A SIRIGAITA

Essa é história de pessoas pacatas. De gente ordeira e simples. Dum lugar tão conhecido da gente que achamos até, que é aquele em que um dia vivemos. Aquele singelo lugar que nos viu criança. Mas o mundo deu muita volta. E nas voltas que o mundo deu, muita coisa aconteceu. Coisas que jamais se imaginaria que pudesse acontecer. E quando vem de quem menos esperamos? Pra esse tipo de coisa, Seu Doroteu que não era homem de muita conversa, tinha sempre uma frase pai d’égua: “É assim mesmo. De onde menos se espera é que sai.”

Ô bicho danado mode gostar de magoar coração é o rádio. Lá de dentro dele vinha à voz mansa de Nestor e Nestorzinho, cantando a mais nova moda sertaneja.

“O joão-de-barro
pra ser feliz como eu
Certo dia resolveu
Arranjar uma companheira
No vai e vem com o barro da biquinha
Ele fez uma casinha
Lá no galho da paineira”

Melhor mesmo é começar do começo. Se é que se possa chamar de começo, uma tarde de janeiro daqueles bem antigos, que as pessoas vestiam roupas feitas de siroco, organdi e cambraia. E o mundo, e tudo o que os homens já haviam inventado, apesar da cara um tanto ingênua, já andava até bem taludinho pra andar fazendo besteira. O lugar a que nos referimos, ficava bem na garganta semiárida do sertão. Donde soavam trovões cujos estrondos acabavam produzindo um zumbido, quem sabe um sinal de comunicação, que os ouvidos humanos, e as mentes talvez ainda não conseguissem decifrar nem entender o significado. Por puro instinto de sobrevivência os saguis buscariam os ocos dos paus. Os peixes Cará ressuscitavam do lombo dos açudes vindo nervosos futucar as costelas das enchentes. Ameaçavam sair d’água tanta era a tormenta. As tartarugas às profundezas das mornas águas do oceano se sentiam protegidas, nada ouviam. Um polvo gigante emergia toda noite de lua cheia. Sendo que em dias como aquele, jamais apareceria. Diferente dos crustáceos que de tão excitados se vomitavam dos seus refúgios, nos invólucros samurais dando início a um ritual dantesco de acasalamento. Tão distante daquela outra realidade. Tudo isso era tão somente pra dizer que os tempos de trovoadas no sertão e no beiço da praia eram bem distintos.

“Toda manhã o pedreiro da floresta
Cantava fazendo festa
Pra’quela que tanto amava
Mas quando ele ia buscar o raminho
Para construir seu ninho
O seu amor lhe enganava”

Dona Maria e Seu João moravam no cimo da Serra do Gavião. A ave tão presente ali emprestara seu nome àquela elevação rochosa. Toda segunda-feira era dia de ir pra feira livre na grande vila. De manhã bem cedinho, nem tinha ainda clareado nem esquentado o sol. E botava o pé na estrada. Levavam farinha de massa puba e beiju pra vender. Num fogareiro rude feito de barro, num pedaço de zinco polido faziam tapiocas. Quentinha na hora, bem ao agrado da freguesia. A barraca coberta com empanada de saco de açúcar limpinho de fazer gosto, tudo branquinho e cheiroso. Ficava bem próximo a igreja matriz de Santo Antônio. As mulas ficavam amarradas em terreno baldio próximo a barbearia de Seu Doroteu. Na casa de dona Amália iam pra tomar um café de caco, adoçado com tacos de rapadura. Teve um dia que dona Maria acabou perdendo uma colar de ouro. Foi assim, ela deixava seu João vendendo tapioca na barraca e ia procurar um sapateiro por nome Jaime, os dois se encontravam, pra manterem um caso amoroso. Acoitado por Zefinha que pegava os meninos pequenos nos braços e saía de casa, se danava pra feira. Ganhava um tostão pra iscruvitiar e deixar a casa livre pros amantes. Ficava um tempão na cozinha de dona Amália, baforando num cachimbo, que era pra dar tempo do casal de adúlteros se entregarem ao sexo pecaminoso. Acontecesse que quando dona Maria da Tapioca foi passar debaixo do arame o colar, um cordão de ouro que ela trazia pendurado no pescoço enganchou no arame, se partiu e caiu ali mesmo. Sem que ela percebesse, pois se entreteu se benzendo, botando cuidado pra que ninguém testemunhasse seu ato. Uma menina por nome Dália, todos os dias passava aquele arame bem naquele mesmo lugar. Depois de buscar o leite tirado da vaquinha Mimosa, foi quem acabou achando a joia. Com a pindureza no pescoço chegou em casa, dona Amália deu logo fé e quis saber donde procedia o tal objeto. Prontamente a menina disse direitinho, onde e como havia achado. Zefinha fez de conta que nem ouviu. Como diria Seu Doroteu: “Fez boca de siri. Bico calado, boca piu!” Somente quando chegou em casa dona Maria deu por falta do colar. 

