A Árvore dos Enforcados Cap. 10



Era uma árvore frondosa. Seu tronco era robusto, lenhoso, de casca enrugada e escura. Como quem já muito vivera. Havia algumas cadeiras, uma mesa. Sobre a mesa bebidas e comidas. Vinhos, cervejas, iguarias de aves, petiscos de grãos. Alguns homens sentados em cadeiras um pouco afastados da mesa, entretidos, Jogavam dominó. Senhor Djalma olhou pra copa da árvore e viu, seres alados, borboletas, mariposas, e outros não tão simples assim. Viu, nos galhos mais altos, pessoas enforcadas. Balançavam ao vento. Os pés apontando pro chão. Havia um silêncio sepulcral, de uma dessas tardes em que morre gente. 

Senhor Djalma, iniciando uma conversa, disse: Daqui por diante, só viverei a verdade. Um homem de paletó branco, que estava em pé próximo aos que jogavam, olhou-o e sorriu. Não deu pra entender aquele sorriso. Se de desdém, ou apostava no contrário. Senhor Djalma prosseguiu. Sepultei meus irmãos, juntos com minha mãe. O homem de branco, ficou sério. E perguntou o que ele esperava que ia acontecer, dali pra frente? Senhor Djalma ficou mudo. Lembrou que seu pai, um dia lhe fizera aquela pergunta. 

A partir dali, teve uma convicção, que não mais acreditaria em tudo que visse a sua frente. A exemplo das pessoas enforcadas, penduradas, na árvore, pareciam bolas de natal. Ao todo, quatro era número de pessoas: uma mulher, um velho, e um casal de crianças. Teve certeza de que os via. Só não queria acreditar de qualquer jeito. Mas tudo estava lá. A mulher pendurada pelo pescoço, abriu os olhos, e virando a cabeça em direção ao senhor Djalma disse: Pois o senhor devia sim, acreditar no que está vendo! Pois somos tão reais quanto vocês aí embaixo. Por acaso estaria interessado em ouvir minha história? E se desvencilhando do laço no pescoço, sentou-se num potente galho. E iniciou a contar sua história. Começou dizendo que morava com o homem enforcado ao seu lado, naquela casa ali. E apontou pra choupana, à poucos metros de onde estavam. 

Este velho que você está vendo aqui, pendurado, todos os dias ele bebia. E bebia! E tratava mal, a mim e a seus filhos. Eu sabia, que aquilo não ia acabar bem! Certa vez ele foi a vila, e voltou ainda mais bêbado, e ainda mais bravo, que os outros dias. Já era noite. E dava baques na mesa, os filhos amedrontados fugiram para se proteger nos arbustos, no entorno da casa. O velho Jeremias neste dia, estava com um espírito mal no corpo. Ele foi até o terreiro, e deu um tiro de revólver num pato. E trouxe-o pendurado pelas patas pra dentro de casa. O sangue pingava no chão, nas paredes, pois ele o sacudia furiosamente, dizendo palavras contra mim, sujando a casa toda de sangue! E disse que estava com vontade de comer pato! E queria que eu cuidasse daquele, imediatamente. E tinha que ser ligeiro! 

Então, começou, a depenar o pato dando mordidas na pobre ave morta! Espalhando penas de pato pela casa toda! As crianças, lá no meio do mato escondidas. Então ele, gritava chamado por elas: Cecília, Pedro! Onde estão vocês? Seus pestinhas! Se não aparecerem aqui agora, vou pegá-los! E pode ter certeza que vou matá-los! Apavoradas as crianças não atenderam, ao maldito chamado do velho Jeremias. E ele foi em seus encalços...Até os encontrar. E trouxe-os arrastando pelos cabelos pra dentro de casa. E batia, e batia nos dois. Descarregava todo ódio que sentia, nessas pobres crianças. E dizia que seus filhos, era o atraso de sua vida... E bateu, e bateu, até que decidiu, ia matá-los. E os enforcou bem aqui, onde o senhor mesmo está vendo. Daí não suportei ver aquela atrocidade, saquei a espingarda, e dei-lhe um tiro de calibre doze, bem no meio dos peitos, que quase partiu o velho ao meio! 

Depois, eu mesma o arrastei e o pendurei aí, para que ficasse junto dos filhos. E fiquei remoendo esta desgraça ocorrida na minha vida. Depois de muito pensar, eu decidi que não ia conseguir continuar a vida sozinha. E com minhas próprias mãos vim unir-me a eles. Neste instante o velho abriu os olhos, levantou a cabeça, pro céu, e virando-a para o senhor Djalma, disse: Essa é a versão dela. Se o senhor não se incomoda, vou tomar mais um pouco do seu tempo. E lhe contarei a verdade.

