dor quando fizera a primeira cirurgia. Talvez, a anestesia não "pegou". Melhor morrer que sentir dor. Negou a si mesmo que estivesse, mais uma vez, com vontade de ir ao toalete. Mas estava. Já fora pelo menos umas dez vezes. Adrenalina, andando de skate no sangue. Adrenalina vinha na cabeça, em forma de rapel, de board Jump, asa delta. Não sabia que era hormônio capaz de matar. Os batimentos cardíacos esses não dão pra controlar. Só tinha conhecimento de faquires capazes de tal façanha. Meditação, ioga, rezas, alternativas que só funcionavam à longo prazo. E em suaves prestações. Black Friday nos corredores dos hospitais. Seria algo inédito.

Os ouvidos doíam, talvez apenas zumbissem, talvez fosse fosse só impressão. Era melhor que fosse. Na cabeça colocaram-lhe uma touca de material reciclável, esterilizado. Estaria ridículo? Talvez parecesse um daqueles açougueiros da sessão de frios do supermercado. Mas onde estaria o sangue? Tudo tão limpo. Ainda dentro das veias, correndo alucinado. Tantas luzes e  equipamentos. A assistente pediu que deitasse, pôs uma faixa que imobilizou a cabeça. Segurava seus ombros como quem segura um suíno, inerte pronto pra ser fatiado. Inerte não estava. Não ainda. A equipe conversava animadamente. Conversavam como se diante de um cadáver. Cadáver ainda não era. Ainda não.

Lá no canto do corredor. Bem no alto uma câmera. Olhou fixamente pra lá. Como quem dissesse a pessoa que estivesse por trás dela. “Sou eu que estou te filmando viu?” Na folha da porta, a altura de um homem mediano, pelo lado de fora, um adesivo dizia que o médico, que atendia ali cuidava da visão. Sublinhado com o desenho em “três dê” um olho azul.

A mulher falou pro marido. É você o próximo. Agora deixe de nervosismo! Não vê, todos estão calmos. Há mentiras que em determinados momentos necessitam serem ditas. Antagonismos, mentiras tudo junto. Junto e misturado. Frases compartilhadas. Repetidas. Amassadas  contra aquelas paredes, não conseguiam mais se libertar. O marido, seria o décimo a ser atendido. Recebia reprimenda da esposa, a décima que ali estava. Pedia que levantasse a cabeça pra colocar o colírio, pela centésima vez o faria. Como uma mãe com seu filho. Indiferente, não agiria diferente. A dor veio forte sobre o peito e se estendia pelo braço direito. A vista foi escurecendo, formigando. Os olhos ficando pesados, tudo escurecendo.

O homem que o recebeu olhava-o com olhar sereno. Por que está vestido assim? Porque estava num hospital, ia fazer uma cirurgia. O que tinha? Doença nos olhos. Isso não é roupa adequada pra chegar aqui. Vá trocar-se. Lucas! Por favor! Saiu com um acompanhante, um negrinho desses bem sem-vergonha, embora contido, para o trabalho que exercia. Conhecia aquele tipo, quando fizessem amizade seria só palhaçada. Todo almofadinha, de terno e gravata. Fazia o possível pra ser simpático. Voltaram os dois, de terno e gravata.

Agora sim, parece mais adequado para a ocasião. Lucas, por favor! Acompanhe o moço até um dos apartamentos no andar de baixo. Olha! Nem pense que vai ficar por aí, andando livre, solto... Voando pra lá, voando pra cá. Passeando nas nuvens a hora que bem quer... Não senhor! Vai usar tornozeleira eletrônica. viu? Por quanto tempo? Quem sabe...Talvez, uma eternidade.



Fabio Campos, 01 de dezembro de 2018