"Mas nesse mundo o mal feito é descoberto
João-de-barro viu de perto
Sua esperança perdida
Cego de dor trancou a porta da morada
Deixando lá sua amada
Presa pro resto da vida”

O farmacêutico Moreninho estava sentado na calçada da delegacia conversando com Seu Pita, Jerson, Batista e o delegado Matias. Nisso ia passando um menino com um alçapão cheio de passarinho, pra vender na feira. Seu Pita quis saber que espécies havia na ínfima gaiola. “-Dois Papa-Capim, três galo de campina, um joão-de-barro. O boticário cheio de dó das aves disse que pagava um tostão pro menino soltar tudinho ali mesmo. Não conseguiu obter êxito nesse comércio. Foi-se o menino. Enquanto o charlatão ponderou: “-João-de-barro é passarinho sabido. Faz sua morada mas não trabalha dia de domingo e dia santo. As penas vermelhas na cauda é porque pousou na cruz de Jesus Cristo. Passarinho construtor de fornos é isso o que significa seu nome. Ave trabalhadora e inteligente. Seu canto se assemelha uma leve e espontânea gargalhada. Lá no sul seu canto é tido como sinal de bom tempo que se aproxima Dependendo da região é conhecido também como barreiro, joão-barreiro, maria-barreira, amassa-barro, joaninha-de-barro, sabiazinho, forneiro, pedreiro, oleiro, na Argentina “horneiro”. Mas sua maior marca mesmo e fazer seu ninho com a entrada contrária à vinda da chuva. Se ameaçado por uma cobra lutará para salvar seu ninho.”

“Que semelhança marcando meu calendário
Só que eu fiz o contrário
Do que o joão-de-barro fez
Nosso Senhor me deu calma nessa hora
A ingrata eu pus pra fora
Onde anda eu não sei”

Segunda-feira de manhã, os mascates se organizavam ainda, ocupando aos poucos os espaços das vias públicas pra iniciar a feira, após a missa, antes da benção final, o padre Bulhões avisou da perda do cordão de ouro de dona Maria. E quem encontrasse e devolvesse seria bem gratificado. O colar devia ser levado até a pensão de Seu Pizeca que daria a gratificação de um conto de réis. A peça de estimação era ouro dezoito quilates. Dália estava na igreja com sua mãe e saiu dali direitinho pra pensão de Seu Pizeca. “Coisa ruim nunca vem solteira, vem sempre acompanhada.” Assim disse Seu Doroteu quando soube que o filho de dona Maria Tapioqueira levou uma queda dum cavalo e quebrou uma perna, por um bom tempo ia andar de muletas. E não fazia um mês que Seu João tinha sido roubado numa pareia de boi de arado. Houve quem dissesse que eles tinham mesmo era mau-olhando, olho gordo. Era muita inveja que o povo botava em quem prosperava a olhos vistos. Seu Doroteu era um homem temente a Deus, devoto de padre Ciço do Juazeiro, só se confessava com frei Damião. Um filho pequeno, ou neto deitado no chão, proibia severamente que alguém passasse por cima, pois considerava xingamento. Armar guarda-chuva dentro de casa, nem pensar atrasava o crescimento das crianças. Calçado emborcado? Era escarnecimento pros pais. Xingar o redemoinho era pedir castigo pra lavoura. E dizia “Cumpade mais cumade vira fogo corredor!” “Enquanto o bem retarda, o mal chega a galope!” De Seu Doroteu era também esse predito: “Tudo de ruim que está pra acontecer já está escrito. No livro do cão escrito.” Nas profundas dos infernos. É lá que as coisas ruins são planejadas, na assembleia dos demônios. O tinhoso tinha mesmo, só o trabalho de encontrar, as mãos certas, pra cumprir o que precisava ser feito.

“Samba crioula que vem da Bahia
Pega a criança e joga na Bacia
A bacia é de ouro ariada com Sabão"

Dália com as outras meninas brincava. Dona Maria sempre que a via, lhe sorria, lhe acenava e lhe agradava com doces. Seu Moreninho continuava: “O João-de Barro é uma ave graciosa. Mede entre 18 e 20 centímetros de comprimento. Não passando de 49 gramas de peso. Trás o dorso marrom avermelhado. Sobre os olhos se desenha uma suave sobrancelha, formada por penas mas claras, em leve contraste com o restante da plumagem da cabeça. As penas das asas são anegradas, ainda mais destacada durante o voo. O ventre de coloração clara, sendo o papo e o pescoço branco. A cauda destaca-se pela tonalidade avermelhada ventral e dorsalmente. Não gosta de se afastar muito do local onde mora. Ave dócil se deixando ser observada e mesmo a aproximação de uma pessoa que pode chegar a poucos metros de distância sem que o joão-de-barro voe. Quando não está empoleirada próximo a sua casa, é comum vê-la descer ao solo. Ali passa boa parte de seu tempo caminhando, alternando pequenas corridas com passadas mais devagar.”

“E depois de ariada vai lavar o seu Roupão
Seu roupão é de seda sedinha de Filó
Cada um pegue seu par e vá dar a benção a sua vó
A Benção Vovó! A Benção vovó!”

Jaime e Maria Tapioqueira já a algum tempo, passaram a se encontrar no próprio leito conjugal da amante. A casa de Zefinha tornara-se imprópria para os encontros amorosos. Na croa da serra do Gavião livre dos olhares maldosos se amavam. Pra chegar até lá tinha que se vencer uma subida íngreme. Enfrentar uma mata de caatinga densa e sombria. Uma vez dentro da mata o tempo fechava, parecia sempre que ia chover. Mesmo que lá no aceiro o sol alumiasse o mundo todo com sua potente claridão. No oco da mata era quase breu. De fazer medo aquele silêncio de assovios inquisidores, e olhos selvagens nunca acusadores, mas que só quem via é que sentia. 