27 de Julho de 2020. 
A ilustração deste capítulo, é uma foto da capa do disco (Long play) da Banda britânica  Pink Floyd "The Dark Side of the Moon" (produzido entre janeiro de 1972 e junho de 1973)

TERRAL Cap 9




Era um cair de tarde. As nuvens pareciam frias, sopravam promessas sobre aquele pedaço de mundo. E pro lado do poente, os olhos tinham que se acostumar a uma sucessão de tons vermelho alaranjado, ou laranja avermelhado. Como se um ferreiro gigante que não tinha mais tamanho tivesse dando os últimos pingos de solda, na chapa de aço onde iniciava-se o mundo, concluindo sua magnífica obra a ferro e fogo. O cair da tarde também seria assim, trazia muitos sentimentos próprios do momento. Como se o dia uma vez que cumprira sua jornada, envolveria a todos com sua despedida soldando o portão do mundo. E que despedida seria. Qualquer música que tocasse naquele instante por mais alegre que fosse, teria tons de tristeza, pitadas de saudade. O terminar de um dia era como se o astro rei, o soldador maior, não pudesse sair do mundo sem deixar seu toque fantástico de despedida. Como se não quisesse ser esquecido fecharia com um espetáculo inesquecível. O  amanhecer também.

Senhor Djalma se estava, sempre pensativo. Era como um homem que nunca estaria no presente. Como sempre estivesse no passado. Vivia do passado, pelo passado, para o passado. Disco velho, de capa amarelada, com alguns arranhões significativos. Sendo assim, volta e meia repetia alguma coisa, e repetia, e repetia. Não se orgulhava disso. Pensou que seu inimigo mortal, o havia deixado para trás a ponto de não querer nunca mais vê-lo. Ou vê-lo morto. 

A casa era pobre, aliás paupérrima. Um homem que parecia um indiano, nas feições e no trajar. Parecia ser seu amigo, talvez um irmão, não lembrava, conversava acaloradamente atarefado sem o encarar. Tinha esposa e filho. A mulher não dizia uma palavra, trazia uma criança ao colo. Com o olhar apenas dizia: “Em que posso lhe servir.” E a frase poderia ser dirigida as galinhas que haviam no terreiro, as nuvens do céu, ao chão que pisava. 

E todos se preparavam para sair. Iam todos a vila. Senhor Djalma, também ia. Não sabia bem porque, mas ia. Percebeu que estava descalço. Era hóspede do indiano. O dia nem bem amanhecera. Ou talvez anoitecia. Foi colocar os sapatos. Abriu sua mala no quarto, estava indeciso se ficava com aquela roupa mesmo, ou trocava por outra mais adequada. Roupa festiva, de quem vai a cidade. Ouviu barulho de gente chegando no terreiro. Olhou por uma janela coberta com um pano encardido que servia de cortina. Eram três homens, muitos parecidos com o indiano dono da casa. Talvez seus irmãos. Riam, e falavam alto. Sobre o que conversavam? Talvez dissessem pilhéria uns com os outros. Chegaram num velho Jeep, camuflado, coberto de poeira e lama ressecada das estradas da região. 

O que será que se passava com ele? Era sempre assim, de repente, acordava, como de um surto, num determinado lugar onde nunca antes estivera. Não que estivesse dormindo, como todas as pessoas se deitam e vão dormir. Simplesmente vinha o estado de consciência. E pronto lá estava ele. Acabara de chegar àquele lugar, em que não sabia onde estava. Apenas parecia familiar. Nem conhecia as pessoas. Tinha que fazer de conta que sempre estivera ali. Para os que lá estavam, era como se ele sempre estivesse.

Vivia uma viagem infinita, interminável, de lugar em lugar. E ficava se perguntando, como fora parar ali? Um dia entenderia. Estaria revivendo os momentos todos de sua vida, nos segundos que antecediam a sua morte. Alguns daqueles momentos não lembrava. Era um emaranhado de episódios que se sucediam, e que parecia não ter ligação alguma entre eles. O início disso tudo ele lembrava, começou lá na na taberna, quando levou a machadada. Estaria morrendo.  Embora não parecesse. Tudo parecia tão real. E era.

19 de Julho de 2020.

