Like A Knife (Primeira Parte)

Cinco gatos se haviam nos degraus da repartição. Uns dormindo outros acordados. Era com desprezo que olhavam o mundo. Mas isso pouco importava, era perfeitamente aceitável que desprezassem o que não lhes aprazia. Preferível a fuga da realidade, a viver uma vida aparentemente sem sentido. João Ignácio foi procurar ajuda com os homens do departamento. Ouviram atentamente sua história. Dispuseram-se ajudar porem dali a alguns dias somente. Talvez não soubessem por onde começar.

Debaixo do sol, do meio dia o mundo tremia. E as criaturas tementes a Deus. Com atitudes de corpos, nas mãos postas, nos olhos voltados pro alto, nas bocas de rezas sussurradas, fervorosamente pediam, que o furor da estiagem aplacasse sua ira. Montado no seu burrico João Ignácio refazia o caminho da volta. Sob seus calcanhares deixando pra trás, a pedra angulada do calçamento, a vila. O amontoado de casas ruminantes, pouco a pouco, a ficar às costas. Minguando, minguando de tamanho, no coice do burro.  Novamente a estrada de barro a lhe abraçar, a catingueira a beijar-lhe a face. O espinho do mandacaru, a fazer-lhe um carinho com gosto de sangue. Outra vez a visão, o assoalho do barreiro, malhado de rachões. Argila petrificada. Por baixo daquela casca tinha vida, havia aonde esconder água por baixo da lama, onde o peixe Cará hibernava. Caatinga esturricada sem ver chuva a muitos dias. Retesados os arcos açoitados pelo vento de areia. Areados os cílios a lacrimejarem. Os galhos do pau d’arco escrevendo no ar, raios que jamais se apagavam. O calango sardão que nunca dizia não, dizia: chão. Cinza carbonizante predomínio da cena, acenava. O sol do céu olhava, sem demonstrar a menor reação de dó, ou piedade. O cão de João Ignácio, tanto se ocupara com as moscas, que só muito tempo depois se dera conta que seu dono se fora. E deixou à calçada, e a vila foi ficando pra trás, na ponta do rabo balançante. Pequenina vila. Acuada no resvalo dum riacho. Acanhada vila, amassada feito chapéu de couro de muito uso. 
 
“I did a lot, I know you say
I’ve got to get away
The world is not yours for the taking
Is all you ever say
I know I’m not the best for you
But promise that you’ll stay
‘Cause if I watch you go
You’ll see me wasting, you’ll see me wasting away “

“Fiz muita coisa, eu sei que você diz/ Tenho que me afastar/ O mundo não é seu para ser tomado/ É tudo o que você sempre diz/ Eu sei que não sou o melhor pra você/ Mas prometa que vai ficar/ Porque se eu tiver que partir/ Você vai me ver desperdiçando.”     João Ignácio jamais pensou que um dia estaria no meio de tão grave litígio. Ainda mais daquela maneira. Apaixonado por Maria Ronarça, não demoraria a pedi-la em casamento. As propriedades das famílias eram vizinhas, do lado que o sol se deitava, a morada da família de João. Do lado que o sol acordava o mundo, a casa do velho Pedro Barro, pai do seu grande amor Ronarça. O único obstáculo que até então separava-os, era apenas alguns novelos de arame farpado estacados que divisava as terras pertencentes a cada um. Subia e subia nos fios, com seus espinhos de aço a cortar ao meio, o Serrote de São Genaro. De cá de baixo - sem necessidade de apurar as vistas - dava “mode” a gente ver direitinho: Uma casa alpendrada dum lado, outra casa alpendrada do outro. E lá em riba, bem no meio da subida o grotão. Ali havia uma mina d’água. Podia fazer o maior verão. Tudo, tudo ali, num raio de mil braças, pra qualquer dos lados podia secar, mas naquele grotão não. Naquele em torno era tudo verdinho, verdinho! Uma beleza! E Seu Pedro num ato pra lá de danoso, resolvera derrubar a pequena área verde que ainda restava em volta da grota, pra plantar palma. João ficou revoltado com a ação, já começada sem comunicar a ninguém, pois o fazia na parte da mata que lhe pertencia.

