O LIVRO DA CAPA PRETA

Ladeira da Rua Rotary, em Santana do Ipanema, acesso obrigatório de quem ia da Praça do Monumento pro cabaré de Dona Brejão. A certa altura da ladeira, a um cubículo, três por quarto, ficava a oficina de Seu Satiro flandeleiro. Engraçados, nome e profissão, do remendador de bules, baldes, panelas e calhas de zinco. Passado já havia metade da década de sessenta, desde o que passamos a contar foi sucedido. 

Andar claudicante, sequelas de uma paralisia infantil, Seu Satiro era figura alta, esguia. Filho de pais pobre, negros, desde pequeno teve que trabalhar. Viviam da roça. Aos sábados vendiam frutas e legumes na feira. Homem feito aprendeu a arte de funileiro. Constituiu família grande, muitos filhos. Seu Satiro nunca fora a escola, nem aprendera a ler. Ainda criança invejava os outros meninos que iam à escola de Dona Josefa Leite. Bem ali perto, vizinho a bodega de Seu Zé Santana. 

Seu Satiro se iniciou na comprar de livros velhos, pra revender por quilo. Os fundos da oficina acabaram virando uma biblioteca. Mesmo sem saber ler, sentia-se fascinado por tudo quanto era impresso. Passou a colecionar livros, revistas e jornais. Grandes clássicos da literatura mundial, amontoados sem muita preocupação com a arrumação ou conservação. Otelo, A Megera Indomada, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, A Divina Comédia, de Dante. Livros de capa dura se sobrepunham aos didáticos e antológicos, de páginas rotas e amareladas. Junto a tanto outros de escritores brasileiros, Dom Casmurro, Machado de Assis. O Quinze, Rachel de Queiroz. Lucíola, A Pata da Gazela, de José de Alencar, raríssimos, nas suas primeiras edições. O Cortiço, de Aluisio de Azevedo. O Ateneu de Raul Pompéia. Livretos de bolso, de faroeste e espionagem, em caprichosas gravuras da capa. 

Fábulas de Christian Andersen, Esopo e Monteiro Lobato, dividindo o mesmo espaço com Os Sertões, de Euclides da Cunha e Vidas Secas de Graciliano Ramos. Esses últimos Seu Satiro tinham-nos como livros de cabeceira. Mesmo não tendo o dom da leitura, imaginava que histórias estariam contadas ali, pelas gravuras que exibiam, sonhava. Sabia que tinham muito em comum com sua própria vida. Livretos de cordéis, Cancão de Fogo, Pedro Malazarte e Mata-Sete. Seu Satiro sabia de cor e salteado das façanhas dos lendários heróis dos sertões. Não que os livrecos litografados os tivessem contado, mas as conhecia por Seu Cipriano, seu pai, e o velho Zé Rosa, contratado do governo estadual pra cuidar do açude do Bode. Bastava abrir-se a boca da noite, também a boca dos fascinantes contadores de histórias se abria, sentados a um banco chamado de Péla Porco, rodeados de menino e gente, no alpendre do casebre onde moravam na Rua da Maniçoba, a contar causos e histórias de trancoso. 

Certo dia Seu Satiro ao revistar seu acervo literário, um pequeno livro de capa preta aparentemente comum chamou-lhe a atenção, de atrativo nada havia nele, porém praticamente hipinotizado ficou ao percebê-lo. Na capa a seguinte inscrição em letras góticas douradas “Librarum Ciprianus – Crede mihi nihil prater mittendum” Enigmas pra Seu Satiro o português, mormente o latim. Algo muito forte que não conseguia explicar o atraia no livreto negro. Sentiu a necessidade de pegá-lo, tê-lo nas mãos. Foi tomado de uma sensação estranhíssima ao tocá-lo. Uma centelha de energia vinda duma outra dimensão percorreu-lhe todo o corpo provocando-lhe arrepios. E algo inusitado aconteceu, ao abrir o livro, este começou a falar com ele. Seu Satiro passou a ouvir uma voz ecoada como se vinda do além, mas que era como se fosse de dentro do livro, E que só ele conseguia ouvir, esteve a dizer-lhe:

"Numa noite de sexta-feira, caminhava eu por uma rua deserta quando me deparei com quatorze fantasmas. Essas aparições eram bruxas que imploravam ajuda. Chamo-me Cipriano, respondi as aparições. Disse-lhes que estava arrependido da vida de feiticeiro, e que havia me tornado temente a Jesus Cristo. Logo depois caí em sono profundo, e sonhei que se rezasse a oração do Anjo Custódio me livraria daqueles fantasmas. Ao despertar tive uma breve visão do Anjo. Assim, auxiliado pela oração de São Gregório e do Anjo Custódio, esconjurei e livrei as almas atormentadas das bruxas." 

Seu Satiro bruscamente fechou o livro. Estava lívido, suado, parecia ter descido as profundezas do purgatório, sentiu as faces como fogo. Não conseguia entender como aquilo estava acontecendo, o que significava? Um livro falando com ele! Tentou lembrar-se como fora parar na sua oficina. Lembrou-se que no último sábado, veio ter com ele um cigano. Tinha tatuagens nos pulsos, o signo de Áries na destra, e um cinco Salomão, na esquerda. Chegou trazendo uma lanterna para consertar. Por não ter dinheiro para quitar o reparo, deu-lhe o livro em pagamento. Teria lhe dito que assim que arranjasse dinheiro viria resgatar o livro que ficaria de penhora. Não veio. 

Outra vez Seu Satiro tornou a abrir o livro, que voltou a falar-lhe. Indicaria uma página para que abrisse e pediu que se concentrasse e repetisse tudo que lhes iria pronunciar: 

“De omni re scibili et quibusdam aliis – Para saber de coisas ocultas” 

Após recitar a oração que havia naquela página, Seu Satiro experimentou a faculdade de decifrar os signos literários. Incrível! Num estalo de dedos aprendera a lê! Seu Satiro estava radiante! Bastou repetir as palavras que o livro lhe indicou e passou a saber lê. Avidamente como um cego que adquirira a capacidade de enxergar, quis devorar o que havia escrito nas outras páginas: 

Oraculum A posteriori mortem – Oração para depois da morte 

Oraculum Animus laedendi – Oração com intenção de prejudicar 

Oraculum Animus necandi – Oração com intenção de matar 

Oraculum In spiritualibus A sacri – Oração para adquirir poder das coisas sagradas 

Oraculum Corpus alienum – Oração para Ocultar-se 

Oraculum Obscurum per obscurius – Oração para o que estivesse oculto que se revelasse 

Oraculum Nihil occultum ipsum – Oração para que nada fique oculto para mim. 

E Seu Satiro passou a dedicar-se a ler tudo o que havia acumulado até então. A começar pela Bíblia Sagrada. E todas as noites a porta de casa a meninada, os vizinhos puxavam cadeiras e mesmo sentados a calçada, vinham apreciar as extraordinárias narrativas de Seu Satiro que acreditava ter sido seu velho pai Cipriano que viera do mundo dos mortos, dotar ao filho, do domínio das letras e da narrativa.

Fabio Campos


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