Viola Tricolor

João Acácio estudara no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Tantos anos já se passaram desde então. Desses mistérios que jamais conseguiremos explicar direito, veio-me a lembrança dele naquele instante. Será que ainda vive ele? Não sei. Vivo eu. Quando o conheci, percebi-o menino diferente dos demais de infância. Comprido e magro, trazia morenice, na pele, nos olhos. Os cabelos pretos luzidios, terminava numa pequena franja. Falava com voz suave, que deslizava por entre lábios finos e dentes perfeitos, alvíssimos. João Acácio era diferente dos outros meninos, não apenas fisicamente.

Estabeleceu-se entre nós, relação de amizade mútua. Num daqueles momentos em que estávamos ao recreio, contar-me-ia que não era filho legítimo, e como acabara sendo adotado. Sua mãe de sangue, teria sido uma jovem cabocla, que o concebera com um índio. Era quase uma menina quando pariu a ele. Teve-o sozinha, embaixo de um pé de Cácia Ferrigínea, no meio da noite, dentro da mata. E o abandonaria à sorte, envolto num pedaço de pano. O raiar do dia, e o calor do sol veio lhe aquecer. Mosquitos e formigas vieram, atraídos pelos despojos do parto. O que acabaria atraindo também o perdigueiro de Doutor Apolinário. O caçador casual, encheu-se de espanto ao ver a criança que não chorava, pensou-a morta. Não estava. Esqueceu a caçada e retornou à casa com o menino. Aquele se tornaria seu padrasto, e Dona Flora a esposa, sua mãe de criação.

Dona Flora e Doutor Apolinário da Mata, já haviam jubilado, quando veio João Acácio. Os Da Mata, era família tradicional da sociedade santanense. Sete filhos tiveram deles mesmo. Todos já saídos da casa paterna. As filhas cursaram o normal. Professoras e donas de casa, quiçá bem casadas. Dois dentre os varões, seguiriam a vocação do pai, bacharel em Direito. O bosque onde o pequeno Acácio havia sido encontrado ficava dentro de uma das propriedades do casal. À fazenda Barra do Tigre, que começava em Alagoas e adentrava a terras pernambucanas. Dona Flora, ex-funcionária pública estadual, não recebera de bom grado a chegada do rebento rejeitado. Àquela altura da vida, tendo os seus já se encaminhado aos destinos. Preferia a calmaria, nos aposentos da confortável casa que possuíam à rua do comércio, em Santana do Ipanema.

Sinhá Flora gostava de plantas ornamentais. Tinha-nas em abundância e as cultivava em todos os ambientes da casa. Comigo-ninguém-pode à sala de visitas - pra espantar olho gordo - dizia. Sugestivos Copos-de-Leite na sala de janta. Samambaias enchiam de verde as idéias de quem cruzasse os corredores. Orquídeas e tulipas num herbário. Espadas-de-São-Jorge e bromélias punham graça ao jardim. Amores-perfeito - amarelos, lilás e púrpuras – carinho especial recebiam, tanto que conversava com eles. Deitando-lhes zelo como a filhos, não adotados, mas legítimos. Indo à feira, procurava adquirir novas mudas, e apresentava as demais. 

A senhora do Doutor Apolinário, desenvolvera uma empatia desfavorável por João Acácio. - agora esse, já se tornara o menino que eu conhecera - Roupas e calçados folgavam no corpo franzino, comprados sempre um número a cima do seu, pra demorar a perder. Humilhava-o. Jamais demonstrando isso na presença do consorte, que dispensava mais amor ao garoto que aos filhos genuínos. 

Obrigava-o a realizar serviços, tais como limpar o jardim, lavar a privada. Mesmo dispondo de empregados para tais serviços. Por vezes privava-o do lanche matinal, ou mesmo das principais refeições, se ausente se fizesse o esposo. Punha-lhes ameaças a sua própria a vida, se acaso o menino relatasse ao padrasto o que lhes ocorria, da parte dela. Dúvida nenhuma tinha João de que ela seria capaz de lhe fazer algo mau. Afinal gostava tanto de plantas e estudara os poderes maléficos de algumas. Conhecia plantas que podiam matar uma pessoa, se acrescentadas à comida. 

Além do que já possuíam, os padrastos de João Acácio tinham outra fonte de renda. Advinda do aluguel de casas. Era propriedade deles, todo um lado da Rua da Cadeia. Mais de dez casinhas estreitas de três e quatro cômodos. A cada fim de mês os inquilinos, iam à mansão dos Da Mata, pagar o dinheiro do aluguel. Bons pagadores ganhavam muda de planta. Dona Flora prometia visitar o inquilino pra ver se cuidava da planta, o propósito mesmo era ver como estava a situação da casa. Maus pagadores recebiam cobrança, num recado bem comportado, levado por João Acácio. Sem que o Doutor Apolinário soubesse que dessa maneira se procedia.

Certa vez, determinado soldado por nome de guerra Craveiro, do quartel de Mata Grande, fora designado pra destacar em Santana do Ipanema. Alugara uma das casas de Dona Flora. Um belo varão, no vigor da juventude. Casara-se não tinha ainda um ano. O pagamento do aluguel, todos os meses, ia ele mesmo levar. Tudo aparentemente tão correto. Seria se João Acácio não passasse a desconfiar da madrasta. Inquietava-lhe a atitude de receber o militar presenteando-o sempre com um Amor-perfeito. Numa ocasião amarelo, noutra rôxo. Levava-o com especialidade, pra dentro do escritório do Doutor Apolinário. Trancafiados, se demoravam nesse comércio. Numa dessas vezes, cobrindo-se dos devidos cuidados, João aproximou-se da porta. Procurou escutar de lá dentro, sem nada conseguir. Arriscou olhar pela fechadura. Eis o que viu, sua madrasta sentada sobre a escrivaninha do Doutor. O vestido içado até a cintura, desnudava coxas e ventre. A Flora enlaçava o Craveiro entre as pernas. Tendo este as calças arriadas, beijavam-se na boca. Viola tricolor era o código, roxo se o Doutor estivesse à casa. Amarelo, livre estava.

O tempo, senhor da razão, encarregou-se de separar os amantes. O soldado Craveiro, meses depois seria transferido pra destacar noutra praça. O tempo separaria também, Dona Flora de Doutor Apolinário. O bacharel acometido por um estranho mal, aos poucos foi definhando, sucumbindo. Ao cabo de menos de um ano, viria a morrer vitimado por problemas respiratórios. O senhor tempo, sempre ele, se encarregaria de levar pra longe de minha infância, o grande amigo João Acácio. Bem, creio que está chegando a hora de encerrar por aqui nossa história. Pois tudo que por acaso acrescentássemos daqui por diante, não passaria de mera especulação.


Fabio Campos 

O Pacto MMX (d.C.)

A igreja Matriz de Senhora Santana, século e meio de história contemplava do alto de sua majestosa torre, Santana que desce pro Ipanema. Santana de ruas que sobem, de ruas que descem, num bailado de paralelepípedos. Tudo feito à mão. Mãos calejadas. Pedra cortada, talhada, vendida a dois tostões. Pedra que só ia adquirir valor nas contas oficiais. 