“ ‘Cause today,you walked out of my life
‘Cause today, your words felt like a knife
I’m not living this life
Goodbyes are meant for lonely people standing in the rain
And no matter where I go, it’s always pouring all the same
These street are filled with memories
Both perfect and in pain
And all I wanna do is love you
Bat I’mthe only one to blame”

“Porque hoje você saiu daminha vida/ Porque hoje suas palavras pareceram uma faca/ Não estou vivendo esta vida/ Adeus foram feitos para pessoas sozinhas paradas na chuva/ E não importa onde eu vá, está sempre chovendo o mesmo/ Essas ruas são cheias de recordações/ Tanto perfeitas e cheias de dor/ E tudo que eu quero fazer é amar você/ Mas eu sou o único culpado.”   Quando foi de tardezinha formou-se pra chuva, enquanto a chaminé das duas casa faziam fumaça que jamais se entrelaçariam. O que era uma pena, porque se isso acontecesse, daria a formar uma bela trança de menina loira apaixonada. De tristeza o céu chorou. Os homens do departamento vieram. E ficaram um tempão debaixo do alpendre da casa de João esperando a chuva passar. Cada um com uma xícara de café na mão. A fazerem bicos, pra soprar a quentura, e pra sorverem um gole. Nem quiseram sentar-se, preferiram olhar a serra, a chuva, o grotão. As galinhas e os pintinhos buscando um abrigo do aguaceiro vindo das nuvens. As águas carregadas de tristeza de Deus. Surgida do escuro da casa, uma menina de seus doze anos. Na timidez matutina se pôs no umbral da porta dianteira. Dali, ficou espreitando os homens do governo. O moço do departamento abrindo seu melhor sorriso, perguntou-lhe o nome. João acudiu a dizer que se chamava Celina, e que era surda-muda. Com as mãos, os olhos e um sorriso, apenas de lábios, a menina disse ao irmão que o moço era engraçado, por ser muito alto. E caçoou também dos seus óculos. O sinal que criou para identificá-lo era esse: passava o dedo indicador direito em círculo, sobre o olho esquerdo. João disse: -Pode  passar o tempo que for, aonde ela lhe ver recordará de você, com esse sinal. A chuva havia passado. Puseram-se todos a subir a serra. Seu Pedro estava lá. Eles e os filhos, a olho de machado a massacrarem as árvores do grotão.

“But what do I know IF you’re leaving?
All you did was stop the bleeding
Bat these scars will stay forever
These scars will stay forever
And these words, they have no meaning
If we cannot find the feeling
That we held on to together
Try your hardest to remember”

“Mas o que eu sei se você está partindo?/ Tudo que você fez foi para o sangramento/ Mas essas cicatrizes vão ficar para sempre/ Essas cicatrizes vão ficar para sempre/ E essas palavras, elas não têm significado/ Senão encontramos o sentimento/ Que nós dois guardamos juntos/ Se esforce ao máximo para lembrar.”    A blusa, o boné vermelho, a calça índigo do moço, destacando-se contra a paisagem lugar-comum. Tudo ali olhava pro rapaz, o Cã-cão no olho do umbuzeiro, o cachorro debaixo do mangueiral, os meninos no jogo de bola no terreiro de casa. Todos mudamente diziam aos intrusos que eles eram intrusos. Seu Pedro viu o cortejo desde que iniciaram a longa subida, bem pequenininhos, lá embaixo. Só parou o serviço quando o grupo estava a poucos metros dele. Cumprimentos e apresentações. A tentativa do aperto de mão não correspondida. Cordialidade somente dos estrangeiros. Seu Pedro com sua cara de pedra quis saber por que um dos moços tirava tantas fotos. Era pra que ficasse registrada a atividade. O moço comprido crispou o rosto, ao perceber que Seu Pedro portava uma faca.

Stay with me
Or watch me bleed
I need you just to breathe  
‘Cause today, you walked out of my life
 (Stay with me, or watch me bleed)
‘Cause today, your words felt like a knife
(I need you just to breathe)
I’m not living this life…”

“Fique comigo/ Ou me veja sangrar/ Eu preciso de você apenas para respirar/ Porque hoje você saiu da minha vida/ (Fique comigo ou me veja sangrar)/ Porque hoje suas palavras pareceram uma faca/ (Eu preciso de você apenas para respirar)/ Eu estou vivendo esta vida...”    Ao dar fé da faca na cintura do campesino o moço ficou paralisado. A folha de metal, ação devastadora exerceu sobre o moço da cidade. O céu fez menção de escurecer sobre sua vista. O mundo rodopiou alucinadamente. Suou um suor frio. Pegou um pouco d’água num cantil que trazia na mochila. Sorveu uns goles, molhou o semblante de cera. O transtorno físico era visível. Seu Pedro perguntou se estava se sentido bem. O susto que a arma branca causara no rapaz vinha de uma longa história. Não era medo nascido daquela situação isolada. Em nada tinha a ver com uma possível reação inesperada do matuto. Em arriscar a própria vida em defesa dum grotão ameaçado. Nada tinha a ver com a paixão ferida de morte de João e Ronarça. Diante da fraqueza do rapaz do departamento a bruteza desmoronou. O rude coração de Pedro Barro amoleceu. Bem lá no fundo do ser, Seu Pedro trocou a capa cascuda da arrogância por uma terna dó do moço. Talvez por conta disso, estaria disposto a conversar.       