Um dia de segunda-feira Seu João se ajeitou pra descer pra rua, ajeitou as mulas com farinha pra vir pra feira. Dona Maria ainda estava no quarto se arrumando. Ele saiu e trancou a porta de chave. Ficou um tempão sentado do lado de fora. dona Maria começou a chamar a abrir a porta pra que pudessem ir. E ele lá calado, não batia nem as pestanas. A serra já estava impaciente com a aquela mulher implorando pro homem abrir a porta. E nada. A mata, somente a mata escutava seus pedidos, sua súplica. E caiu a noite. Duma fogueira que havia acendido Seu João tirou um tição. Com a força que somente o ódio pode dar atirou sobre o telhado do casebre. A medida que se afastava mais longe os gritos iam ficando. Cada vez mais longe. Até cessarem, debaixo das cinzas, dos escombros, e do orvalho da madrugada, na serra do gavião.


Fabio Campos 29 de julho de 2015

LÁPIS LAZULI (Ao Meu Amigo Paulo Ney Onde Estiver)



Três meninas se haviam na janela e olhavam. Uma ruiva, uma loira, outra morena. Da janela do alpendre da casa olhavam. Levasse em consideração que era uma tarde nublada de um mês de julho, novo em folha. Talvez houvesse um quê de melancolia naquelas tardes. Triste, tão triste tarde de julho. Assim mesmo era. E quão era bom que fosse assim. Belo olhar das três meninas. Mas o que tinha aqueles olhos pra olhar? Uma serra enfumaçada, gigantemente muito próxima, uma roça verde de bonecas de espigas milharada. Uma estrada de terra, um cercado onde bois pastavam. E se se enfadasse de somente isso ter pra ver, bastaria estender os olhos pro outro lado, e teriam as casas do vilarejo. 


Cheio de preguiça lá estava o vilarejo. Pra quem não tivesse com que gastar o olhar. Muito pouco de interessante tinha pra se ver. Abandonada de si mesma. Amparados pelo frio vespertino alguns poucos se aventuravam ser o que sempre foram simples aldeões em suas lidas. Atores de si mesmo. Encostada no poste da esquina uma bicicleta, aguardava o dono tomar uma cachaça no quiosque. Sentado a um tamborete, entre tragos e cusparadas, um negro macerava duas frases: uma que falava de tempo e de homens. E outra que terminava com a palavra Deus. Na velha parede um cartaz desbotado anunciava, a mais de quarenta anos anunciava, grandioso espetáculo circense: “ O Magnífico Búfalo Bill, O maior toureiro do século! Não Perca! Nesta noite!...” (o que restava do cartaz rasgado). Um cachorro de rua seguia um menino na calçada, só pra se lembrar que um dia tivera dono. Pardais nas suas lidas de irem e virem gastavam a paciência do tempo, sem nunca envelhecerem, nem morrerem. Uma picape vermelha surgiu na estrada. Conduzida por um homem de chapéu de caubói. Angariou para si três pares de olhos femininos. Olhos claros, olhos azuis, olhos castanhos. A caminhonete rubra acabou tirando a paz da tarde entediada. Adiante, a sombra dos coqueiros, ao lado da casa parou. Saltando da boleia o vaqueiro se encostou no guarda-lama dianteiro. O maço de cigarros saltou do bolso do casaco pra mão, tirou um e acendeu. Com avidez se fez fumante, encontrou prazer para ato quase ignóbil. 


As ninfas chamavam-se Francisca, Lúcia e Jacinta abandonando seu casulo voaram ao encontro do zangão, ali aportado. Paulo perguntaria por Flavio o pai das moças. Tinha ido pra festa de Santana. Não teve como não voltar lembranças de antigamente.  Do tempo que seus pais a ele e a seu irmão levados a reboque pras novenas de Senhora Santana. Noites de dúbio sentimento. Agonia pela missa longa obrigado a assistir e o divertimento de ficar horas andando ao redor da praça da matriz. Ver coisas que somente a rua podia proporcionar. De gente em tamanha quantidade nunca vista. Uma enchente, tempestade de gente. Tanto movimento capaz de deixar qualquer um tonto, sem sequer tomar uma única dose de cana. Muitas músicas em tão alta frequência que chegava a provocar zumbidos nos ouvidos. A boca dormente, os dentes doíam ao tomar água de tanta bala de anilina e hortelã. Luzes muitas luzes, gambiarras em torno da praça, na torre da igreja. Os olhos eram pura vermelhidão, a noite em claro era muita coisa pra quem tinha costume de dormir cedo. Gastar os tostões, mas voltar feliz com os bolsos cheios de bugigangas. O cheiro forte dos famosos frasquinhos de perfume em tubinhos de remédio, uma vez colocado na roupa jamais se dissiparia, pudesse lavar como fosse. Os corrupios animados por um trio de tocadores de pífanos. Foguetes soltados na beira do rio, a todo instante pipocando no pretume do céu, em louvor da excelsa padroeira Senhora Sant’Ana. 