O Rei 
Quando Doutor Menelau Reis, se acordou, já passava de onze horas da manhã. A casa do prefeito, ficava na Rua Coronel Lucena Maranhão. Apenas a alguns passos, do prédio da Prefeitura Municipal. O chefe de gabinete foi até lá. Entrou casa adentro, colou nos calcanhares do gestor municipal, não parava de falar. Colocava-o a par dos compromissos que o aguardava no paço municipal. O prefeito foi até o quarto e passou direto pro banheiro. Hora e meia, ali. Uma mesa posta o aguardava. Apareceu de novo, tomou um gole de café, acendeu um cigarro. Não falou palavra, com ninguém. Saiu pra prefeitura. Seguia-o, o cortejo, sua assessoria, dois ou três bajuladores de plantão e vários mendicantes. Com o secretário de obras, ia falar sobre o projeto de construção do mercado modelo no largo da ponte do urubu que não avançava, porque um inimigo político, o coletor estadual Heitor Matias Vieira não vendia, nem aceitava a desapropriação de um terreno dele, naquela área. Terreno, muito importante pra continuidade da obra. 

E então, como pegar Heitor? Se ele não precisava do município pra nada! O cargo do estado lhe dava autonomia. Emprego bom, bom salário. Além do mais, era de família tradicional. Tinha fazenda, muito gado, dinheiro no banco. Influência política: amigo de deputados e do governador. Morava sozinho, também na Avenida Coronel Lucena, a esposa fora embora pra Maceió com os filhos. Todos os dias, ia pra fazenda. Todo mundo tem um ponto fraco - Pensava Menelau - Só precisava descobrir, qual era o dele. 

A Dama e o Valete 
Na serra aguda, ali de frente, ficava a chácara do prefeito. Helena, estava naquela manhã junto a cocheira, anexa ao curral. Helena era uma mulher bela. Um gracioso chapéu recobria-lhe a cabeça. Enquadrando-a em moldura diáfana. Vestida numa blusa vaporosa e leve, que lhe desenhava os seios graciosos. Uma calça jeans demarcava suas curvas, território alheio. De onde a imaginação masculina, intrusa, jamais devia ultrapassar. Mesmo assim alguns se aventuravam. Seria insensatez até, não compará-la àquela Helena dos sonhos dos homens troianos. Aquela Helena era da caatinga do sertão. Helena a dama. A primeira dama do município. Naquela manhã resolvera montar um belo cavalo. Dera ordem a Aparecido, pra que providenciasse outra montaria e a acompanhasse, não gostava de cavalgar sozinha. Páris, um arauto de corpo de bronze, parecia bailar ao lombo do cavalo. Um príncipe e uma rainha, saídos de um conto de fadas, comparação perigosa. Uma luz tênue os envolvia, uma densa neblina esvoaçante no ar. A luz do sol, traspassando o cenário dando aspecto de um mundo irreal, imaginário. Páris se pudesse consolidava aquele momento. Eternizaria como nos contos mágicos contados por uma professora que um dia tivera no primário.

Os Cavalos 
Heitor Matias era um Cavalo, indomável, que não se deixava dominar por montaria. Jamais dera o pescoço à canga. Cabeça dura, não ouvia ninguém. Achava que nunca precisaria de conselhos. Sabia exatamente o que devia e o que precisava fazer, não importando de que situação estivesse falando. Era assim, homem, ora sisudo, ora brincalhão. Ia à troça se o momento assim o permitisse. Na praça da Bandeira reunido com amigos gostava de fazer piada do prefeito de sua terra. Menelau Reis outro cavalo. A estranha e contundente comparação servia pra enfatizar a personalidade forte, bruta, daqueles homens talhados no mármore do orgulho e na frieza de pensamentos. Não dava pra classificá-lo de irracional, pois o que mais usava era a razão, o raciocínio. Não dava pra dizer que eram destituídos de emoção, porque a própria frieza e a indiferença, também eram emoções. 

Menelau 
O prefeito, se acordou, consultou o relógio de pulso. Passava de uma hora da madrugada. Tentou coordenar as idéias. Onde se encontrava, naquele momento? No prostíbulo de Eneida, às margens da BR 316, próximo a vila de Areia Branca. Colocou-se sentado a cama, viu que na cama havia alguém. De fato havia uma mulher nua, dormindo ao seu lado. Não lembrava quem era. A mulher estava de bruços e virada para o lado contrário. De modo que ele não via seu rosto, somente uma vasta cabeleira negra e sedosa. Era uma mulher de corpo formoso. Rebuscou as lembranças: Chegara ali completamente bêbado. Saiu da cama, só aí notou que também estava nu. Apossou-se de uma toalha, pegou água mineral num frigobar. Tentou lembrar, dos fatos acontecidos antes dali. Retomar até onde lembrava, estava na prefeitura e o amigo Virgilio chegou, por volta das cinco da tarde. Depois de tomarem várias cervejas na Sorveteria “O Pinguim”, fora em casa, pegara aquele litro de uísque. E agora estava ali, no cabaré de Eneida. Resolveu que iria passar a noite. Não pretendia voltar pra Santana aquela hora da madrugada. Vestiu-se e saiu do quarto, foi até o bar na parte da frente do prostíbulo. Eneida aproximou-se e foram os dois pra uma mesa. 

Eneida 
Pra dizer quem ela é, precisaremos voltar quinze anos, no tempo. Eneida era uma jovem garota de dezessete anos, uma galeguinha sarará, comprida e magra. Os peitos, duas pequenas bolinhas que marcavam a blusa vaporosa. Pernas longas e finas. Os quadris, só promessa de quando se tornasse uma mulher. O ventre liso, sempre exposto, devido a suas roupas extravagantes. Estudava no Ginásio Santana. Após as aulas, ia pra Praça da Bandeira, flertar com os meninos estudantes. Um moço da cidade se engraçou daquela garota. O estudante, do terceiro ano de contabilidade, Heitor Matias, rapaz metido a garanhão. A fama de conquistador e namorador ia longe, muitas meninas, já tinham sido, sua namorada. As filhas dos amigos de seus pais, empresários e comerciantes. Essas, ele respeitava, e o namoro não passava de muitos beijos e amasso na porta de casa. Não pensava em casamento. Pensava em sair de Santana, se formar em uma faculdade da capital, queria ser agrônomo. Quando botou os olhos na moça, quis a todo custo ficar com ela. Se engraçou da galega Eneida, e jogou todo seu charme, não poupando galanteios a menina. Assim que teve oportunidade de conversar nos corredores da escola iniciaram um namorico. As amigas até que tentaram alertá-la para o perigo. Moço da cidade, quando quer ficar com menina do sítio, o interesse é outro. 

Na Festa da Emancipação política do município. Após as apresentações na Praça da Bandeira. Os dois, tomaram muitas cervejas na sorveteria “O Pinguim”. Na época ele já tinha carro, e a chamou pra saírem, só os dois. Ela não aceitou, só iria se junto fosse uma amiga. Aceitou, enquanto sua cabeça ia traçando um plano pra ficar a sós com ela. Levou as duas pra outro bar afastado. E depois de muitas rodadas de cervejas, as duas estavam bêbadas. Ele se prontificou pra levá-las em casa. Não adiantou dizer que não, as convenceu. E Heitor mostrou o tipo de homem covarde que sempre fora. Só se revelando nas sombras, quando a vítima está dominada e indefesa. Primeiro deixou a amiga em casa. Em vão tentou relutar: um rapaz de porte atlético, como era Heitor no vigor da juventude, metro e noventa de muito músculo e força bruta. Debalde uma frágil ninfa, nas garras de voraz gavião. Ele a desvirginou. A possuiu, contra sua vontade. No lugar do coração de Eneida ficou o ódio. Sevado à dezoito anos, ódio, por aquele homem, que marcaria daquele dia em diante, o resto dos anos de sua vida. Disse a si mesmo que um dia se vingaria. Heitor nem sabia, mas esse dia estava bem próximo. 