Fabio Campos  “Like A Knife”  (Como Uma Faca)  Canção by: Secondhand Serenade

Sombra e Luz (Lamarck e Ariana)



"Lamarck, Eu preciso te dizer o quanto te amo, o quanto você é importante para mim. Hoje acordei cedo. Você sabe, sempre acordo tarde. Hoje, porém fiz diferente. Enquanto minha mãe e meu irmão ainda dormiam, na pontinha dos pés, fui até a cozinha. Abri a porta dos fundos e ganhei o quintal. O dia vinha amanhecendo... Meu Deus como é lindo ver o dia amanhecer! E pensar tantas manhãs como aquela, que eu já perdi. Enquanto simplesmente dormia. E perdia de ver momento tão maravilhoso! Aquele sol com seu brilho, invadindo pouco a pouco todos os espaços! Espalhando sua luz e seu calor sobre toda criatura. Fazendo sorrir as plantinhas do chão, verdinha com suas flores coloridas. Pintadas com capricho pelas mãos do maior dos pintores, o nosso Pai, Deus do céu o Criador! E ver os passarinhos cantando sobrevoando os telhados, subindo além do imenso azul do céu. Lembrei de nós quando estamos na praça, também brincamos e cantamos. Os adultos dizem que nós os jovens, não pensamos em nada, e tudo que mais queremos é mudar o mundo, o que não é verdade. Sabemos que o mundo nos espera, e o que pode, e tem a nos oferecer. Jamais nos iludimos de que tudo é “um mar de rosas” ou que “tudo são flores”. Sobre as flores, e os animais que habitam o mar, você mesmo, tem ideias revolucionárias, o curso de Biologia lhe proporcionou muitas e novas descobertas. Tens consciência do que dizes em tuas teorias, que pode serem rejeitadas, jamais aceitas pela maioria. Eu porem faço minhas as palavras de Lavoisier, àquele que o nosso professor de filosofia falou: “Posso não concordar com tudo que dizes, porem defenderei até o fim o direito de dizeres.” Quando estamos juntos trocamos carícias, nos beijamos e fazemos juras de amor um pra o outro. E dizemos que nada, nem ninguém será capaz de acabar um amor tão intenso, tão real, tão sincero, como esse que sentimos um pelo outro.Te amo muito meu amor!”

A mensagem tomava toda às costas da capa. Não era porem ali, que acabavam as confidências da jovem Ariana. Folheando um pouco mais, e adiante, depois de muitos escritos de escola, encontrei outras coisas de si. Dizia que havia sido muito traumático, saber que a mãe estava doente. “Doeu muito em mim, descobrir que minha mãinha tinha câncer. Ela estava com um câncer de mama. Sempre que chegava do trabalho, cansada, reclamava de dores embaixo do braço. Eu falava que achava aquilo normal, afinal a ocupação de serviçal, por ela exercida no Tribunal de Justiça. O dia inteiro a passar o pano, naquelas imensas salas. Bem que poderia ser a causa. Lembro ainda hoje, do dia da consulta médica. Eu fui com ela. Depois de vários exames minuciosos, a médica  fez-lhe uma série de perguntas. Desde quando sentia aquelas dores? Perguntou que idade tinha. Em que dias do mês menstruava. Notei-lhe bastante envergonhada por estar relatando tanto de sua vida íntima, não por conta da médica, mas da minha presença, sua filha. Foi prescrita uma bateria de exames, entre elas, a tão falada ressonância magnética que muito elucidaria. Pra acabar de vez a dúvida a tal biópsia, e com ela a confirmação do diagnóstico: células tumorosas na mama esquerda, em adiantado estado de formação.  Foi-nos explicado que era um tumor não benigno, em estágio avançado. Era caso pra extração cirúrgica seguida de tratamento quimioterápico. O tratamento começou no outro dia. E veio a parte mais cruel, para qualquer mulher. Ver que estava perdendo os cabelos. Minha mãe ficou completamente careca. Chorávamos nós duas abraçadas, eu tinha que ser forte, mas não conseguia. Eu olhava pra minha mãezinha querida. E só em lembrar do quanto era ela uma mulher vaidosa, que tanto se valorizava e tinha um astral lá em cima. Gostava tanto de viver! Ia aos bailes e festinhas, com as amigas e amigos, colegas de trabalho. E levantava a auto-estima de todos, onde chegava. Meu Deus, são os mistérios da vida. Ela e meu pai, haviam se separado quando eu tinha só nove anos, e meu irmão era um bebê.

