Amigo de Deus.


O pescador saiu pra pescar. João era o nome dele.  João feito de pedra, de sal, e de mar. Pedra no coração, sal na pele e nos cabelos. O mar ia-lhe nos olhos. O céu não tinha saído da caverna ainda. Havia uma lua lá em cima, posta por trás duma cortina de nuvens negras, não se deixava ver totalmente. O elemento terra entranhava-se nos pés descalços, do homem que ia pescar. O elemento água ia até onde os olhos alcançavam, e se cansavam, mesmo assim não desistiam.

Monstro descomunal, dragão deitado, rosnando, bufando, preste a se acordar, furioso: O mar. Pra entender todas aquelas coisas, os olhos cobravam mais luz, e podiam ser de outros luzeiros. Uma lanterna alumiava os pés morenos, que ia fazendo pegadas na areia molhada. A trilha, sendo apagada pelas línguas de espumas, despreocupadas de ficar pra trás. E as ondas brincando de pega-pega com pequenos siris assustados, com seu caminhar esquerdo, acabavam se sugando pra dentro dos buracos.

Jafé era amigo do pescador. Seu João conhecia Jafé de quando ele era ainda pequenino. Agora, senhor Jafé Mascarenhas. Recordava dele menino matreiro, ainda no Grupo Escolar Coronel Durval Mascarenhas. Gazeteava aulas, na escola que tinha o nome de seu avô, pra ir acompanhar o trabalho dos pescadores. Cresceu ali, conhecendo o mar, amigo dos homens do mar. Amava o mar, e era por ele amado. Seu pai, o doutor Evaristo Mascarenhas, o homem mais rico de Barra do Coqueiral, assim que viu o menino crescer, mandou-o a estudar advocacia na Bahia. O jovem filho do usineiro, não tinha vocação pra causídico. Tentou Agronomia, mas formou-se mesmo em Economia. Doutor Evaristo ganhou do governador, o cargo de fiscal da Receita Estadual. Jafé assumiu aquela função, ali mesmo, na jurisdição em que a família Mascarenhas era mandatária, e tinha influência política.

Jafé, o cobrador de impostos, ergueu uma bela casa de veraneio, na encosta do manguezal. Investiu dinheiro no ramo pesqueiro, mais por pura satisfação e prazer, que para ganhar dinheiro. Seu João trabalhou muitos anos, nos barcos pesqueiros do senhor Jafé. O ano inteiro os barcos saíam para pescar. Nos primeiros seis meses do ano, redes de arrasto pra peixe graúdo. No segundo período a pesca predatória da lagosta. Por semana os barcos eram preparados. Passavam por uma vistoria que incluía calafetagem e pintura do casco, manutenção do motor. Antes de cada jornada conferiam os itens de segurança: Bússola náutica, coletes e boias salvas-vidas, sinalizadores, lanternas, balão de oxigênio, antígeno contra veneno de serpentes marinhas, radioamador. Depois a compra dos apetrechos necessários no alto mar. Combustível, alimentos, frutas, alguns medicamentos, maletinha de primeiros socorros. O convés das embarcações recebia uma camada de gelo, de quase meia tonelada. Donde se conservaria o pescado enquanto estivessem em alto mar. Cada barco tinha tripulação delimitada em no mínimo dois, e no máximo três homens. E ficariam entre doze e quatorze dias sem pisar terra firme. Só voltavam quando toda a frota de oito barcos, estivesse completamente abarrotada de peixes. Um sol grande, forte, dispersador de muita luz e calor. Todos os dias vinha sempre admoestar tudo que possuía superfície. Pouco afeto tinha com a madeira do barco. Fluía brutalmente sobre as outras texturas, fazia reflexos de espelho nas escamas do peixe, dizendo aos crustáceos que em suas carapaças havia tons que iam de lilás a azul, alaranjado e vermelho. Quanta tragicidade contida na carcaça dum caranguejo morto, semi enterrado na areia.