As meninas pisavam descalça a terra fria intumescendo os lindos pezinhos. Paulo de sapatos do tipo mocassim achou aquilo extravagante. Conversando alegremente se dirigiram até o alpendre. Sobre o telhado cadeiras, uma mesa, uma rede do cariri, e um velho sofá estofado tão deslocado coitado. Dera liberdade a Bob o cachorro da família, acabou expulso de casa impregnado do fedor de rabujo do cão. Dona Prazeres trouxe alvas xícaras, uma garrafa de café e sequilhos de manteiga, uma garrafa de vinho do Porto e queijo branco. Os assuntos versaram sobre a festa de Santana, o inverno, o frio, sempre comparando os de hoje em dia com o de anos anteriores. Paulo foi até o carro e voltou trazendo uma caixote cheio de enormes laranjas mexerica. Sendo a casca tão vermelha que mais pareciam outra fruta. Apanhou também sua pasta de desenho. Sobre a mesa papel almaço abrindo seu estojo de lápis pôs-se a pintar uma natureza morta composta de laranjas, garrafa de vinho e queijo.   
   

A igreja cheia. Não cabendo mais de tanta gente, o povo se acotovelava no lado de fora, nos batentes, nas calçadas, na escadaria. Padre Tiago, tão jovem abraçara o sacerdócio! Um menino ainda! Entregar a vida a servir a Jesus Cristo. Num tempo de tanta modernidade. Nada fácil renunciar as seduções do mundo. Coisas que só a fé explica. Veio de outra paróquia convidado a presidir a segunda noite do novenário de Sant’Ana daquele ano.  “-Ir ver missa do lado de fora da igreja? Jamais!” Assim dizia Dona Prazerinha. “-Missa é pra gente assistir olhando pro padre lá no altar. Ficar lá trás, do lado de fora, olhando pras costas ou pra bunda do povo, vou não! Prefiro escutar pelo rádio.” As meninas acompanhavam Paulo que continuava desenhando, e opinava: “-De fato dona Prazeres, missa é pra se participar, e não assistir.” Enquanto o padre na sua homilia pregava: “-Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo Jesus. Alguém aqui já saiu de casa pra igreja. E ao chegar aqui se ajoelhou, e bem dentro do seu coração fez o seguinte pedido: -Jesus! Dá-me o céu! Eu quero agora mesmo ir pro céu! Não meu irmão, nem eu. Por que será que pedimos tantas outras coisas a Deus? E não pedimos o principal que é a salvação. Garanto! Qualquer um de nós por mais rico que se torne jamais será feliz por completo. Ninguém será feliz buscando realizações pessoais, sempre estará faltando alguma coisa. O homem nasce com um vazio no seu coração. Vazio este que só será preenchido com o espírito de Deus. Entre nós seres humanos somente uma nasceu livre do peso do pecado: Maria a santíssima virgem. Quando recebeu a missão deu o seu sim e foi cheia de graça! Maria ungida do Espírito Santo.  E desde então junto com outros santos desfrutam da glória dos céus  Ninguém alcançará salvação do jeito que nós a buscamos. Pedindo a Deus que resolva nossos problemas, nossas dificuldades diárias. Pedimos e clamamos por justiça. E nos angustiamos porque Deus demora a nos atender. Meu irmão, minha irmã: dê graças a Deus porque Ele demora a atender! Por que se Deus vier com sua justiça, não poderá ser parcial, atender interesses de uns e deixar o outro sem nada. Para que Deus pratique sua justiça naturalmente alguém têm, teve ou terá alguma queixa de você, de mim, do outro, e de mais outro adiante. E aí como ficamos? Todos condenados? Precisamos exercitar em nós os frutos do espírito Santo: paciência, persistência e longanimidade. Sendo paciente indubitavelmente seremos persistentes, mas a longanimidade dentre os três, é o maior dom. Em grego longânime, significa “coração grande”. Tenhamos irmãos o coração grande para amar o próximo. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”


Depois da missa, no rádio iniciou um programa de música popular. Efusivo o locutor anunciou a primeira canção “João e Maria” que dizia assim: “Agora eu era o herói/ E o meu cavalo só falava inglês/ A noiva do caubói/ Era você além das outras três/ Eu enfrentava os batalhões/ Os alemães e seus canhões/ Guardava o meu bodoque/ Ensaiava um rock/ Para as matinês/ Agora eu era o rei/ Era o bedel e era também juiz/ E pela minha lei/ A gente era o brigado a ser feliz/ E você era a princesa que eu fiz coroar/ E era tão linda de se admirar/ Que andava nua pelo meu país/ Não não fuja não/ Finja que agora eu era o seu brinquedo/ O seu bicho preferido/ Vem me dê a mão/ A gente agora já não tinha medo/ No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido/ Agora era fatal/ Que o faz-de-conta terminasse assim/ Pra lá desse quintal/ Era uma noite que não tem mais fim/ Pois você sumiu no mundo sem me avisar/ E agora eu era um louco a perguntar/ O que é que a vida vai fazer de mim?”


Lúcia achou engraçada, Francisca disse que não entendera, e Jacinta nada disse continuava fascinada com o desenho que Paulo rabiscava já os arremates. A música segundo o artista plástico era uma declaração de amor a atriz Marieta Severo, esposa do compositor da canção Chico Buarque de Holanda. Muitos viram na letra uma crítica ao sistema de governo da ditadura militar. O presidente Emílio Médici perseguiu o artista. Não só ele como outros cantores que de maneira sutil criticavam o governo em suas composições. Em nome da perpetuação no poder, o regime ditatorial militar desnecessariamente perseguia toda classe artística, a todos considerando subversivos. Talvez vivessem ainda reflexos da semana de Arte Moderna de 1922. Em que escritores, pintores, compositores, atores, atrizes, vedetes do rádio e da televisão se reuniram em São Paulo para através das artes, escrita, declamada, pintada, interpretada revolucionar o modo de pensar da sociedade vigente. O Brasil depois daqueles dias jamais seria o mesmo. 