Um Jogo 
Menelau gostava de jogar baralho, não era dos bons, mas jogava. Frequentava a sala vip do Tênis Club Santanense. Passava dias seguidos jogando sem parar. Só quando estava no limite da estafa física e mental, parava. O que ganhava dos colegas de carteado, não se comparava as pequenas fortunas que já perdera. Sentou-se a mesa com Eneida. Ela providenciou dois maços lacrados de Copag. Conversavam enquanto distribuía as cartas. Eneida tornara-se em uma mulher formosa. Agora aos trinta e poucos era uma mulher completa. Desejada pelo prefeito. Só tivera uma filha, que de modo algum lhe havia tirado a formosura. A filha se encontrava longe dali. Em São Paulo, bem casada, bem sucedida. Outro pesadelo repousava sobre a vida de Eneida. Mais uma história escabrosa, que teve a participação de Heitor. Usou dos mesmos artifícios contra a mãe na juventude, ele usara com sua filha, desta vez, depois de velho. Por acaso ele encontrou-se com Cassandra, a filha de Eneida, na Santa Casa de Misericórdia em Maceió. Ofereceu-lhe uma carona. A moça não viu mal nenhum nisso, aquele homem era influente e respeitado. -Que mal havia em aceitar uma carona? A demais Junior um amigo, que morava no povoado Areia Branca também viria. Foi sua perdição, dar confiança a quem não merecia. Foi só seu amigo descer no povoado, e Heitor partiu pro ataque: Fazendo-lhe uma pergunta: 

-De quem é filha, essa menina tão bonita?
Quando ela disse, acabou rindo à beça. Cassandra não sabia, porque ria. Só entendeu quando viu o revólver apontado pra ela. Seguido da ordem pra tirar toda a roupa. Era noite. Chorando muito, obedeceu. E ele fez tudo exatamente como fizera com a mãe. Desvirginou-a com brutal estupro. Ainda chorando a menina chegou a casa. A mãe ficou alucinada. Ainda assim determinou que a filha ficasse calada, não dissesse nada daquilo a ninguém. E ambas guardaram o segredo como havia determinado. Tocaram a vida normalmente. Tempos depois Cassandra conheceu um rapaz que veio de São Paulo. Namoraram e casaram, e foram embora. 
O pôquer do prefeito e Eneida continuava. Lembrava de Heitor, porque só era em que o prefeito falava o tempo todo. Já passava de três da madrugada quando uma ideia lhe ocorreu:

-E se fizesse uma aposta de peso com o prefeito?
–Vamos apostar alto prefeito?

Sempre jogava apostado com a dona do cabaré. Ela tinha algum dinheiro guardado. Considerava o prefeito um freguês, no pôquer. Numa rodada de dez, sempre ganharia mais de seis partidas. Era um jogo equilibrado, com uma pequena vantagem pra ela. Mas ele não perdia a esperança de reverter esse quadro em seu favor. Nunca se sabe. Jogo é jogo! O prefeito olhou pra Eneida curioso. Será que teria a oportunidade de conseguir o que tanto queria? 

–Vamos Eneida!... Deixe de suspense!... 
–A aposta é a seguinte: Se eu perder, passo uma noite com você! Disse ela. 
–Com tudo que eu tenho direito? Quis ele saber. 
–Sim faremos amor! Meu querido! Do jeito que você quiser! Por uma noite inteirinha... 
–E se eu perder?... 
–Manda matar Heitor. 

Ele ficou extasiado. A primeira reação foi rir muito. Riu a bandeiras despregadas. Ela continuou séria. Menelau foi ao quarto, e pegou o litro de uísque . Tomou um trago, tão grande, no próprio gargalo da garrafa, que o conteúdo deu uma baixada considerável. Voltou à mesa. Agora já não ria mais. Depois ouviu Eneida explicar porque desejava tanto aquela morte. Um pacto então foi firmado e assinado em folhas de caderno.
Uma semana depois Heitor Matias estava sentado à sala de casa, era noite dessas calorosas de verão. Depois da janta, alguém chamou-lhe à porta. Ao abrir perguntando quem era, recebeu três balaços de trinta e oito. Meio século já se passou desde então. E o Mártir dos Vieira, hoje é apenas nome de rua em Santana. Nome de rua que já causou até certa polêmica. Por que Mártir? Se seu nome era Matias? 

O Pacto MMX d.C. (depois de Cristo) 
Vinte séculos antes lá na Galiléia, terra de Jesus, outro rei jogador, também apostara alto. Em um jogo perigoso. Herodíades, cheia de ódio, combinou com Salomé que pactuou com o rei. Pediu num prato a cabeça de João, o profeta. O rei pra não voltar palavra atrás, assim procedeu. Tudo por uma noite de prazer, por uma dança sensual. Em Santana, Heitor tinha esperança de subir ao poder, de ser o Messias de sua terra. João o batista, anunciava a verdade e denunciava a luxúria e o pecado nas altas cúpulas do governo. Tiveram ambos mortes planejadas. Odiados por denunciar contra os governantes em público. Em Santana um ímpio. Na Judéia um justo. Um proclamava as margens do Jordão, o outro nas praças às margens do Ipanema. 

Fabio Campos

Paranóia Caleidoscópica


Já se havia iniciado a quaresma. Santana do Ipanema punha-se novamente esmorecida. Um esmorecimento largo, estendido sobre coisas e gente. Todos carregados de salubridade, tudo numa oxidação demasiadamente lenta.  Não fossem as notícias vindas de longe, tudo parecia estragado, irremediavelmente mofado. A quarentena da igreja, feito vírus, atingia em cheio, o centro vivo da plebe. Ninguém animava-se a nada. Sentimentos feito pintura desbotada, em ruínas. Gosto de cabo de guarda chuva na boca, com destaque pra os que se esbaldaram nos dias frívolos de momo. Tudo parecia contaminado por uma ressaca moral, que se impunha, mil vezes pior que a etílica. Cura-se esta, com hidratação, a outra encravava um ressecamento na alma.

Professor Pascoal acabara de sair da escola. Pronomes, substantivos e verbos ainda esvoaçavam  adiante de suas vistas. O cérebro viciado de tantas repetições, infelizmente não conseguia se desvencilhar facilmente dos contextos alienantes. Não dera pra disfarçar, os alunos sempre acabavam percebendo, sua dificuldade pra concentrar-se, manter-se lúcido. Parecia estar depressivo,  numa semi estado de letargia. Pensamento vagabundo. Sentia-se um traste.  Não era um bom professor. Pra isso, teria que ser bom ator, e não era.  À noite pausa na paranóia, a universidade, o curso de artes plásticas refrigério pra mente. Gioconda e seu sorriso enigmático povoando suas fantasias. Oh! Monalisa...te amo! Meu amor platônico! Isso o fez trazer à vida, no seio do seu lar!

Perguntou só por perguntar, como havia sido o carnaval dos colegas. Embora não tivesse o menor interesse em ouvir o que diriam. Apenas fingia que ouvia. Com uma nitidez que o impressionou, veio-lhe o pensamento quase que materializado, dizendo que: “Felicidade não existe. E que "Ser feliz era um estado de espírito”. Por frações de segundo teria se sentido feliz, na festa da carne, pouco importava se sob efeito de alucinógeno.  E tinha os colegas e alunos que tiveram oportunidade de tê-lo visto fantasiado e completamente embriagado. Não ficou constrangido, porém não queria mais falar nisso, nem sobre o problema que enfrentara no período que antecedera a festa do carnaval. Achava deselegante, inconveniente.