SENTIMENTOS Cap 8




Estavam sentados na calçada, e bebiam. Era dia de festa na vila. O espírito de alegria habitava a maioria dos corações. Havia muita algazarra, todos se divertiam. Os ventos eram leves, uma brisa suave soprava da montanha pro mar. Passando por cima da vila, coberta de coqueiral. Lá do alto, dava pra ver um declive imenso que parecia uma gruta, uma verdadeira garganta do diabo. Parecia um outro mundo. E ficava bem ali, só a alguns metros do povoado. A terra vermelha evidenciava um contraste com o verde, predominante ali. As casas enfileirada, quebrava o estigma de coisa pesada, que a montanha fomentava. Era como se a montanha observasse a vila. Como um monstro escondido, calado, a espreitar a urbe, dia e noite. 

Senhor Djalma estava rodeado de amigos. Havia um, entre aqueles que era mais amigo, porque o conhecia de outros lugares. E isso como que afagava sua alma. Porque quando se vai parar num lugarejo onde você não nasceu, não cresceu, nem tem laços familiares, é como pisar em campo minado. E um amigo nessas horas trás um sentimento bom. As pessoas da vila, só aos poucos iam passando a fazer parte da vida do estrangeiro. E só aos poucos vão se deixando conhecer. Alguns mais, outros menos, se deixando envolver pelos que chegam. Nem todos estão dispostos a se expor. Especialmente para quem veio de fora.

Coisas, pessoas exercem poder e fascínio, umas sobre as outras. Um cruzeiro fixado a poucos metros da praia, diziam muito sobre datas e navegantes. Aos moradores da vila já não dizia muito, aos que chegam muito falavam. Nos dias atuais, só servia pra moças e rapazes deitarem e se espreguiçarem diante da tarde marítima. Até sono dava com a melodia das ondas, a ressaca, o cheiro de pescado vindo das canoas. Os pés pisando a areia fina. 

Senhor Beto, eletricista, passava de bicicleta. A alma brejeira, a prosa com os transeuntes. Pra cada pessoa que via uma conversa ocasional. E se ia, levando no bagageiro a mala das muitas utilidades, o sustento da família de cada dia. E os filhos ficavam sentados na porta, no jardim, enfeitando as avencas e samambaias que Suzana cuidava com esmero. Sílvia do "Coco de roda", irmã de Eliúde, e Sônia. Cada uma com sua beleza natural. De lábios carnudos, de pele morena, de cabelos cacheados, de laços de fita, de roupas estampadas a cobrirem despudoradamente suas carnes tão desejadas. Ai! O que havia debaixo daquela saia, era o meu fim! Um dia, as meninas inventaram de ficarem totalmente nuas, numa praia solitária. Algum pescador viu e espalhou. Tarde demais, já se tinham ido! Voaram, e voaram as ninfas, deixando sonhos. Escaparam entre os dedos que agora seguravam seus mastros rijos. Assanharam desejos e escapuliram. E tiraram o sono de muitos varões. No desejo solitário, a covardia de uma mão, lutando contra um membro pulsante de delírios.

As datas escondem mistérios. A festa da padroeira. As rezas, os cortejos. As procissões. As lanternas levadas pelos coroinhas. Os paramentos sacerdotais, usados somente em ocasiões festivas. Depois da celebração o padre foi até a casa do Senhor Djalma. Queria saber porque ele não estava na missa. Seu Djalma, estava de ressaca, havia tomado um porre monumental na véspera. Quando a procissão passou estava deitado na praia. A cara enfiada na areia, de fora só as ventas pra respirar. A baba caindo pelo canto da boca na areia. Ouviu de longe, o sino repicando, os fogos de artifício estourando. Anoiteceu no velho casebre. Uma luz tênue. Combinava com a ressaca moral. A melancolia, parecia melhor e maior que a tristeza.

O padre, o encontrou deitado na camarinha. Um colchão velho, umas telhas negras ums caibros roliços desiguais, umas paredes de taipa buchudas, mal feitas, ameaçavam cair sobre o homem, ainda alcoolizado, desde do dia anterior. Ao ver o padre, em sinal de respeito sentou-se na cama. O pároco perguntou-lhe, por que não fora pra procissão, pra novena? Preferiu mentir, disse que estava doente. Mostrou um lado da perna ferido. Na verdade, tinha mesmo levado uma queda, de tão bêbado caíra sobre uma jangada na praia. O padre, claro, teve que engolir a história. Aproveitou e calmamente deu-lhe conselhos. Senhor Djalma, prometeu que mudaria de vida. Dali alguns dias, ficou sabendo que o padre fora transferido para outra paróquia. Melhor assim. Vão-se os dedos, ficam os anéis.