Fabio Campos 20 de Julho de 2015.

THOMAS E A TEORIA SOBRE O 6º FIM DO MUNDO





“E a todo animal da terra, e a toda ave dos céus, e a todo réptil da terra, em que há alma vivente, e toda erva verde será para mantimento; e assim foi. E viu Deus que tudo quanto tinha feito era muito bom. Livro de Gênesis 1,30” 


Essa é a história do começo e do fim do mundo, segundo algumas pessoas. Seu Enéas, dona Terezinha, e Thomas. Thomas nem naquele tempo existia, mas entra na história assim  mesmo, porque criou uma versão inédita pro fim do mundo. Vamos nos reportar a um tempo em que não existia avião supersônico, a bomba atômica estava surgindo ainda e os matutos chamavam de bomba tônica. As roupas ainda eram de puro algodão, feitas em casa numa máquina de costura. O poliéster, e o nylon não existiam ainda. Naquela época façanhas difícil de acreditar como a ida do homem a lua, acabava virando chacota, nas pontas de rua. O povo dizia: “O homem na lua? Só no dia que a galinha criar dente, o boi voar, ou no dia de São Nunca de meio dia pra tarde.” Vamos por parte. Galinha criar dente, vagas informações tínhamos sobre tal evento. Quanto a um boi voar, o Conde Maurício de Nassau conseguiu. Lembro como hoje, quando lá na sala de aula do velho educandário Ginásio Sant’ana o ilustríssimo professor de história geral e do Brasil professor Conrado, nos contou.   


“Em 1630, ocorreu a segunda expedição militar holandesa ao Brasil. O conde Maurício de Nassau veio da Holanda administrar as terras conquistadas, e estabelecer uma colônia holandesa no Brasil, com sede na cidade de Olinda em Pernambuco. Dentre as grandes obras desenvolvidas pelo Conde de Nassau, destacaram-se a construção de duas pontes sobre o rio Capibaribe. A primeira unia o Recife à cidade Maurícia, na altura da atual ponte Maurício de Nassau, e uma outra que tinha sua cabeceira leste na Casa da Boa Vista e se estendia até o continente, ambas obedecendo a projeto encaminhado ao Conselho dos XIX, em 31 de março de 1641. Por dificuldades na execução dos trabalhos no trecho mais profundo do rio, no início do ano seguinte, as obras estiveram suspensas. Tal fato veio provocar censura escrita do Conselho dos XIX que, em carta datada de Amsterdã, em 24 de outubro de 1643, indaga em tom irônico: "Como não recebemos há muito tempo notícia da ponte faz-nos isto pensar que a mesma nunca será terminada". Tal provocação mexeu com os brios do Conde de Nassau que resolveu tomar para si a tarefa de conclusão dos trabalhos. Utilizando-se para isso de seus próprios recursos. O Conde de Nassau, por sua vez, quando da inauguração da ponte do Recife, resolveu fazer uma brincadeira com os moradores que, graças ao registro do frei Manuel Calado, testemunha ocular, entrou na memória coletiva do nosso povo. A fim de obter um maior número de pessoas pagando pedágio na ponte, no dia da sua inauguração, João Maurício anunciou que um boi manso, pertencente Melchior Álvares, iria voar.

No primeiro dia que o povo haveria de passar sobre a grande ponte para o Recife. Ordenou o Príncipe uma festa, e convidou aos do supremo Conselho a comer. E mandou esfolar um boi inteiro, e encher as entranhas de erva seca, e o pôs encoberto no alto de uma galeria que tinha edificada no seu jardim; e logo pediu a Melchior Álvares emprestado um boi muito manso, que tinha, e o fez subir ao alto da galeria, e depois de por o boi a vista da grande quantidade de gente que ali se ajuntou. Em surdina mandou metê-lo dentro dum aposento, ao tempo em que dali tiraram o outro boi que era só couro, cheio de palha e o fizeram vir voando por umas cordas, um engenho, muito bem arquitetado para ser visto pela gente rude que ficou admirada. E tanta gente passou de uma para outra parte, que naquela tarde a ponte em pedágio rendeu ao conde mil e oitocentos florins."


O menino Thomas andou vasculhando as coisas do avô. E acabou encontrando uns manuscritos bem antigos. Parte estava escrito a pena nanquim, sendo outra parte escrita a grafite. Eram folhas amareladas, tão velhas que com o simples toque dos seus dedos quase se desmanchavam. Os escritos falavam de duas versões para o futuro do mundo. Thomas leu-as com bastante calma e atenção. Dali formularia seu próprio conceito sobre o começo e o fim do mundo. A primeira versão dizia o seguinte: 