Ainda na sexta-feira, que antecedeu ao frevo, a discussão que levaria a briga, o bate-boca com a esposa. E Pascoal saiu de casa. Tudo porque, devido à situação financeira desfavorável, não iriam passar o carnaval na praia, aonde sempre iam. Por outro lado precisava daquelas férias. Não as férias do carnaval, férias da companheira. Forçosa parada no relacionamento conjugal, num momento quiçá, tão oportuno. Pausa no compromisso de marido, na responsabilidade de dono de casa. Talvez aquele fosse um carnaval inesquecível, de uma forma ou de outra seria. Lembrava-se pra confortar-se de três de seus colegas, que antes do período de frevo, haviam confidenciado estarem se divorciando de suas esposas. Não sabia bem ao certo se isto lhes servia de consolo. Quem sabe servisse. Afinal, depois de tantos anos de convívio, parecia que inevitavelmente precisavam dar um tempo. Ambos, carecidos de um tempo. O mestre Leonardo da Vinci havia lhe ensinado a ficar olhando a chuva, enquanto molhava um velho muro baldio. Formavam-se imagens incríveis.

Pascoal, foi dividir espaço no apartamento de Victor, um sobrinho. Um rapazola que conquistara cedo independência. Tudo tão bagunçado. Poria ordem ali. Talvez não. Talvez não tirasse nada do lugar, quem sabe aquela desordem era o estilo jovem de viver. Tinha que adaptar-se àquele modo de vida. Aprender novo jeito de ser, tinha um mundo novo a conquistar, vida nova pela frente. Era fascinante pensar em algo novo quando tudo parecia ruir. Afinal estava tudo tão estragado, podre. Os hábitos do jovem acabariam por influenciá-lo. Animou-se a frenquentar uma academia de musculação. Isso de alguma forma trazia um pouco de ânimo na abalada auto-estima. Encher de ácido lático os músculos, tornando-os inflados, fazia-o sentir-se o Adão de Michelângelo na Capela Cistina.  Reaprender como preparar algo pra comer. Lavar as próprias roupas, refazer despesas. Tudo parecia rodopiar na cabeça. Nada disso tinha um sentido ruim nem bom, ou lhes causasse sensação de perda.

Muito pior do que tudo o que lhe acontecia era o pensamento fixo. Prisões, cárceres de ferro e concreto, jaulas, masmorras. Nenhuma dessas clausuras, que apenas prende fisicamente, tem comparação como o aprisionamento ocasionado por um pensamento implacável, martelando à mente humana. Não há nada pior que uma idéia fixa, apossando-se de sua alma. Sufocando-lhe a sobriedade. Extirpando-lhe a capacidade de discernir entre real e imaginário. Arrancando-lhe a lucidez. Definhando-lhe o espírito, amofinando as vontades. Caso não se tenha forças pra estancar tais divagações, antes. Certamente hão de matar-lhe! Como uma maldita planta que vai se arraigando, envolvendo com seus tentáculos, e quando menos se espera, domina-lhe totalmente. O pensamento de matar, de destruir é muitas vezes mais poderoso que o pensamento de uma boa ação, de fazer o bem.

Foi à casa de sua mãe. A casa que o viu nascer e crescer. Seus olhos buscavam coisas que o confortasse,  que o acariciasse. Buscava na verdade, a si mesmo. Viu Guernica, de Pablo Picasso, feito manchas e desenhos, nas paredes de sua infância.  Deitado na cama que um dia fora sua, olhava pras telhas. Velhas telhas que lhes viriam ainda menino, desocupado de alucinações. Talvez aquilo tudo fosse apenas um sonho, quem sabe poderia fechar os olhos e ao abrir, lá estaria ele. Como gostaria de encontrar a si mesmo. Ele de verdade, e se acaso sentisse medo, correria aos braços da mãe. O simples ato de pensar fazia-o suar, aumentavam-lhes os batimentos cardíacos. As coisas se faziam derretidas feito queijo aquecido. O relógio na parede se alongando gelatinoso, flácido, trazendo pra ali um quadro surreal de Salvador Dali.

E se morresse? Não poderia morrer, não antes de vingar-se. De que mesmo iria vingar-se? Tinha consciência que vingança, não levaria a coisa alguma. Certeza nenhuma, de nada. Trazia à cintura, o revólver emprestado de um amigo. Pelo fascínio que tinha por armas de fogo, trazia o frio metálico apertado contra o ventre, por puro deleite. Acariciava-o como a uma mulher sensual. Não fazia sexo à dias. Sentia-o junto ao pênis, o aço gélido, rijo. A arma dando-lhe ilusória sensação de poder, de virilidade. O revólver, os projéteis exacerbavam erotismo. A forma fálica da bala, a empunhadura remetendo a anatomia dos testículos, o cano, o órgão sexual masculino. E lhes vieram novas e lascivas alucinações. Via mulatas exuberantes, de seios volumosos, coxas grossas, de lábios carnudos, como que saídas, de quadros pintados por Di Cavalcanti. E fazia amor com elas. Tão excitado estava, que não teve como evitar o ato de amor solitário, o orgasmo. Certeza não tinha, se aquilo tudo acontecia, ou se apenas dormia e sonhava.

Fabio Campos

Fan Fon Pen


Dona Carmem resolvera sair do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, com seus pupilos. Naquela manhã de segunda-feira, iria fazer uma aula a céu aberto pelas ruas da cidade de Santana do Ipanema. Visitariam prédios públicos e praças. Começaria pela Praça das Coordenadas. A professora e sua turma parecia uma galinha com seus pintinhos. Comparação deselegante, mas não conseguimos pensar noutra coisa. A semelhança poderia ser ainda maior, se não tivesse no meio dos meninos, um que se destacava por conta do tamanho:  

- Fan-fon Pen!
-Professora!  Ele está me encrencando!...Mande ele ficar quieto...
-Calma Renan...

O menino que os outros apelidavam era Renan. O apelido ele odiava, perdia o controle. Só a professora Dona Carmem e seus pais, chamavam-no pelo nome. Tão desacostumado, que achava até estranho quando o chamavam de Renan. Era como se estivessem chamando, uma outra pessoa, e não ele. A estatura incomum, era apenas mais um detalhe, destacava-se no meio das outras crianças por outras coisas. Já ouvira alguém comentar sobre síndrome de Down, não entendia direito o que isso significava.  Ninguém lhe explicava, tampouco queria entender. Não se importava por ser mais alto, que os outros meninos. O que não gostava mesmo era de ser visto, pelos colegas ou pelos adultos, como bicho estranho. Não se sentia estranho.  Por vezes vira as professoras falando baixinho pra ninguém ouvir, sabia que falavam dele. Observavam-no, não com olhar de reprovação. Era olhar apreensivo, de quem se preocupa. E isso lhes deixava mais tranquilo. Gostava de saber que se preocupavam de alguma forma com ele.