Zacarias era um velho ermitão, sentado na areia, permanecia na praia. Sua cabana rica em rusticidade, ali erguida, dava a entender a quem lhe deitasse o olhar, que estaria preste a desabar. Era só impressão. As vigas de madeira que sustinham a palhoça, apesar de arribada na areia, tinham firmeza na base. Já haviam enfrentado tempestades de vento, chuva e areia. Zacarias escavou um buraco, colocou uns gravetos e palha seca, e fez fogo. Dali a pouco um fio de fumaça quase imperceptível ia levar lá longe o cheiro de madeira queimada, junto com o aroma do pescado assando. Seu João era amigo do lobo solitário. Chegou ali e sentou-se um pouco afastado, longe do caminho traçado pela fumaça. Disse que estava preocupado com seu ex-patrão, senhor Jafé estaria muito doente. Tinha certeza que era os excessos com a bebida alcoólica. Todos os dias, litros e mais litros de uísque. Isso quando, não resolvia beber cachaça, junto com os pescadores, depois do serviço. Também fumava muito, eram duas carteiras de cigarro por dia. Além do mais àquela altura da vida, aos sessenta e poucos anos, dona Íris, sua esposa, não suportando mais tantas brigas, exigiu a separação.

Enquanto conversava com Zacarias, Seu João varia a barra do mar com os olhos. Ocupou-se em fazer reparos numa rede de pesca. Os dedos das mãos, freneticamente procedendo o conserto, quase que nem precisava da atenção do sentido da visão. E travavam uma conversa muda de quem entendia um ao outro sem precisarem dizer palavra. Em pensamento João ouvia uma voz que vinha do mar, e Ele, o que lhe falava dizia que amava os homens, pois quando criou o mundo, povoou a terra com todo tipo de animais, e o mar com todo tipo de seres e monstros marinhos. E viu o quanto tudo isso era bom. E sempre vinha a praia, admirar a sua criação. Comer peixe, dava-lhe uma satisfação indizível, considerava um alimento divino.

João, ali ouvindo o vento vindo da praia. Era a Deus que ouvia. Diante de tão inusitada oportunidade tinha alguns questionamentos a fazer. Em suas reflexões pediu que Ele satisfizesse sua curiosidade. Queria saber: se Deus amava realmente todos os homens indistintamente. Recorrendo as Sagradas Escrituras, no Antigo Testamento, recordou-Lhe que no início tinham os filhos de Eva: Abel que era cuidador de rebanhos, e seu irmão Caim cultivador da terra, nem havia ainda entre eles um, que fosse pescador. E lá no íntimo do seu pensamento, as perguntas eram: por que a oferenda de Abel tinha agradado mais que a oferenda de Caim? E mais, por que o Seu filho, Jesus Cristo teria escolhido um pescador pra fundar sua igreja? Calado como estava até agora, o velho Zacarias levantando-se foi até a cabana, demorou alguns instantes e voltou trazendo um livro na mão. Permanecendo de pé, de frente pro mar, folheando-o parou numa determinada página. E fazendo uso da voz, leu : 

“Abel tornou-se pastor de ovelhas, e Caim agricultor. Passado algum tempo, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel por sua vez trouxe partes gordas das primeiras crias do seu rebanho. O Senhor aceitou com agrado Abel e sua oferta, mas não aceitou Caim e sua oferta. Por isso Caim se enfureceu e o seu rosto se transtornou. O Senhor disse a Caim: “Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas, se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele (o pecado) deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo. Gênesis 4-2,7.” 

Era um propósito de Zacarias, todo dia, a hora qualquer, aleatoriamente ler um trecho da Bíblia. E João voltou a escutar a brisa: "-Vedes João, Caim procedeu sua oferenda com soberba. Levou para ofertar ao Senhor somente depois de fartar o seu celeiro, agiu com avareza. Abel deu das primeiras crias, além do mais Caim encolerizou-se. Até aí cometeu três pecados graves; que culminou com um quarto, o de matar seu irmão; e o quinto, o da mentira, omitiu ao seu Senhor . A Lei Mosaica no sexto mandamento diz: “Não Matarás”.

Os dois, agora estavam sentados, João os olhos postos no infinito, quase sussurrando falou:
-Jesus, teu Filho amado lá na praia disse a Pedro: “De hoje em diante serás pescador de homens. Mateus 4,19” O Senhor escolheu um como eu, pra fundar a sua igreja. Todo ano vens à praia comer peixe. Por isso estais aqui comigo. 


Fabio Campos   

Natal - Epifania do Senhor

No tempo em que os homens de hoje em dia, nem eram meninos. Na verdade nem eram nascidos ainda. Os natais eram celebrados, como os primeiros cristãos celebravam. Os dias que antecediam o nascimento de Cristo eram vividos com os mesmos resguardos amplamente depositados na tão venerada semana santa. Chamado Epifania do Senhor, o natal, tal qual a quaresma, compreendia inicialmente uma penitência, que ia, desde o final de novembro, até os dias dos santos reis, na primeira semana de janeiro. 