“Hoje são 08 de agosto de 2075. Não digo isso de mim mesmo, é que uma folhinha do calendário trazida pelo vento veio grudar-se na perna da minha calça. Já não lembro quantos dias fazem que não me alimento. Estou procurando algum resto de material orgânico no lixo para comer. Preciso colocar algo no estômago para ser digerido. Sei que não é fácil encontrar. Ninguém mais joga resto de comida fora. Faz muitos anos que alimento virou coisa tão preciosa, comparável com os mais raros metais como diamantes e ouro. Nessa metrópole em que vivemos o que se acumula pelas ruas são entulhos, ferro retorcido, construções desmoronadas. Depois da terceira grande catástrofe, que os homens chamaram de terceira grande guerra, tudo é só destruição. Ainda a pouco passei por um cadáver de um homem que estava sendo devorado por cães. Não demoraria e logo apareceriam outros predadores, abutres, ratos e mesmo os humanos canibais que aqueles que se drogam e vivem no interior das galerias nos subsolos. É comum encontrar nos becos imundos, corpos em estado de decomposição, de pessoas que morreram de fome. O ar é pesado, o mundo é uma fedentina só. A carne podre e a enxofre fede o mundo. De vez em quando ouvem-se explosões vindo de boeiras, por conta do metano acumulado nas galerias do metrô, com o calor, qualquer atrito que gere faísca e uma explosão é causada. Com a chegada da noite aumenta o perigo. Como não mais existe energia elétrica alguns seres das trevas saem para caçar. Seres que desenvolveram aptidões para sobreviver e  passaram a enxergar no escuro, e matam outros humanos para comer. Já está escurecendo vou pro meu abrigo. Com um toco de lápis grafite num pedaço de papel de uma folha pautada de caderno escrevo isto, objetos que a muito não existe, relíquias do tempo de meus avós. Pra não esquecer que ainda sei ler e escrever escrevo. Esse pedaço de papel vou pregar num poste, sei no entanto que será levado pelo vento. Não sei se alguém algum dia alguém encontrará e lerá, quem sabe guardará. Não vou assinar meu nome simplesmente porque sequer me lembro como me chamo.”


A outra versão; “Hoje são 08 de agosto de 2075. Da janela do meu apartamento contemplo o mundo. A metrópole vive coberta por uma grande redoma de vidro. O ar que respiramos é filtrado, É preciso que passe por um processo de purificação muito caro. Cada cidadão tem que pagar pelo ar que respira, é considerado consumo. O que consome vem numa taxa única, não adianta reclamar. O céu hoje amanheceu ainda mais congestionado de aeronaves, Isso ocorre em dia de feira livre ou dia de show de uma banda famosa. Tanto tempo faz que a população não anda mais por debaixo da terra nos antigos metrôs. Agora o meio de transporte mais utilizado são as espaçonaves, cada cidadão tem a sua, para se deslocar até o trabalho. As roupas são coladas no corpo, feitas de uma fibra sintética auto limpantes inclusive mantém temperatura ideal, longe os germes e as impurezas do ar. A minha secretária eletrônica está me avisando que o meu almoço está pronto. Em cima da mesa três cápsulas que contém todos os nutrientes de que necessito para manter-me saudável.  As crianças estão nas escolas virtuais, nem precisam sair de casa, e estão estudando. Deitados em suas macas recebem as instruções de que necessitam. Os empregos são oferecidos as pessoas de acordo com suas aptidões mapeadas nos seus DNAs. Agora mesmo estou saindo de férias irei para Marte para uma turnê ver os ‘Colossais das Galáxias” que é a mais famosa banda de rock que existe atualmente. Os filmes assitimos em praças públicas em telas de gases que surgem e somem como fumaça, os animais de verdade não existem mais. deles só restaram hologramas. Também não mais existem florestas, nem plantas, nem cachoeiras tudo é virtual.” 


Thomas chegou dizendo o que naquele dia, aprendeu na escola, que Deus criou o mundo e todas as coisas que há nele. Todos os seres Ele criou. Ficou muito sério e pensativo tentando entender como isso se procedera. A partir daí, tentou formular seu conceito de criação do mundo. Disse: “-No dia 08 de agosto do primeiro ano do mundo, Deus disse faça-se as coisas e as coisas se fizeram. Deus fez meu vô, minha vó, minha mãe, fez eu, minhas primas Aika e Sofia, e Deus fez meu pai. Por isso daquele dia em diante se comemora o dia dos pais. Porque o pai do céu, naquele dia criou os pais da terra. Somos criaturas de Deus Ele nos criou.” E continuou, de si mesmo dizendo: “-Vô, o mundo é feito de barro. De barro Ele fez. Do chão pegou uma bola de barro e fez o mundo. Assim como nós  meninos pequenos pegamos bolinhos de barro, e moldamos bala de bodoque, bala de atiradeira. Deus pôs um pouco de água pra ficar mais fácil de moldar, por isso a terra é coberta de água, mas no seu interior é toda de barro. E pôs o mundo no sol pra ficar bem fixo. Lembro que um dia a minha rua ficou toda inundada. Naquele dia Deus estava moldando o mundo, e balançou tanto as mãos que sobrou um monte de água na minha rua. Parecia que o mundo ia se acabar, mas com muita paciência tudo se resolveu. Por causa da saliva de Deus as águas do mar ficaram salgadas. O cuspe dele é azul. Por isso o mundo é azul. No dia 08 de agosto de 2015. Nessa data Deus vai colocar a terra, no seu estilingue. A bola da terra Ele vai atirar. Em direção ao interior do universo vai atirar. Nesse dia o mundo vai girar com tanta força que nós, os bichinhos que nele vivemos vamos precisar nos segurar em alguma coisa, nos seus pelos. Os pelos da terra são as árvores. Se não nos segurarmos podemos voar, tanta será a força e a velocidade da bala do mundo girando pelo universo. Com isso a terra pode incendiar. Mas isso não vai acontecer nem tão cedo. Somente no dia 08 de agosto de 2015. Tanto tempo ainda temos para viver. Enquanto isso não acontece, o melhor é viver, brincar, ser feliz. Cada um, com seus melhores amigos. Não é mesmo vô?” Assim disse Thomas.