A PROFESSORA

Ele achava-a linda. Como era bom, toda manhã, por mais de quatro horas, ali na presença dela. Disputando com os outros meninos sua atenção. Nenhuma importância dava as atividades, dessas nem queria saber.  O tempo todo dedicado à tarefa que mais gostava: Ficar olhando a professora.  Só se distraía, se outro menino o importunasse. Deslumbrado admirava seus longos cabelos pretos e lisos presos no alto, por um lenço de estampa colorida. Igualmente belos seus grandes olhos negros. Como achava linda a professora!  Seu rosto pontilhado de sardas, um charme especial. O jeito de ajeitar os óculos, as unhas bem cuidadas. O perfume inebriante do seu colo.  Sua voz, melodia para seus ouvidos. Meiga, nunca se alterava. Como, não se alterava? Mas claro que se alterava!  Ainda outro dia, pegou-lhe pela orelha, por estar brigando com o Roberto. Ficou só uns dias magoado, mas esqueceu. Quando um colega a requisitava, porque quer que fosse. Chamava-lhe, só pra ter a atenção dela. Mesmo sem ter nada pra perguntar ou lhe mostrar. Escrevia cartas de amor pra Dona Carmem Azevedo e sempre lhes entregava ao final da aula. E ela sorria. Com seu sorriso de dentes alvos, perfeitos. Quando Dona Carmem, estava com os meninos menores do jardim infantil.  Invejava-os, porque levava pra lhes dar água. Outro dia, ficou se roendo de raiva, de um deles. Levou-o pra urinar, viu quando entraram os dois no banheiro. Ele ficou olhando de longe, quando saíram ainda deu tempo de vê-la fechando a braguilha do moleque. Roeu-se de ciúme de Dona Carmem. Depois teve vergonha, como podia ficar com ciúme de um menino de quatro anos. Ele que tinha quinze. Não podia pedi-la pra levá-lo ao banheiro. Sentia seu corpo mudando, expulsando aos poucos, o menino que ele relutava em não deixá-lo sair, de si. Os pêlos pubianos despontados incômodos. Que importa, pra ele ainda sentia-se menino. Por vezes sentiu o sexo retesado, em plena aula. Certa ocasião se vendo nessa situação, esfregou-o tanto por cima do calção da farda, que um jato de líquido quente lhes saiu, impregnando as roupas de baixo. Os outros meninos zombaram dele. Disseram a Dona Carmem que ele havia urinado nas calças. Ele sabia que não era urina, mas não disse nada. Ficara terrivelmente envergonhado. Por causa disso, nesse dia foi pra casa mais cedo. Precisava mudar a roupa. Odiou os colegas.

O MENINO

Tinha um colega na escola que Fan-fon Pen gostava de brincar, mais do que os outros. Era Ciro “Ratazana”. Um menino de olhar sofrido, que antes morava no sítio Jaqueira. Dele, ouvira histórias muito tristes, o apelido caricaturava sua feiúra. Contou-lhe que tinha mais doze irmãos, por ser muito doente veio pra cidade tratar de sua asma, morar com uma tia na rua de Zé Quirino. No sítio sofria com as ignorâncias do pai. Na rua os maus tratos da tia que não gostava dele. Mas não era por seu padecer familiar que Fan-fon Pen gostava de “Ratazana”. A afinidade era porque ambos padeciam de um sofrimento comum, a rejeição no meio dos outros meninos. O menino, por ser rural e asmático, ele pelo retardo mental.  No recreio costumavam ficar juntos. Criou-se entre os dois, uma espécie de cumplicidade e companheirismo. Quando aprontavam traquinagem com os outros, era em parceria. Se sofressem agressões ou humilhações defendiam-se mutuamente. Nas brigas, todos sabiam que os dois se ajudavam. Sabendo estarem os dois juntos, ninguém se atrevia a encrencá-los. Um dia no recreio Fan-fon Pen brincava com “Ratazana” num canto do pátio, quase isolados dos demais. Começaram a trocar petelecos nas orelhas. Daí a pouco estavam embolados no chão numa briga de mentira. Tanta era a satisfação de recíproco prazer entre os dois amigos naquele momento, que num ímpeto de êxtase, Fan-fon Pen tentou beijá-lo na boca. “Ratazana” a muito custo conseguiu esquivar-se. Enojado juntou as mirradas forças de seus braços franzinos e empurrou-o, enquanto cuspia fora o ósculo furtivamente roubado. 

A MULHER

A biblioteca municipal de Santana do Ipanema, funcionava no primeiro andar, do velho sobrado de esquina ao lado da igreja matriz de Senhora Santana. A bibliotecária era Dona Iolanda. Nunca se entregando a idade que possuía. Já iniciada na segunda metade de século de vida, com esforço, buscava aparência de mulher de trinta, muito embora conseguindo apenas parcialmente seu intento.  Vestia-se com zelo e elegância, ainda que fosse só pra ir até na padaria da esquina. Mantinha-se sempre maquiada e perfumada mesmo na lida doméstica. De ida ao trabalho, dobravam-se os esmeros. A demais, era uma senhora bem apanhada. Mantinha firme o busto, ofertado aos gulosos olhares masculinos pelo decote dadivoso e o quadril avolumado desenhava-se febril nas saias e anáguas. Ao ver aquele menino, sentado a mesa de leitura, absorto em sua tarefa. Depois de alguns movimentos pela sala de leitura, a matrona aproximou-se e perguntou se podia ajudá-lo em alguma coisa. Ele agradeceu dispensando. Mesmo assim ela sentou-se ao seu lado. O busto impudico foi parar dentro dos olhos de Fan-fon Pen, também  seguiram para lá, o encontro final, de suas volumosas pernas cruzadas. Ela suavemente pousou sua mão alva e aveludada sobre a coxa dele.  Fez isso enquanto fazia uma referência àquele livro. E uma centelha de fogo invisível percorreu todo o corpo do mancebo. E seu sexo fez-se inflado feito bexiga de festa dentro das calças. A mão de fada procurou ávida a vara de condão. E o menino sem tirar os olhos do livro, viajou sereno na garupa de uma magnífica vaca encantada dotada de asas e tetas divinais. E nos seus pêlos ásperos cavalgou. E foi arrebatado para o alto, cada vez mais alto, tão alto que lhe veio uma vertigem e ele caiu desfalecido na mesa de leitura. 

AREIA E PEDRINHAS

Gostava de ir brincar na beira do rio Ipanema, a tarde quando nada tinha pra fazer. Tão bom, ficar horas brincando na areia. Deixava-se rolar na areia fofa, macia. E com areia molhada fazia desenhos, construía figuras e bonecos. Dava nome as suas esculturas. De areia, esculpia toda a sua turma excetuando a professora Dona Carmem. Pois uma vez tentou esculpi-la, mas ficou tão feia e ele preferiu dizer que era uma de suas irmãs, a Renata. Depois destruía tudo, esmurrava os bonecos que representavam os colegas que mais implicava com ele. Construiu de areia, uma cidade. Imaginou uma cidade feito Santana só de meninos e meninas.  Ele mesmo se elegeria prefeito, não precisaria de eleição. Seria prefeito o menino que tivesse a cabeça maior, pronto era ele mesmo!  Fan-fon Pen prefeito da cidade de Santana do Ipanema, na versão só pra meninos e meninas.  Baixaria uma lei:  Ali ninguém podia fazer chacota uns dos outros. Colocar apelido em alguém seria um crime punido com prisão perpétua. Em caso de reincidência, pena de morte sem apelo. Dividiria Santana ao meio: A Camoxinga seria das meninas e o Monumento seria dos meninos.  Uma Santana, onde todos se preocupassem unicamente em brincar, quanto mais criativa a brincadeira, mais a meninada ganharia por isso. Seus salários claro, seriam pagos com os doces, bolas de futebol, patinetes, bicicletas da Casa Comercial de Seu Marinho. Todos podiam fazer coleção do que quisesse. Ele gostava de colecionar pedras e conchinhas. Estava sempre em busca de uma pedrinha de cor diferente pra aumentar sua coleção. Cada pedrinha sua, tinha nome de coisas bonitas. Na beira do rio Ipanema já encontrara tantas pedrinhas que aumentavam sua coletânea. Tinha vontade de colecionar outras coisas. Talvez botões, pipas, bolas de gudes, flâmulas de clube. A única regra era: tinha que ser coisas coloridas.  