Lamarck não tivera melhor sorte. Sendo sua amada órfã de pai vivo, com ele ocorrera o contrário, era órfão de mãe morta. Mais ainda traumático a forma como a teria perdido. Foi assim: Seu pai, Estevão da Paz, filho de família ilustre de sua terra natal, Santana do Ipanema, fora um rapaz boêmio dado as farras na juventude. Namorou e casou cedo com Maria Anália, tirando a jovem da casa dos seus pais, ainda quando estudava o curso normal. Só depois de casada, com sacrifício foi que se formou professora. Contra a vontade do marido ciumento, não queria que ela estudasse.  Ao completar vinte anos de idade Estevão Paz, por influência política de sua família ingressaria, na Polícia de Alagoas. Como oficial chegou a major, destacou muitos anos no interior. Foi delegado em vários municípios. Aponto de ficar famoso por promover a paz nas localidades onde passava. Tranquilidade muitas vezes conseguida com o derramamento de sangue. já próximo de ir pra reserva, foi morar na capital do estado. No quartel tornou-se músico da banda da polícia Militar de Alagoas. Numa vez que a banda foi se apresentar numa cidade do litoral norte do estado. Por ocasião da inauguração de uma usina de cana-de-açúcar, um rapaz embriagado teria dirigido um galanteio a sua esposa que se encontrava no local. O major acabaria se envolvendo numa briga com esse homem. Sacou sua arma e na tentativa de acertar o galanteador, acabou atingindo sua própria esposa com um tiro no pescoço. Senhora Anália morreu a caminho do hospital. Lamarck era só um menino quando isso aconteceu. Porem jamais perdoaria seu pai por isso.    
  
Interessante como era a vida, aquele menino, depois dum trauma sofrido. ficou incrédulo para as coisas de Deus. Passou a acreditar puramente nas ciências. Nas teorias, nas leis criadas pelos homens. Assim era Lamarck estudante de biologia. E queria provar uma tese que um seu xará o biólogo francês Jean Lamarck defendia desde o século dezoito. Por méritos próprios conseguiu uma bolsa de estudos, para aprofundar sua teoria numa universidade francesa, em Bazentin-le-Petit cidade onde nascera o grande biólogo Jean-Baptiste Pierre Antonie de Monet, “Chavallier” de Lamarck “Filho mais novo, duma prole de onze irmãos. Seu pai fora barão francês da infantaria, o que incentivou-o a entrar pro exército quando tinha vinte e quatro anos. Abandonou a carreira militar para dedicar-se a medicina e a botânica. Aos trinta e quatro anos de idade publicou três volumes do livro “Flora Francesa”. Obra que lhe valeu a nomeação para o cargo de botânico do herbário real de França pelo então imperador Napoleão Bonaparte. Professor de zoologia do Museu de História Natural de Paris.” A biografia do mestre constava do seu trabalho.

Lamarck, em tão breve história de vida que tinha,  já encontrara tantos desafios pela frente. Sentado naquele banco da praça ter que decidir sua vida. Ir embora pra França e concluir sua tese sobre a Evolução dos seres vivos, ou ficar em Santana do Ipanema. Casar-se. Concluírem os dois, o curso de Biologia na universidade do Sertão. E conformar-se com o destino de sertanejo a si reservado. Ser professor, escrever, livros, compor poesias. Fazer filhos com Ariana. Dar aulas numa escola pública. Levar seus alunos a visitarem sítios arqueológicos, rios intermitentes do vale da caatinga e reservas florestais. Talvez se déssemos um grito pudesse me ouvir. Aproveitaria a oportunidade e devolver-lhe-ia o caderno - esquecido num banco de praça – de sua amada Ariana.


Fabio Campos                 

Andaluz (Tocaias em São Manoel da Paciência)

Era uma vez um lugar, não muito distante daqui. Como tantos outros lugares, tinha uma serra enorme, do alto de sua imponência, lá de cima ficava olhando pro povo. A cidade, ensimesmada formigando lá embaixo. Enquanto do verde dos seus olhos, das maçãs de pedra do rosto, dos ouvidos de cavernas azuladas e frias, misteriosamente, a montanha espreitava. Sequer pregava o olho, dia e noite. O terral a embaraça-lhe a visão nos gélidos dias de inverno. E o povo todos os dias acordava pra suas vidas sem se importarem muito com a presença dela. Alguns até que dava fé da sua existência, outros não. E se fosse aquela montanha um vulcão? Certeza pudesse ter, todos a temeriam. 