16 de julho de 2015

A Promessa de Casteado

Era uma vez, assim que o dia nasceu. Mais uma vez era. A casa continuava no mesmo canto, encostada nas outras. Se tivesse sozinha já teria caído. O salitre, os tijolos frágeis, de barro cozido. Ao ver aquela cena, vieram lembranças que fez tudo voltar ao passado de Benício Felix. Pra construí-la foram dias de trabalho duro, o homem e a mulher somente. Da encosta do riacho arrancaram o barro. Com as próprias mãos moldaram os tijolos. Fizeram uma caieira que varou a noite queimando. E o bolo de fogo crepitou na catingueira verde azeitada que produziu um cheiro doce. A caninana buscou outro lugar pra se entocar. Os olhos gigantes da coruja assoviavam, causando arrepios de dar medo. O ponto de fogo lá no pé da serra, de cá da cidade parecia só o lume dum palito de fósforo aceso. 

Pitava João, pitava Maria cigarros de palha, de rara beleza, singela ação pra quem via; raro sabor, um primor pra quem vivia. A cozinha baixinha, pretinha punha os mais taludos de cócoras e os pequenos aproveitavam pra desabarem nos seus colos. O menino viu e guardou, sem saber que guardava guardou. Os dias andaram de roda gigante, e fez miséria. A rua cresceu, e se multiplicou, fez como rezava no livro de Gênesis. Mas despois que cresceu, seus filhos foram embora, foram cuidar de suas vidas cortando o cordão umbilical deles com a rua. Rua que lhes amamentara, lhes embalara lhes pusera pra dormir. E de tristeza a rua encolheu, definhou, tanto que morreu. No seu lugar nasceu outra. Que nem em sonho imaginava que um dia fora a outra. O tempo de bandidos saqueadores estava instalado, não mais agora, mas naquele tempo da Rua Nova. Os homens se reuniram em assembleia daí virou Rua da Assembleia. A dificuldade do governo de cobrir com um contingente policial todos os municípios facilitava a ação dos malfeitores. Dona Adelia e Seu Canuto eram os moradores mais ilustres, os mais abastados de recursos. Os facínoras os tiveram em mira. Os-leva-e-trás, os olhos do coronel deram com a língua nos dentes. Vulnerável se tornavam vítimas. Quem só tinha a vida, uma reserva de grãos no fundo da dispensa, e alguns tostões enrolado num lenço debaixo da camarinha. Outra alternativa não havia, a não ser fugir. Um vaso branco era peça de estimação, também ia pra o mato, nos dias de tribulação. Fugir talvez fosse a única saída pra quem não queria ir pro enfrentamento. Os declives do relevo, as encostas dos cursos d’água, as grotas, tudo que pudesse esconder um cristão servia de refúgio.

“Então, aproximando-se dele um escriba, disse-lhe: “Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores.” Jesus lhe respondeu: “As raposas tem suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o filho do homem não tem onde repousar a cabeça.” Outro de seus discípulos lhe disse: “Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mateus 8-20”

A filha de João e Maria tinha saudade do pai, queria tanto ver o pai. Lembrava dos seus olhos calados. Lembrava do jeito como sentava. Se afastava de costas até a cadeira segurando com seus braços magros, os braços rijos da cadeira. E cruzava a perna direita sobre a esquerda, nunca ao contrário. As mãos espalmadas uma sobre a outra apoiadas sobre os joelhos. Assim acabaria escrevendo na memória da filha, como queria para sempre ser lembrado. Meu Deus como era tanta a vontade de revê-lo, não existia outra coisa mais importante que isso. Era tudo o que dali por diante pediria a Deus, até seus últimos dias. Perguntaria como estava de saúde, se no céu também cuidavam de roça. O cabo da enxada lustroso de uso, a folha do instrumento de tão gasto arredondara nos cantos. O cabide de pendurar pano de pratos era de madeira, tinha a cabeça dum peru branco com sua pinta vermelha descendo por cima do bico. O filtro d’água tinha roupinha com enxadrezado de crochê na borda e um desenho de rosas amarelas que lembravam bagos de jaca. A bandeja dos copos coberta com redinha de filó ornada com fuxicos. A outra filha não se lembrava mais de nada disso. Tão esquecida coitada. Não lembrava mais do dia do sepultamento do pai. O sobrinho ajudou. Se lembre tia que o padre Moisés disse assim: “-João... Morreu num grande dia. No dia da anunciação. Dia em que o arcanjo Gabriel anunciou a Virgem Maria que ela ia ser a mãe do Salvador.” Era o dia 25 de março daquele ano. 

“Quando Isabel estava no sexto mês de gravidez, Deus enviou o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia chamada Nazaré. O anjo levava uma mensagem para uma virgem que tinha casamento contratado com um homem chamado José, descendente do rei Davi. Ela se chamava Maria. O anjo veio a ela e disse: “-Que a paz esteja com você, Maria! Não tenha medo! Encontrastes graças diante do Senhor. Ficarás gravida, darás a luz um filho e porás nele o nome de Jesus. Ele será um grande homem e será chamado de Filho de Deus Altíssimo. Deus o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. Ele será para sempre rei dos descendentes de Jacó, e o reino dele nunca terá fim. “-Como isso se dará? Se não conheço homem.” Perguntou-lhe Maria. Ele respondeu: “-O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Deus Altíssimo o envolverá com sua sombra. Por isso o menino será chamado de santo e filho de Deus. Sua parenta Isabel está grávida, mesmo sendo idosa. Diziam que ela não podia mais ter filhos, no entanto ela já está no sexto mês de gravidez. Porque para Deus nada é impossível.” Maria respondeu: ‘-Eis aqui a serva do Senhor, que aconteça comigo o que o senhor acabou de me dizer.” E o anjo foi embora. São Lucas 1,26-38”