A MENINA

Assim que a viu apaixonou-se. Ficou completamente apaixonado pelos olhos de Gioconda. Não por ela, mas pelos seus olhos. Eram os mais lindos que até então ele já contemplara. A menina novata na escola tinha mais dois irmãos, Pietá e Leonardo. Eram filhos de um fiscal de impostos de renda estadual que viera transferido da capital morar em Santana do Ipanema. Matriculou os três na Escola Padre Francisco Correia. Agora, nada mais o fascinava que os olhos de Gioconda. Nem Dona Carmem com quem compartilhava suas confidências, nem as horas felizes com ratazana, nem as idas ao Ipanema, nem a volúpia do gozo velado, proporcionado por Dona Iolanda naquele dia na biblioteca. O prazer de contemplar os olhos de Gioconda, comparável apenas àquele de admirar as pedrinhas coloridas de sua coleção. Os olhos daquela menina passou a ter uma significação, de algo desejado nunca antes experimentado. Contemplar aqueles olhos era como entrar num mundo de sonhos só dele. Um mundo todo azul, suave, aveludado. Sentia-se leve numa outra dimensão. Um mundo em anil. Onde borboletas azuis marinhos, num céu azul piscina, esvoaçavam por uma aura azul turquesa. Dali do interior daquelas duas contas blues no rosto da menina, emanava uma paz nunca antes encontrada. Aquela paz lhe pertencia. Tinha certeza, a menina bem o sabia que não era de seu, mas dele. Surgida na sua vida para entregar-lhe:

 -Toma esses topázios são teus.

Dizia aquele anjo índigo, no sonho. É tua vida que te dou.    

DUAS PEDRAS MAIS PRA COLEÇÃO

Desde que vira a menina, suas noites tornaram-se insones. Agora ainda mais amuado nas aulas, motivaram preocupação dobrada de Dona Carmem que em vão investigava as causas. “Ratazana” não entendia o que acontecia com seu melhor amigo.

–Está em estado depressivo. Disse alguém na escola.

-Isso é da idade!  Falou um outro.

-Nada de diferente notei. Em casa comentou-se.

Mas ele andava feito um sonâmbulo. Parecia nada escutar do que lhes falavam. Transportado pra um outro mundo, estando somente de corpo, nesse. Corpo anestésico, letárgico. Sua mente, sua vida, sua alma dentro do natiê daquelas duas contas. Aquela menina, enfim ele as encontrara.  A coleção, apenas pretexto, sabia que um dia a encontraria.  De repente começou a faltar-lhe ar nos pulmões, sua vida se esvaindo, tragada pra o profundo daquelas duas auras de luz lazuli. O mundo girava, a sala de aula rodopiava. Os gritos dos meninos, no recreio do pátio, som distante. Procurou por ela. Lá estava, indo ao banheiro. Seguiu-a.
Um grito de horror ecoou no pátio. Uma menina apavorada se arremessou de dentro dos banheiros femininos. Em estado de choque nada conseguia dizer. A professora chamou a Diretora algo sério aconteceu no banheiro das meninas. Uma comitiva de professoras se dirigiu pra lá. Uma cena dantesca, macabra, fez-se ali. Fan-fon Pen, em pé, olhava fixo no nada. A menina estendida ao chão, corpo inanimado, seus longos cabelos loiros recobriam o rosto, a cabeça envolta numa poça de sangue. E das duas mãos crispadas dele, gotejava no piso úmido por entre os dedos, viscoso líquido vermelho sanguineo.  E pousavam da palma de suas mãos, duas contas globulares impregnadas desse líquido, num misto de vermelho, branco e azul.  

Fabio Campos

Um Par de Oxford Preto e Branco


Na Santana do Ipanema, dos tempos que a travessia do rio se fazia à canoa, chegaria um regimento, advindo da capital do estado. Designado pelo então governador Osman Loureiro de Farias, atendendo ordens expressas do caudilho gaúcho, Getúlio Dorneles Vargas, presidia nossa nação à época. A missão da companhia, combater e expurgar de vez, o cangaço do sertão, tendo a frente o coronel Lucena Maranhão. Se estabeleceriam no pomposo quartel da polícia militar, ao largo do Monumento, defronte, a capela de Nossa Senhora Assunção. 

Por essa época viveu Antonio Francisco Rodrigues Martinho, filho do capitão Fernando Guedes Martinho e Souza, um maceioense que acabaria se tornando santanense. Seis, seria o número de filhos do capitão, todos nascidos em Santana do Ipanema. Dentre os que nasceram varão, Antonio Francisco, acabaria sendo uma exceção, dos que ingressariam no serviço militar. Antes mesmo de findar o ginasial, teria tido uma longa e séria conversa com seu pai, sobre seu futuro. Ao dizer que não tinha interesse de seguir a carreira militar, muito entristecido ficaria o capitão, que almejava futuro brilhante, também pro primogênito, na garbosa infantaria da polícia militar de Alagoas. O capitão tinha muito orgulho de pertencer ao quadro de dedicados homens que defendiam as fronteiras de seu torrão, e de combater o banditismo no estado. Grande admiração tinha, pelo nosso passado histórico, principalmente o legado deixado por dois bravos homens, Marechal Deodoro e Floriano Peixoto. O filho mais novo acabaria, se tornando, seu filho pródigo. Assim como aquele dos evangelhos, pediria ao pai os espólios antecipados, e partiria. E nada o destituiria do pensamento que tinha de ir embora pra Recife, onde continuaria os estudos. Seguiu pra capital pernambucana, pra estudar na escola de comércio, quando retornou a Santana já era homem feito. Carecendo de por a cabeça no lugar, pensar em casamento. Deixar pra trás a vida boêmia, que vivera nos bordéis da Veneza do capibaribe. Quão difícil seria, uma vez boêmio, sempre boêmio. 

Filho de família tradicional, recém formado, bem aquinhoado, e um belo mancebo. Com esses atributos, grande alvoroço nas mocinhas casadoiras, causaria o retorno de Antonio Francisco, a Santana do Ipanema. Ainda sem saber o que queria da vida. Entregar-se-ia primeiramente ao prazer de redescobrir sua terra. Os colegas, os momentos da terna infância que vivera tão intensamente. As idas ao rio Ipanema, as brincadeiras nos arredores. Muitas seriam as noitadas de farras, em louvores pela volta do venturoso Antonio. Tantas e tão efusivas comemorações pelo seu retorno, que incomodado ficaria o capitão, acostumado à sobriedade e a parcimônia. Cobraria um ponto final nos exageros daquele espalhafatoso regresso. 

Era pedir demais. O convívio na grande cidade, acabaria por lapidar na índole daquele rapaz, o gosto pelas coisas prazerosas. Paixões desenfreadas. Apurada sensibilidade, gosto pela arte de bem viver. Dotes que já possuía desde antes, ainda que meio rude. Uma particularidade, os amigos observaram em Antonio, desde que chegara jamais fora visto em trajes corriqueiros. Ainda que tivesse na intimidade do lar, nas frívolas horas de matinê, ou mesmo nas idas ao campinho de futebol. Ainda mais estranheza causaria, vê-lo, a contemplar as convidativas águas do Ipanema, que tantas vezes mergulhara. Sem se animar a livrar-se das vestes de gala, e atirar-se ao rio, como se era de esperar. Trajado em impecável terno de linho, e sapatos Oxford. Detenha-mo-nos nesse ponto, os sapatos de Antonio. Esse acessório do vestuário, era o que mais chamava a atenção nele. Como se lhes imprimisse personalidade nova. Dotando-o de caráter, imputando-lhe certa notoriedade. Descrevamos pois, o ponto crucial, para o qual convergia todos os olhares, de quem fitava Antonio por inteiro: Os sapatos eram, envernizados e pintados em duas tonalidades. Preto na biqueira e calcanheira, e branco no peito do pé onde ficam as amarraduras. Talvez lhes dessem os sapatos, o ar e a graça de um gentleman americano, quiçá de um ator italiano, ou de um cantor de bolero, ou mesmo de um sapateador. Teria Antonio aprendido a sapatear? Para os colegas não passava de um almofadinha. 

