Travessias

Um quadro na parede. Uma imagem, a depender do observador, talvez signifique apenas o que em aparência representa. Um homem branco, com um imenso chapéu de massa azul escuro, à porta de um bordel. Trajado numa japona azul. Um xale vermelho cobria-lhe o pescoço. Luvas marrons, um bastão à canhota. Semblante vago, distante. Incomodado talvez, como se não tivesse pedido para ser retratado naquela aquarela. Cena noturna fazia frio. Era inverno. Um lugar qualquer no centro da Europa. Do tempo em que se andava de carruagens e charretes. “Ambassadeurs Aristide Bruant dans son Cabaret” dizia a gravura.

O cartaz trazia a assinatura de Henri de Toulose-Lautrec. A réplica repousava numa moldura chinfrim, na parede de um quarto de República. Onde morávamos mais quatro estudantes de Direito, à Rua Guedes Godim, antiga Rua Santa Maria, na Levada em Maceió. Foi assim, no ano de 1985, que vi pela primeira vez aquela bela imagem. Observei-a sem emoção. Analisei-a sob a luz da arte. A disposição das cores, o todo e os detalhes, o estilo do artista. H.T. Lautrec ficaria famoso por ser um dos que deram início a Art Nouveau, estilo de vanguarda do final do século 19, em Paris. Período que ficaria conhecido por Belle Époque. Outras três vezes mais veríamos aquela pintura. Numa revista de arte, estampada na camiseta duma jovem, na parede dum consultório médico. Só então entenderia que aquela imagem perseguia-nos. Pedia que fizéssemos uma travessia, que a olhasse além da tela.

Era preciso voltar no tempo. Em 28 de Junho de 1914, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono Austro-Húngaro e sua esposa Sofia, Duquesa de Hohenberg, em visita a Saravejo na Bósnia teriam sido assassinados pelo terrorista sérvio Gravilo Princip. Esse infeliz incidente, segundo os historiadores serviu de marco para o início da Primeira Guerra Mundial. Naquela época Francisco Ferdinando intencionava transformar a monarquia dúbia até então vigente no seu reinado, desde 1867, numa monarquia tripartida, na qual os eslavos teriam que reconhecer a sua autonomia. Isso contrariava os planos dos sérvios.

Voltemos mais um pouco no tempo. Em 1889 outro incidente trágico ocorreu no seio da família imperial Austro-Húngara. O primo de Francisco Ferdinando, o príncipe herdeiro Rodolfo, cometeu suicídio em seu campo de caça em Mayerling subúrbio de Paris na França. Isso mudaria completamente o rumo da história. Com a morte de Rodolfo, o monarca Carlos Luis, pai de Francisco Ferdinando passava a primeiro lugar, na linha de sucessão do trono. E como consequência disso Ferdinando seria seu sucessor. O embaixador Aristide Bruant, pai de Rodolfo morava em Paris. O motivo pelo qual seu filho teria cometido o desatino de por fim a sua existência, forçando uma travessia antecipada, seria por conta da vida desregrada de seu pai. Bruant dado a boemia, frequentador dos cabarés da noite parisiense. Tornara-se viciado em uma bebida alcoólica chamada de Absinto. Acabaria por ter uma filha bastarda, com uma cantora do cabaré Moulin Rouge, por nome de madame Jane Avril. Rodolfo apaixonara-se pela moça, ao descobrir de quem era filha, suicidou-se.

Aristide Bruant era amigo do pintor Toulose-Lautrec, também dado a jogatina e amante das noitadas boêmias de Paris. Fazia das prostitutas do Molin Rouge suas musas. Nascido na nobreza francesa, possuía uma linha de ancestrais de nomes aristocráticos. Seu pai era o Conde Alphonse de Toulouse-Lautrec-Monfa, e sua mãe Adéle Tapié de Céleyran. Queriam seus pais que o filho seguisse o mesmo caminho nobre de toda a sua família, tanto materna quanto paterna. A vida mundana levaria a ter a saúde minada, no dia 09 de setembro de 1901 o pintor alcoolátra e sifilítico fazia sua travessia. Morreu nos braços de sua mãe aos 36 anos de idade, no castelo de Malromé, cercanias de Bordeaux.

Santana do Ipanema, sertão das Alagoas. Cenário de outras travessias. No dia 16 de Dezembro de 1908 nasceu o filho de Antonio Francisco de Campos. Ainda jovem soldado de polícia, na idade adulta padeiro. Banqueiro de jogo de baralho, boêmio. Conheceu a filha de Thomaz Dorotheu. Ao pedi-la em casamento, já contava com mais de trinta anos de idade. Tornou-se comerciante. Este fora meu pai. Em momentos de descontração por várias vezes vi-o pegar uma folha de papel e desenhar. Desenhava naturezas mortas. Peixes dentro dum cesto. Frutas, garrafões de vinho. Desenhava uma estranha avestruz. Dizia que aquela ave escondia um segredo. Na verdade era o mapa de um tesouro. A pluma da cauda representava montanhas alpinas. O longo pescoço uma trilha, um caminho imaginário que levava a uma ilha (a cabeça da ave) quem sabe a ilha de Córsega. As patas do pernalta gigante representava dois guardiões do tesouro, que ficava num castelo de pedras, representado pela asa da ave, talvez a Catedral de Notre-Dame. Contava eu com a idade de dez ou onze anos quando o vi pela última vez desenhar a avestruz, mapa do tesouro. Lamento não ter tido a curiosidade de perguntar, de onde ele teria visto o desenho misterioso. Meu pai. Assim como o artista francês, faria sua travessia também num setembro. 06 de setembro de 1976.


Fabio Campos

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