O padre na igreja, sentado no meio das bancas. Confessava uma velhinha, a montanha olhava de lá. No mercado da carne o açougueiro gordo, careca, no seu avental branco, inflado, sujo de sangue. Bigodão negro espetando a indignação duma freguesa, alarmada com o preço dum reles osso corredor. Também eram espiados pela elevação rochosa. O professor, àquela hora da manhã já havia iniciado a aula. Uma das mãos, a esquerda, metida no jaleco, a outra passava o bastão de giz entre os dedos. As lentes dos óculos por um segundo refletiram uma luz, duma cor sem cor. Percebeu que alguém o observava. Defenestrou pela janela um olhar. E foi encontrá-la. Se não era a serra, seria alguém entranhado nela. Assim sem se dar conta do que dizia, fez o convite aos alunos: “-O que vocês acham da gente subir a serra?” Proposta aceita de imediato, E foi, o dia marcado. 

Vinte e oito almas dos que eram viventes, compunha a excursão. Era um grupo razoável. O dia se quer vinha acordando, e o grupo já ia vencendo o caminho. Um novelo de cores, nas roupas esfuziantes. Chapéus, tênis e meias nos pés. Calções, e shorts cobriam pernas que nunca mais tinham visto luz solar. Faces e colos untados de protetor solar. Gritos, gargalhadas. Balbúrdia no caminho de barro. O gigante lá estava, sério, taciturno. Pacientemente esperava que viessem incautos desbravadores para conquistá-lo. Por aqueles dias, havia chovido muito. A trilha aos poucos havia se fechado. Agora mais do que nunca necessitava dum abraço. Precisava tocar algo que lhes doasse calor. Seus dedos gelados de clorofila a tocar pele morna. Calor dum corpo, o halo humano sendo envolvido, e a envolver. O sol distante, aparentemente indiferente, mas era só aparência, morto de ciúme. A subida íngreme desafio. Promessa de dificuldades, tudo era só promessas. Nem bem venceram os calcanhares do monstro verde, e as juvenis bocas e estômagos reclamaram o desjejum. Mochilas a exporem seus conteúdos. Biscoitos, barras de cereais, água, refrigerantes. Nenhum vestígio de lixo deveria ficar pra trás foi uma das ordens de véspera. As formigas organizaram-se para captar o que os invasores deixaram escapar. Estoque de provisões pro inverno, migalhas de diversos açúcares, lipídios, glicídios, jamais imagináveis que encontrariam um dia. E cada expedição seguiu seu caminho.

Bizungas, bem-ti-vis, lavandeiras em seus bailados alados angariavam olhares. Pirilampos em sinfonia muda empreendiam ataques suicidas a alvos, alvos e sanguineos. Do alto das árvores num carnaval de fotossíntese e fluorescências pendiam cipós, em serpentinas. Cactáceas, orquidáceas despudoradamente se ofereciam em néctar de seres mortais, mortíferos. Gimnospermamente entregando-se, atingido o ápice, indo a múltiplos orgasmos, num triângulo amoroso entre melipondeas, briófitas, xerófitas, mariposas, trepadeiras. Gigolôs, fungos violentamente arrancavam de pobres velhos troncos até o último tostão de seiva que ainda tivessem, deixando-os apenas vivo. Comensais desfilavam no fantástico salão de baile, tão ricamente ornado. Tão exuberante e belo que nem o rei Salomão, jamais se vestira de tanta beleza! O corpo do gigante invadido por aqueles novos seres multicolores de outros cheiros que avançavam. Objetivavam alcançar-lhe o cocuruto. O professor questionava entre seus pupilos, nomes de vegetais. Esmiuçava a vida dos cupins. De escaravelhos coprófagos. Tatus ostracistas, que diante dum cadáver não hesitavam em praticarem necrofilia. Confidenciou segredos de Mutucas, vitimadas em armadilhas de aranhas assassinas. Louva-deuses metodistas, Minhocas bem humoradas.