13 de Julho, de 2020.





A Montanha Cap. 7




O homem estava-se a contemplá-la. Sentiu que estavam envelhecendo. Ele, mais que a montanha. Não tinha ânimo para empreender a subida. Talvez, se ali estivesse os amigos que um dia a escalara junto com ele. Pensava na vida. Estava num período em que amontoar recursos, ficar rico, bem de vida, ter reserva de dinheiro no banco, posses pra deixar pra família, era ideia que ia cansando, e como desejava que fosse ficando ultrapassada. Ia lhe vencendo pelo cansaço. Tentava almejar agora, coisa de alma, coisa que tivesse a ver com paz. Paz de espírito. O mundo e suas vaidades, a medida que os anos foram passando, pelo menos queria que fosse ficando cada vez mais longe. Mais distante, algo inalcançavel, inatingível. Se imaginava como alguém que vai numa estrada montado num cavalo veloz. Quanto mais galopava, e quando olhava pra trás... O que via? O passado. E se passado, era lá  que devia permanecer, no passado. Reviver, parte dele era martírio. Parte dele instigava o cavalo. E ir deixando pra trás, ficando cada vez mais distante era bom. Perceber as coisas que um queríamos tanto, vão mudando tão sutilmente. Interessante era ver que conseguimos nos enxergar quase como sendo a mesma pessoa, um dia menino, e agora quase chegando ao ocaso da vida. Muitas das vaidades de antes, quase que não notara, mas como ficaram lá trás, nos trinta, por aí. Se pudesse manter ao menos a lucidez, já consideraria grande conquista. 

O terceiro segundo de tempo, vivido na hora da morte, de quando recebeu a machadada na cabeça lá na taberna. Naquele momento fora parar num tempo de praça, onde meninos brincavam, andavam de bicicleta, jogavam bola de gude, e de rouba bandeira. As coisas  para um menino fica tudo projetado para um futuro que parece distante, inimaginável, inatingível. Mas que um dia chegaria. Não se preocupar é uma consequência. Os abutres revoavam no céu, a busca de uma presa. O homem não era oferta de proteína pras aves de rapina, não naquele momento. A montanha, ficaria lá nunca morreria, nunca seria pasto de abutres, nem de vermes no cemitério, ficaria lá eternamente, para que filhos, netos e outras gerações a contemplasse. Talvez alguém tivesse a consciência que a montanha trazia guardada, no coração, história de pessoas como ele. 

Diversos homens trabalhavam num curtume. Eram tanques cheios de um líquido avermelhado, extra´dos da casaca do angico uma planta nativa. O cheiro forte, da pele dos bovinos recém tirada do bicho atraía os abutres. Os homens estendiam os couros de boi dentro do tanque. O mal cheiro era quase insuportável. Embora para aqueles não surtia mais efeito. Não usavam qualquer tipo de proteção no trabalho. O contato com a água rubra e mal cheirosa dos tanques enrugava, engilhava as pontas dos dedos dos pés e mãos. Um homem de meia idade que estava dentro de um dos tanques, aproveitava para contar, para o rapaz que o ajudava na lida com os couros, fatos de sua vida. Dizia.

Entrou num bar, num lugar de entreposto, havia muita gente, muitos estrangeiros, gente de todo tipo e raça chegando e saindo. índios, mestiços, pardos, brancos trajavam-se de acordo com a região de onde viera. Se aproximou do balcão, pediu uma bebida. Trajava um casaco de pele de urso, um gorro de pano grosso. A barba dura de frio. Uma mulher se aproximou, perguntou se ele precisava dos serviços dela. Era uma índia, tentava com muito esforço parecer civilizada. Olhava-o como um cãozinho necessitando, nem que fosse de um afago na cabeça. Dava pra ver nos seus olhos, tinha fome. Muita fome. O homem simplesmente pegou o copo com a bebida e dirigiu-se a um canto da taberna onde havia menos pessoas. Sentou-se numa mesa. A mulher o acompanhou. Entonou a dose de cachaça. O rosto de pedra, nem parecia que acabara de ingerir um trago de quase álcool puro. Os lábio umidecidos. O que mais queria era descansar. O taberneiro atendendo seu chamado, trouxe-lhe outra dose de cachaça. Ele reteve a garrafa de cachaça. O homem aproveitou para pedir uma chave de um dos quartos que havia nos fundos da taberna. Saiu, a índia o acompanhou. 

04 de Julho, de 2020.