O primo Casteado teve uma dor de dente horrível. Foram cinco dias com cinco noites sem dormir. Na primeira noite, destroçou um travesseiro mordendo, e grunhindo feito um cão raivoso. Amanheceu na porta de Seu Pedrinho, protético, que temeu extrair o maldito, pois estava bastante inflamado. Receitou-lhe um anti-inflamatório, que praticamente surtiu efeito contrário. O peste teimoso que era, fazia esforço durante o dia, pra desparecer a dor maligna. Trabalhava na broca duma roça, no carrego de saco na cabeça. Na segunda noite sem pregar o olho, teve alucinações. Andava com um pano amarrado por baixo do queixo e em cima da cabeça. Na terceira noite andava doido o homem. Tomou um litro de cachaça de uma vez só, a única coisa que conseguiu com isso foram ferimentos no cocuruto por ter batido muitas vezes com a cabeça contra o tronco de uma árvore. No quarto dia foi a um rezador, os galhos de arruda do homem murcharam que foi uma beleza. Disse-lhe que estava cheio de olhado, espíritos ruins lhes acompanhava. Dissse ele que botou tudinho pra correr. Durante a reza ele passava a mão espaduada do ombro até os rins. Como se estivesse tangendo algo que estava sobre os ombros do caboclo. Somente os espíritos do outro mundo viam, o que ninguém mais via. Pediu que lhe estendesse a mão espalmada, olhou-a atentamente, se benzeu. Pediu que se benzesse também. E continuou suas profecias dizendo que uma mulher por nome Maria, que na juventude havia sido sua namorada, com quem acabara o namoro. Por vingança fez um trabalho para derrubá-lo. Não conseguindo, no entanto, pois Casteado, tinha o corpo fechado. Por conta desse dente, Casteado ficou vagando várias noites, pelos arredores da vila. Passaram a dizer até que estava correndo bicho, e que teria o poder de tornar-se vulto, de se transformar na besta fera, ou num lobisomem, nas noites de lua cheia. No quinto dia, mesmo inchado, o charlatão resolveu extrair o dente. Em vão aplicou sedativo. No cru mesmo o infame teve que ser tirado. Horripilante grito ouviu-se do pobre diabo. No exato momento que o sol se ia, e a lua prateava o início da noite.

Na cozinha de cócoras com os pés descalços, sujos, a calça enrolada até a batata das pernas. Uma xícara de café fumegante na mão que lhe cobria parte do rosto. Fitava o primo Benício Felix que tinha por aqueles dias, chegado da Bahia de São Salvador. Fazia cinco anos que não aparecia, tinha ingressado na marinha, na capitania dos Portos da majestosa enseada dos Nautas de fronte a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. E agora de férias, resolveu estar de volta, rever os parentes. Casteado não parava de fazer perguntas. Fascinado queria saber como era a história que soubera que ele viajava num bicho grande todo feito de ferro, que andava no fundo do mar chamado de submarino. Naquela cabecinha de pouca massa cinzenta aproveitável, tal ideia era inconcebível. Não entendia como era que um troço pesado todo de aço não afundava. Como era que conseguia passar vários dias debaixo d’água? E pra respirar? Felix se divertia a custa do matuto, dizendo coisas ainda mais absurdas, que num hotel onde esteve em Mar Del Plata, tudo era automático, apertava um botão e uma esteira rolante levava as malas até o quarto do hotel. Na hora de servir-se a mesa, do mesmo jeito, era só apertar um botão e as panelas deslizando em trilhos sobre a mesa despejavam as comidas no prato. E ria por dentro diante da cara de estupefação do pobre matuto.  

Casteado também tinha uma história pra contar. Disse ele que na hora da agonia, na quinta noite da dor de dente, um milagre aconteceu: “-Meu padrinho Cíço Romão Batista me apareceu! Perante a luz de Deus como era ele, Benício! Vestidinho na sua batina toda pretinha, pretinha! Todo ‘arrudiado’ de nuvens, uns anjinhos tudo voando. Tirou o chapéu da cabecinha, os cabelinho bem alvinho! E disse bem assim: “-Casteado quando você era menino pequeno, tinha só oito anos. Você teve uma doença que ia lhe matar. Mas sua mãe chamou por mim, e disse que se você ficasse curado te levaria até Juazeiro do Cariri. Mas levaria você nuzinho, despido. E só ia vestir uma roupa em você, quando chegasse nos degraus da igreja de Nossa Senhora das Dores. No outro dia Benício, eu tomei uma decisão tirei minha roupa todinha, e fiz finca pé pra Juazeiro. Nu pelado do jeito que eu vim ao mundo. Quando cheguei no Pedrão, um soldado de polícia chegou junto deu. Todo enjoado deu voz de prisão. Eu disse que estava indo pro Juazeiro pagar uma promessa a meu padrinho Ciço. O seu "poliça" rodou a mão no meu pé do ouvido que o sangue do dente extraído espirrou fora. Passei uma semana preso, na delegacia de Olho D’água das Flores.”


Fabio Campos 09 de Julho de 2015