De repente, uma clareira, sobre um lajedo, uma pequena capela. Era uma igrejinha cor de rosa, como nos contos de fada. Uma portinha apenas, um sino, uma cruz no alto. Assentada sobre a pedra, surgia um lugar de oração. Todos se sentaram pra descansar. E do lado oposto donde tinham vindo apareceu um mancebo. Apesar da aparência não parecia um fantasma. Era um rapaz franzino, de vestes rústicas. Os pés no chão. De tão caliçados, os espinhos da mata branca não mais lhe feriam. Jeremias era seu nome. Ofereceu-se para conduzir a expedição. Sabia o melhor caminho pra chegar aonde quer que fosse naquela montanha. Era parte daquele nicho. Portava um estilingue, um bornal um chapéu de palha. Predava pra sobreviver, providenciava alimento pra si, pra sua mãe e três irmãos que ficaram em casa. Sabia de histórias, daquela capelinha ali erguida.

“Num tempo em que os homens se armavam de escudos e espadas e velhos bacamartes e saiam pelo mundo conquistando terras. Essa região era habitada por uma tribo de índios e alguns poucos agricultores. Os índios fizeram um acordo com os brancos. Cada um daqueles povos habitaria um lado da montanha. E tudo parecia muito bem, e se respeitavam, e o limite entre o espaço de um e de outro povo, era justamente aquela clareira com o lajedo que dividia a montanha ao meio. Mas teve uma vez que chegou por aqui uma caravana de ciganos que se arranchou exatamente neste local. Os ciganos se diziam do tronco da tribo de Andaluzia. Seu modo de falar era carregado e muito gesticulavam. E gostaram tanto deste local que resolveram ficar. Porém os índios e os camponeses não acharam nada interessante a ideia. Havia uma superstição que envolvia o povo cigano Eles eram considerados, bruxos, feiticeiros. Diziam que sua descendência vinha de Caim. Corria uma história que tinham sido eles os que haviam fabricados os pregos usados para pregar Cristo na cruz do calvário. 

Foram muitos os combates entre eles. Muitos foram os que tombaram sem vida defendendo cada um sua causa. Dum lado de permanência, do outro a expulsão. Vieram os jesuítas da Companhia de Jesus tentar um acordo, e para tanto construíram essa igreja colocaram ali a imagem de São Manoel da Paciência. Houve um período de trégua. Aqui próximo existe uma mina de água, um pequeno lago. As mulheres, em grupos, para lá iam lavar roupas, bem como pegar água pros afazeres de casa. Teve um dia que uma mulher se encontrava sozinha, e chegou um cigano para saciar a sede. Acontece que a mulher foi seduzida, e caiu nos encantos do homem. Essa mulher era casada com um camponês, e acabou grávida do cigano. 

Não por muito tempo, deu para a mulher esconder a gravidez. O cigano foi o primeiro a perceber o que ocorrera e a advertira para não se livrar da cria que ela gerava no ventre. Sob o risco de matá-la se porventura provocasse aborto. Não tinha filhos o casal porque o marido daquela mulher era estéril. De modo que com o avançar da gestação o camponês acabaria por descobrir que havia sido traído. E um dia, bem ali por trás da capela, o homem abordou sua esposa. Começaram uma discussão. Ele sacou uma peixeira. E a facadas, matou sua mulher mesmo diante do estado gestacional que se encontrava. Ao saber do ocorrido o cigano ficou irado, porque pretendia ficar com o bebê, quando a mulher tivesse o filho. Uma vez que os ciganos pretendia em breve irem embora. 

E chegou o dia da partida. A caravana de andaluzes levantou acampamento, partiu. Mas o cigano conquistador, não destituiu o pensamento de vingar-se do assassino do seu filho. Deixando o grupo retornou até aquele local. E montou tocaia contra seu inimigo. Amparado pelas pedras do lajedo aguardou. Viu o homem que vinha da feira, montado numa mula. O tiro ecoou espantando espanta-boiada. O homem caiu, bem por cima da pedra onde um inocente morrera no ventre de sua mãe. Dali por diante, o lugar passou a ser chamado de Tocaias.”


Fabio Campos



Ouro de Tolo

 A    A vila se insinuava em pedras do cais. Casario do tempo da colônia. Alternância de cores nas fachadas de cujos telhados derramariam na sarjeta - água da chuva no inverno - luz do sol, no verão, como agora. Dentro de casa era outro mundo, diferente do que havia lá fora. A ante-sala, ricamente decorada com coisas do mar. Rosário de conchas, samburás, lagostas  vermelhas, estrelas marinhas azuis, búzios. Arpões, varas de pesca de bambu, e seus luzidios molinetes cromados, dormiam nas paredes.  Um óleo sobre tela, duma praia onde jangadeiros empurravam uma jangada pra dentro do mar. Empanada estufada dava a impressão de receber o vento que entrava na sala. A porta tinha umbrais pintados de verde, ventanas na parte superior, dava acesso à biblioteca. As estantes de livros até o teto, de longe era o destaque. Uma mesa, nua, enorme em madeira de lei, pés bem torneados sobre carpete marrom. Assemelhada a uma mulata pronta pra fazer sexo naquela penumbra convidativa. A parede do fundo, toda coberta por um tapete persa onde figurava a imagem dum Francisco de Assis, magro, hábito, cordado branco cingindo os rins. Rodeavam-lhe lobos e aves.

