O Menino e o Gigante

Vamos contar história. História caseira, dessas que se conta em fundo de quintal. História com certidão de nascimento, com cartão de vacina, que teve dia e hora pra começar. Historieta que só interessa ao dono. Dessas, que a gente inicia dizendo “Querido Diário...” E quando termina, guarda com carinho, pra muito tempo depois abrir a gaveta do criado-mudo, e sob a luz do abajur reler e chorar. Historiazinha pequenina, do tamanho da alma do autor, que se inventou de escrevê-la, muito embora gigantona como o protagonista que a concebeu. Ela se inicia no dia que o menino Thomas, de apenas dois aninhos veio ao mundo, mas já tem história pra contar. Era um dia vermelho, no calendário. Feriado nacional, desses que o comércio é obrigado a fechar as portas, não porque Thomas tenha nascido, mas porque um marechal, um desses homens velhos, sisudo, de longa barba, desses que vão parar nos livros de história - num dia como aquele, noutro século - proclamou a nossa República. Fazia uma dessas manhãs imensamente cheia de luz, em que o nosso conto de fadas veio ao mundo. Quanta alegria se depositara no coração dos que o aguardavam. O menino nem bem havia nascido e nem sabia, mas já havia ganhado um gigante.

No início não passava de uma bolinha de gente. Frágil criaturinha nem destino certo tinha. Sem rumo, não sabia o que fazer da vida. Vivia passando de mão em mão, olhinhos fechados. Tudo era novidade o tempo todo. Uma vez aqui, tinha que fazer alguma coisa, além de respirar. Aprendeu a sugar o leite materno. Criou uma rotina bacana, enchia a barriguinha - punham-no pra arrotar - e dormia. Descobriu que tinha que evacuar, chorava pra que alguém o limpasse e dormia. Será que a vida toda, ia ser só isso? Comer, arrotar, dormir, evacuar, chorar e dormir novamente. Nesse tempo – que talvez deva ter durado uma eternidade – apareceu um gigante. O gigante levava-o pra tomar banho de sol. Nunca tinha visto tanta luz. O gigante conversava com ele, porém nada compreendia do que se passava, mas pra que compreender? Compreender era coisa de gente grande, precisava mesmo era curtir cada momento! Talvez se lembrasse do primeiro mundo em que vivera, onde só havia penumbra. Na verdade escuridão total. Ali, flutuava num líquido morno, feito um astronauta, ligado a nave-mãe pelo cordão umbilical. Sons estranhos eram percebidos, vindo de um mundo externo. Quando já estava perto de vir pra este mundo de cá, viu a luz pela primeira vez, um cometa cruzou seu céu - a luz da ultra-sonografia - várias vezes. Os sons antes ouvidos, aqui fora eram mais perceptíveis, mais claros. Conseguia identificar pelo timbre da voz, as pessoas com quem convivera até então. A retina ainda em formação, não permitia distinguir com nitidez a forma das coisas, das pessoas. Era mágico, fazer descobertas a cada momento, aprender coisas novas, a cada instante, adrenalina pura! Tudo era percebido meio anuviado, diáfano. Como se inverno. Tinha que estar agasalhado o tempo inteiro. Bom sentir o carinho dos que o rodeavam. Bom ouvir fala de pessoas, mesmo que nada entendesse do que diziam, ainda mais porque, umas com as outras falavam gritando, com ele falavam de forma engraçada, abobalhada. Abanavam suas bochechas e orelhas, riam e bolinavam com insistência seu sexo. Se lhe fosse possível devolvia o maldito afago da mesma forma.

Novas conquistas a cada dia, conhecer, descobrir. A cabeça se firmando pouco à pouco no pescoço, firmeza pra segurar objetos, quanto mais colorido mais atraente. Tudo que pegava levava à boca, por ali aprendera a explorar o novo mundo. Aprender que chorar era o único recurso de comunicação, sua primeira língua de sinais. Então chorava se tinha fome, novamente o choro pra dizer que tinha cólica. Uma sequência de berros pra alguém trocar a fralda. O menino ia entendo como viver no novo mundo. No início a vida significava necessidades a serem supridas, comer que dava um prazer enorme. Dormir que proporcionava uma viagem fantástica pelo mundo dos sonhos, e como sorria enquanto dormia. Comentava-se que enquanto sonhava, sorria porque via anjos. O mundo era distinguido entre claro e escuro. Entre silêncio e barulho. Pessoas tinham cheiro, tons de voz diferente e forma de carinho também. A mamãe cheirinho de leite e de talco. O papai cheirava a suor, braços duros, desajeitados. A vovó perfume forte, carinhos exagerados. A titia cheiro de chiclete. Vovô, às vezes álcool puro, barba dura. Se não tinha sono, vinham as cantigas de ninar, que saco! Um monte de frases repetidas, feito disco arranhado. Balançado, solavancos no braço que o deixava meio tonto, assim não tinha quem não dormisse.

E o menino completou um ano de vida. Quanta alegria pelos primeiros passos, ampliavam-se os horizontes. No dia que fez aniversário estava internado com pneumonia, no hospital de Palmeira dos Índios. Gente de branco, isolamento, corredores, não sabia o porquê, certeza apenas que na era seu antigo habitat. Triste tarde de despedida, após a visita, na hora de vir embora, choro contido, o gigante tendo que deixá-lo a sós, ele e a mãe. E foi uma festa ouvi-lo balbuciar o arremedo de uma palavra: Papá, entendido como se estivesse querendo dizer papai. Vovô, um par de sílabas repetida, fácil de pronunciar. O menino passou a levar o gigante pra passear. Na contemplação, mostrava-lhe o quanto era interessante as coisas, as criaturas de Deus, uma árvore, uma folha, um grilo, um gato, uma galinha, um cavalo, um cachorro. Coisas que o próprio gigante já havia perdido o real significado. Tudo passava a encher de admiração, a ambos. Ao pequenino, porque nunca tinha visto, ao outro, porque estava reaprendendo a ver. Interessante descobrir que havia coisas que se movia e coisas inanimadas. A terra e a água, que poder de atração sobre o pequeno exerciam. Água que se movia, mas não era bicho. Como era bom ter um mundo pra conhecer.
Entre os vários brinquedos que ganhou, um dos que mais gostava era o gigante, não quebrava, não necessitava de pilhas. Brincavam de esconde-esconde, de cavalinho, de soldado, rei e castelo. O gigante fugia do seu mundo, pro mundo do menino que era muito amado pelo seu grande brinquedo. Um beijo carinhosamente depositado no rosto passou a ter um significado muito amplo pro gigante, sentindo despertado pelo menino que nem noção disso tinha. Lua, palavra doce, fácil de pronunciar, bola mágica que aparecia e desaparecia nas tardes de recreio. E o rosto, o coração de pedra, as grandes mãos do gigante, de dedos que viravam tentáculos envolviam o pequenino e o elevava, a lugares nunca dantes alcançados. Mãos que contavam histórias. Histórias que falavam de floresta, de lobo, de seres bons e maus, que faziam coisas ruins, mas aonde o bem, sempre, sempre prevalecia.


Fabio Campos

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