Francisco gostava de dançar, promoveu uma festa por sua conta na chácara da família, o sarau culminaria com muita bebedeira e orgias madrugada a dentro. Severa reprimenda receberia do pai por isso. Mas o tempo senhor da razão lhes cobraria responsabilidade, e lhes viria na forma de um casamento. Tomou como esposa a senhorita Francisca Leopoldina de Alcântara e Silva. Filha de rico e influente comerciante de Santana. Dono de uma loja de tecidos, e de vasta extensão de terras e de cabeças de gado bovino, dentro da freguesia sob a égide de Senhora Santana. Empregava-se no comércio de tecidos, duas formosas senhoritas Adélia e Joana. Antonio acabaria seduzindo Adélia, mantendo com ela, um secreto relacionamento amoroso. 

Muitos anos se passariam. Antonio, contando com a idade de cinquenta anos, ficaria órfão. Primeiro a mãe, doente de catarata, cega e acometida de erisipela, veio a falecer. Um ano exato do luto materno, e findou também os dias do velho capitão. Coincidências à parte, teve a maldita febre-de-santo-antonio, catarata e glaucoma, ficando cego, nos últimos anos de vida. A moléstia cutânea causava, em pessoas branca, um escurecimento da pele, nas partes mais afetadas, no caso os membros inferiores. O litígio da herança, causaria certo desentendimentos entre Antonio e os irmãos, coube-lhe por direito, entre outros bens, a chácara da família. Mantivera o romance, já não mais secreto, com Dona Adélia que já lhes dera três filhos, daria guarida a concubina na chácara. Dona Francisca resignada vivia comodamente a função de matriz, esposa de papel passado. Dando a Antonio igual número de filhos que lhes dera a filial. Contando Antonio sessenta janeiros de existência, viu suas vistas darem sinal que os próximos janeiros viveria na escuridão. Antonio ficou cego. Nas tarde quentes de verão, ficava sentado numa preguiçosa na varanda da casa. E quando chegavam seus amigos pra visitá-lo, passava tardes muitos agradáveis, fumava cachimbo e conversando sobre tempos idos. Vaidoso que continuava sendo, mantinha os mesmos trajes dos tempos de moço, os olhos, agora sem vida, encobertos com óculos escuros. Terno, gravata e os Oxford nos pés. 

Antonio conversava com os amigos, muitas histórias contadas pelos pais e avós. E se algum deles, fazia referências aos sapatos, causa de admiração pelo fino trato, dispensado a eles. Contava que o seu avô vivera no tempo da abolição da escravatura. E que um dia lhe falara, sobre um negro. Naquela época escravo não podia usar sapatos! Eram proibidos por lei de usá-los! Somente se adquirissem carta de alforria. O fato antigo trazido ali, era motivo pra gargalhadas entre eles. Contaria que determinado escravo de seu avô, após comprar a própria liberdade, a primeira coisa que providenciou foi a compra de um par de sapatos. Só que incomodaram tanto, nos pés desacostumados com o artefato, que só restou ao pobre negro, possuí-los sem poder calçar. E os ostentava com muito orgulho pendurados ao ombro. Antonio continuaria, a despeito da idade e da cegueira, frequentando a chácara onde vivia Adélia. Tateando com a bengala saia de sua casa no largo do Monumento, e ia até as margens do Ipanema. Fazia a travessia de canoa, e de carro de boi chegava à chácara. Uma vez no alpendre da casa, deitava-se a uma rede. Pedia a Adélia que lhes servisse um café, e que lhes trouxesse brasas pro seu cachimbo. A mulher atendia aos pedidos do velho Antonio, muito embora sem o auxiliar na tarefa de acender-lhe o pitador de fumo. Tentando empreender tal tarefa sozinho, acabava sempre queimando os dedos. E Adélia, ainda que presenciasse a cena, mantinha-se calada, e ria em silêncio da desgraça do homem cego. 

Um dia repicaram tristemente o sino da matriz, anunciando a morte de Antonio. Foi providenciado o funeral. Seus filhos vieram pro seu sepultamento, mesmo os que se encontravam distante vieram. O padre Cirilo teria sido chamado na noite que aconteceu a travessia derradeira de Seu Antonio Francisco, para administrar a extrema unção no enfermo. Os últimos meses de vida, Antonio viveu em cima de uma cama, não queria mais ver amigos, isolou-se do mundo, apenas Adélia cuidava dele. Sua esposa, à muito, que tinha ido pra capital, morar com uma das filhas. E um pedido de Antonio foi atendido, queria ser sepultado trajado no seu impecável terno de linho e gravata e calçado nos seus sapatos Oxford, preto e branco. 

O cemitério Santa Sofia jamais teria visto tanta gente, a acompanhar um féretro de tão importante significado por estas plagas. O túmulo da família fora previamente preparado para receber o esquife. Todas as honras e pompas que o momento exigia, foram dedicados ao velho Antonio, presentes autoridades, que discursaram com eloquência e provocando comoção entre os presentes. Caiu a tarde prenunciando a noite, e todos retornariam pro seus lares. Deixando o campo santo praticamente deserto. Não fosse a presença do coveiro. O negro, Cícero de Jerusa. O afro-descendente ali sozinho, cumpria a tarefa de calafetar com argamassa o postigo que lacrava o túmulo. De repente, foi acometido de repentina lembrança, a curiosidade que todos tinha, pelo mistério do velho Antonio manter os pés, encoberto pelos sapatos por tantos anos. 

Não pensou duas vezes, iniciou-se na tarefa de desmanchar o que já havia feito. Abriu o caixão, e ávido, pôs-se a tirar os sapatos do defunto. Boquiaberto, contemplou um par de pés totalmente pretos, desnudos, os mais pretos que um dia já vira num homem branco. Mais do que os ele próprio possuía. A vergonha da doença fizera com que Antonio escondesse a erisipela dentro do par de Oxford, por toda sua existência. E meses depois, na mais festiva noite, a de São João, no povoado Jorge, um negro desfilava feliz da vida, por entre fogueiras e estouro de rojões, era Cícero de Jerusa. Atraindo a atenção da negrada pro seus pés, calçados num reluzente par de sapatos Oxford preto e branco.

Fabio Campos             


A Maldição

A Maldição É dessas histórias, que não se costuma contar a qualquer um, a qualquer hora, impunemente. Sem correr o risco de ser tachado de mentiroso. Preciso pois, que preparemos o espírito pra contá-la. Bem como, preparado esteja o coração de quem vai escutar. Na verdade a história, de uma garota comum. Eudócia é o nome dessa menina. 

Eudócia  Nasceu no meio de uma família pobre, como é a maioria das famílias, dos roceiros de nosso sertão. Uma menina, como qualquer jovem de hoje em dia. Ajudava nos afazeres domésticos, estudava e sonhava. Nos seus sonhos, um príncipe encantado lhes aparecia, montado em seu cavalo, e a resgatava, levando-a embora daquela vida. Numa geração de treze, era a oitava. Apenas ela, do sexo feminino. Uma ruiva flor de açucena, nascida entre abrolhos e facheiros. 