Mestre Belo, velho lobo que envelhecera no mar. Dois, dos três terços do dia,  sentado a porta de casa. Sempre ao mesmo tamborete redondo de três pés. Entregue aos reparos - e mesmo ao fabrico  - de redes de pesca. As mãos salinas. Rugas na testa sulcadas de sal. Brancura de sal, também nos dentes. As mãos, fios de nylon branco. Esticando-se e afrouxando-se num entrelaçamento que gerava um enxadrezado, vazado. A um só tempo frágil e forte, a ponto de prender peixes. Os olhos, duas pedras opacas guarnecidas por pregas indígenas. Um boné branco a fundir-se na carapinha crespa. Toda manhã lhe chegavam Mestre Joaquim, e o velho “General”. Joaquim, franzino, um cigarro de palha - entre os dedos  - no mais do tempo apagado. O outro, era um negro sexagenário, de ventre volumoso. De branco, só os dentes. Tinto de vermelho o branco dos olhos lacrimejantes. Toda manhã, “General” Ia passear na Rua da Praia com uma gaiola de passarinhos como se fosse uma bandeja dum garção. Sorriso farto, de lábios cheios de palavras libidinosas, molhadas de concupiscência, nas gengivas róseas. Sempre a envolver seus interlocutores em situações constrangedoras. Em histórias onde haveria de ter sexo entre ele e o outro. Nalgum lugar do passado “General” deveria ter sido um boêmio, um negro Casa nova. Dando a entender um bem-dotado virilmente, que contumaz se envolvia em relacionamentos sexuais de toda sorte. Nos trejeitos, na musculatura - no vigor da jovialidade que tivera - exímio capoeirista um dia fora. O apelido ganhou na marcação do folguedo Chegança, tradição de pai pra filho.  

A casa de Seu Belo ficava de esquina. Delimitava a Rua da Piedade, com a Rua Joaquim da Hora. Intercaladas pelo prédio da Cadeia Pública - um sobrado quadrado, solto - de dois pavimentos. A fachada da casa tinha - de doer os olhos, reflexo do sol - eiras pintadas de brancas. As telhas resignadas, cumprindo, a cada instante, o papel de ser telhado. A telhar sol e mormaço, telhar mar e maresia, telhar lua e luar. De madrugada ia chorar orvalho. Choro vindo do passado, que nunca quisera se sepultar no passado. Em 1688, negro Benedito morou naquela casa. Negro Benedito, escravo do senhor de engenho Caio Mario Alvarenga. Era encarregado do asseio da casa. O trabalho duro, mesmo assim gostava de realizar, o trato com os cavalos do seu amo. O pastoreio dum pequeno rebanho de cabritos na Fazenda Mundaú, a poucos quilômetros da vila. Fincada a beira do rio de mesmo nome. Um missionário jesuíta ensinou negro Benedito a temer a Deus, rezar, ler e escrever. E fazer velas de sebo de carneiro e cinza.  Aprendeu também a fazer preservativos de vísceras de caprinos. Dia de sábado ia pra porta da igreja de Nossa Senhora da Piedade vender o produto da sua manufatura. Um ritual tinha que fazer antes de no iniciar o dia de comércio. De pés descalços, ia acender uma vela aos pés da imagem do santo de sua devoção, São Jorge Guerreiro, pra lhe dar proteção e sorte nos negócios. 

Um dia, se encontrava no cantinho costumeiro, os degraus da escadaria da igreja, quando foi discretamente chamado por uma sinhazinha. A madama queria comprar uma Camisa de Vênus. A despeito da estranheza, o negro concordou em vender. Aquela mulher era, nada mais nada menos, que a governanta da casa do Senhor Herculano Paz de Góes, o mais importante comerciante da vila, casado com dona Isadora Costa de Alvarenga, irmã do usineiro Caio Mario Alvarenga. Uma proposta tinha a matrona a fazer àquele zulu. Queria que dali uma semana, o negro, sem ser visto entrasse, na casa da senhora Ludimila Ignácia Souza, cantora de cabaré, amante do seu patrão. Teria que ir até seus aposentos encontrar a camisinha de seu uso - pois aqueles artefatos eram usados, lavados e guardados para muitos usos. Teria que trocar por aquela que acabara de comprar. Isso porque sua patroa ia untá-la com pimenta. Intentava a matriz ferir o útero da filial, sua rival no amor. O negro aceitou a belicosa empreitada, depois de negociar dez moedas de ouro pelo serviço. Seria sua redenção. Daria pra comprar o seu indulto de alforria. No dia aprazado, aproveitando-se da calada da noite, o escravo seguiu pelo jardim, um capataz fazia a guarda. O negro conseguiu passar sem ser visto. Ao chegar à biblioteca, acabou derrubando um candelabro, o que provocaria um incêndio. Na ânsia de escapar foi visto pelo capataz que lhe deu um tiro pelas costas. Mesmo ferido o negro conseguiu fugir. Seu Belo tinha visões de vidas passadas, estava dormindo e se acordou de madrugada com o quarto em chamas. Aturdido acudiu a porta, a tentar fugir do fogaréu. De dentro das chamas surgiu o negro Benedito. Disse-lhe para acautelar-se, pois tudo não passava de uma visão. E narrou-lhe o que lhe ocorrera, à tempos passados.

Dona Quinô, era vizinha de Seu Belo, do lado da rua que a conversa se esquentava de sol toda manhã. Maria Auxiliadora das Neves era negra, quilombola. Deu-se conta que inteirava os oitentas anos de idade, sentada na porta de Seu Belo, no instante que contava sua história. Nascera no Sítio Flor do Manguezal. Seus pais viveram e morreram no trabalho forçado. Explorados muitos anos pelos senhores de engenho, num regime de escravidão. Viu-se órfã aos doze anos. Ficou bolando nas mãos de um de outro, nos ranchos dos peões no meio dos oceanos canaviais. Um dia três homens bêbados a obrigaram a fazer sexo, foi sua primeira vez. Tria dito que ficou - traumatizada não – com muita raiva. Por ter sido uma coisa contra sua vontade. Encarava tudo com naturalidade de bicho. Achava que tudo que lhe acontecia, era porque tinha de ser. Considerava tudo como sendo coisas de destino: o fato de ter nascido, pobre, negra, desletrada. A vila da praia, teria sido mais um acaso. Um bando de tropeiros a encontrou vagando pela mata. Suja, maltrapilha parecendo um bicho do mato, amedrontada. Perguntaram-lhe se queira seguir com eles. Com aceno de cabeça disse que sim, e foi. Torcia apenas que não lhe fizessem mal. Tudo o que queria era um prato de comida. Ao chegar a vila, viu uma pequena aglomeração na porta da casa paroquial. A congregação das Irmãs Carmelitas acolhiam retirantes, cortadores de cana, fugidos dos engenhos, O magro salário que recebiam ficava todo na mão do dono do barraco, a quitar parte de suas dívidas desumanamente impagáveis. Asquerosos acordos eram obrigados cumprir. A ter que entregar mulheres ou filhas menores pra ficar - despirem seus corpos, e deitarem-se - com os feitores e donos de barracos. Se conseguissem fugir do inferno verde, vagavam sem dinheiro, nem condições de voltarem pro sertão.

Foi nos dias de novena da padroeira daquele ano, chegou à vila um bando de ciganos. No alto do morro, próximo ao farol, debaixo dum grande oitizeiro, montaram acampamento. Numa manhã de quarta-feira, o chefe do bando mandou um recado para o senhor Abelardo Cunha, o Intendente que Administrava a vila. Teria que entregar ao bando, um carro de boi cheio de peças de ouro puro, até o meio dia do domingo. Do contrário, a vila seria invadida, saqueada e incendiada.  
  
Estava para acontecer a maior chacina que o vilarejo teria presenciado em todos os tempos.  Com tinta dourada o chefe da vila mandou pintar muitas peças de ferro e prata, a encher um carro de boi. E lá se foram os homens do administrador, morro à cima, conduzindo o carro rupestre, com a carga enganadora. De repente o sol se escondeu, mudando o tempo pra chuva. A população aguardava no sopé da montanha armados com pedaços de pau e foices, numa barricada. Grossos pingos vieram sobre as peças de ouro do engano, lavando e descobrindo o embuste. Ao perceberem o que ocorria, os ciganos enfurecidos avançaram de encontro ao cortejo que subia. O céu pareceu que fosse desabar. Um estrondo assombroso se ouviu. Seguido dum raio que veio sobre o imenso oitizeiro. Por um instante o alto do morro transformou-se num retrato do inferno.  Da corja de ciganos não sobrou um só.  Morreram todos, totalmente carbonizados.


Fabio Campos