A Casa de Eudócia  Ficava no sítio Mulungu, à margem da estrada que leva à Camoxinga dos Teodósio. Na altura da localidade chamada Baixio, zona rural de Santana do Ipanema. Um casebre de taipa. Ampliada tempos depois com alvenaria, ficaria ainda mais tosca. Duas caídas dágua, uma terminava em alpendre na frente. A parte detrás, mais antiga, de chão batido, se transformaria na cozinha. Ali, o massapé segurava uma coberta de palhas de coqueiro secas. Ao lado, uma frondosa craibeira. Não sei se fruto da imaginação, mas na hora do por do sol, olhar aquela rude edificação contra o crepúsculo, tinha-se a impressão que uma figura fantasmagórica pairava por sobre aquele sítio. No passado fora a morada dos avós maternos de Eudócia. Num dia muito sombrio, o velho Tomaz cedo acordou, deu de cabo dum machado. E a machadadas mataria Agripina, a esposa que ainda dormia. Em seguida enforcou-se na velha craibeira. Dona Idalina, a mãe de Eudócia, era só uma criança nesse tempo, quando se acordou, encontrou o que já havia se consumado. 

Os Pais de Eudócia  A mãe era uma mulher branca, muito gorda. Foi criada por uma tia solteirona, que fazia quitutes por encomenda. De tanto experimentar e sovar massas, Dona Idalina ganhou braços gordos, seios e ventre volumosos. Cariolano, seu marido, era primo legítimo. Casou por interesse, achando que a prima, herdaria os bens da tia. Quebrou a cara, ela nada herdou. A mãe de Eudócia ficava sôfrega, vermelha e suarenta quando tinha que realizar tarefas que exigia esforço físico, mais do que suportava. Mal dizia, a céus e terra, e a vida que levava. Se lavasse roupas, se acendesse o fogo, se alimentasse as galinhas, mordia a língua e xingava. Como xingava! Se tivesse que tirar água da cisterna, puxada à balde, blasfemava contra o céu. Todo ser a sua volta, vivo ou inanimado, era réu de culpa. Simplesmente por existir e se fazer presente em sua vida. O pai, figura deplorável, trajava camiseta de meia com mangas compridas, encardida, colada aos músculos flácidos, Uma ou duas vezes por ano, talvez mudasse as vestes que mais lhes parecia uma segunda pele. Cariolano, usava um fino bigode, tinha sobrancelhas exageradamente grossas que terminavam unidas. Quando tirava o amarrotado chapéu da cabeça, exibia um cabelo ralo e ensebado. Numa imensa testa, mais alva que o resto do rosto, curtido pelo sol. No canto da boca, de lábios fissurado, inseparável cigarro de fumo, apagado, gosmento. Uma vez, Eudócia ainda menina, ao voltar do riacho, percebeu movimento estranho no aceiro da roça. Por entre arbustos, em surdina foi averiguar e viu, o pai fazendo sexo com a jumenta pretinha, a montaria da família. Nunca contaria isso a ninguém. 

Os Irmãos de Eudócia  Tinham os nomes dos doze apóstolos. Sugestão de compadre Hercílio, o farmacêutico. Todos possuiam, algum tipo de mazela física: Estrábicos, surdos-mudos, lábios leporino, gagos, síndrome de Down. O primogênito ainda engatinhava, e já padecia de poliomielite. Só Eudócia não apresentava defeito visível. Dentre sua irmandade, tinha Felipe. Sempre pensativo, parecia preocupado com alguma coisa. Como se algo grave estivesse na iminência de acontecer. Algo que nem ele mesmo sabia o que era. Fitava os dedos das mãos como se contasse. O semblante serrado, testa franzida. Angustiado. Sempre na iminência de choro. Choro que não saía. A junta médica da previdência social julgou-o mentalmente incapaz. Era aposentado por invalidez. Olhando apenas, ninguém dizia que era. Não fosse aquele ar melancólico. Como se aguardasse a vinda do anjo que iria anunciar o fim do mundo. Gostava muito de lê. E lia a bíblia, o único livro de que dispunha em casa. Felipe, o outro, perguntou a Jesus: 

-Mestre! Quando acontecerá a consumação dos tempos? 

Todos sabem o que lhe respondeu Jesus, “nem aquele, sentado à direita do pai, na Corte Celeste, lhes é dado a conhecer.” E agora, este Felipe, irmão de Eudócia. Estava ali, a refletir a resposta que Jesus lhes havia dado, naquele dia, lá no mar da Galiléia. Não se conformava com tal resposta. Por isso o ar preocupado. Teria que ir ele mesmo, perguntar diretamente a Deus. Sabia, tinha certeza que a ele, o Pai contaria. Na certa não contara ao filho porque, era mestre. Professor costuma falar muito. Ia acabar contando sem querer, a um dos doze. Ele prometeria não contaria pra nenhum de seus doze irmãos. Não era de falar muito, ficaria fácil guardar consigo. Só assim acabava com aquela angústia. 

O Dia da Maldição  Aquele dia fora especialmente preparado para o que ia acontecer. Desde a manhã que chovia, e era chuva arredia. O vento soprava, trovões e relâmpagos riscavam num céu feio, ameaçador. Dona Idalina cedo iniciara seu rosário de lamúrias e imprecações contra os acontecimentos pluviais. São Pedro, de sua boca recebeu condenação. Eudócia não se animou a sair da cama, pra nada. Era uma sexta-feira treze, do mês de agosto. Não foi a escola. Estaria realmente na cama? Dona Idalina, ainda mais furiosa por isso, mal disse por ter tido uma filha mulher. O dia continuava seguindo seu percurso. Concluindo a primeira metade, sem que houvesse trégua do dilúvio. Serviu-se o almoço e Eudócia nada de sair da cama. Estaria morta? Veio a hora do Ângelus, e ao invés de rezar uma Ave-Maria, Dona Idalina pronunciou mais uma, desta feita, a mais horrenda das imprecações, contra a própria filha, exclamou alto: 

-Levanta-te dessa cama satanás! Antes, tivesse eu parido uma porca! 

A chama do candeeiro projetava no teto sombras dantescas. Felipe que se mantivera calado até então. Como se tivesse encarnado o profeta das margens do Jordão, a voz como de trovão, irrompeu dirigindo-se a mãe: 
- Malditos! Hipócritas! Lobos em pele de cordeiro! Vós, vos assemelhais, as raposas do deserto que saem dos seus covis, em busca de suas vítimas e as devoram, feitos loucos, as devorais com a ganância e a baba do demônio. Blasfemas pelo Demo que vos possui, e te faz agir com bestialidade! 

Dito isso, um trovão mais forte estrondou forte. E um raio rasgou o céu enchendo de clarão as trevas. O raio caiu em cheio sobre a craibeira, que prateou-se de faíscas de fogo. A um galho refletido de luz, viu-se surgido o velho Tomaz, pendurado pela corda. E todos na casa ouviram nitidamente ele clamar com voz lúgubre, vinda das profundezas da terra: 

-Vem Eudócia! Tua mãe quer que nos acompanhe! 

Nesse instante, Eudócia que permanecia inerte, sobre os lençóis, sumiu por entre as cobertas. E um vulto escuro na penumbra do quarto, saltou pela janela. Outros raios se sucederam, e alumiaram uma imensa e negra porca, molhada pela chuva, no meio do terreiro. Os grunhidos, característicos do paquiderme passou-se a ouvir. Cada vez com menos intensidade, porque ia se afastando. até desaparecer na escuridão da noite.


Fabio Campos