“Gloria in excelsis Deo
Et in terra pax hominibus bonae voluntatis”
“Glória a Deus nas Alturas
E paz na terra aos homens de boa vontade.”


 
Os dias  iam  muito  secos, e as  noites  abafadas.  O sertão  entendia e  já   aguardava  a  aridez dos últimos meses  do  ano,   que   se   estendia   por  sobre  as  almas  dos   penitentes.  Rumas  de  peregrinos.  Em procissão   ia,   varando   as   veredas   quentes.  Rezando   reza   cantada,  antífona   ecoava   penosamente   no   oco  da   caatinga.    Feito serpente de  fogo  rastejando  no  leito da estrada alumiavam a noite escura com as lanternas. 
Ao chegarem  à  porta  da igreja, o padre fazia a pregação do sermão.    E diria que às aflições sofridas pelos sertanejos,  era  pra  o  povo  não  esquecer   o sofrimento  de Cristo, que vindo  a este mundo, através da virgem Maria, teve que enfrentar o deserto. Ainda menino de colo, fugindo do rei Herodes.

Ao final daquela noite, um menino. Um galego sarará, magricela, chamado Manoel Eleutério que morava na barranca do riacho João Gomes, antes da Queimada do Rio, quis falar com o padre. Com tristeza nos olhos colocou-lhe: -Por que o rei Herodes tinha tanto ódio do menino Jesus? Era só um bebê? “- Herodes vivia sob constante temor de perder o trono, pois tinha se tornado rei através de muitas guerras sangrentas, massacres, assaltos e assassinatos. A Judéia antes governada pela dinastia dos hasmoneias por ele foram destronados e mortos. Os profetas do Oriente, que chamamos de reis Magos, anunciaram a vinda do Messias, o rei que o Deus dos Judeus aguardava pra seu povo. Essa notícia incomodou Herodes, que inicialmente tentou conseguir dos próprios magos, a informação aonde se encontrava o menino. Em sonho os reis do Oriente foram avisados que não voltassem até Herodes. Enfurecido o rei malvado procurou um jeito pra assassinar o menino Jesus. Decretou ordem aos seus soldados para que fossem até Belém, e toda criança até dois anos de idade, naquela data, devia morrer. A igreja honrou os pequeninos assassinados como mártires, porque morreram no lugar de Cristo, e a morte dos inocentes ocorreu unicamente pelo ódio do ímpio, a Jesus.”

“Meu São José dá-me licença
Para o pastoril dançar
Viemos para adorar
Jesus nasceu para nos salvar”


A proximidade do natal, pouco animava os meninos do Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Aguardavam com mais ênfase as tão sonhadas férias escolares. Traduzida em prolongados banhos no rio Ipanema. Seriam dias de puro desfrute do “rei da caatinga”. Onde podiam explorar a flora em toda sua pujança. E a fauna, toda em riqueza, se havia pra eles. Jogo de bola no areal da barragem, do Poço do juá, nadar no perigoso Poço dos homens. O desafio das corredeiras. Pescar no riacho do bode. Vadiar na praça, jogar ximbra, pião, ouro buscar, até se cansar. Escalariam montanhas e debaixo de suas chinelas o pó do barro das cercanias incrustaria, de tantas idas e vindas pelo sertão.

“Boa noite meus caros senhores
E boa noite senhoras também
Somos pastoras, pastorinhas belas
Que alegremente vamos a Belém”

Encarcerados nas velhas salas de aula, de paredes rudes, desbotada de cor. Sentados em dupla, nas sisudas carteiras escolares, os meninos aprendiam. Além de gramática, álgebra, retórica, noções de Latim, história e geografia havia as aulas de Catecismo, ministradas pela irmã Letícia. Devidamente trajada no seu hábito negro, aquela ovelha do rebanho divino, queria por queria inculcar nas pobres mentes pueris dos meninos do rio, tudo o que havia na bíblia sagrada. E dizia de como a gente, ao falar do presépio, lembrava só dos animais, mas era bom recordar de outros seres vivos, tão belas criaturas de Deus, que também estavam lá. As flores trazidas pelas pastoras: crisântemos. Orquídeas, rosas. O capim verdinho na manjedoura, feita do tronco de um álamo. O algodão branquinho, da manta que cobriu o menino, perfumada de alabastro. A cerca de bambu do Grajaú, a palha de coqueiro que cobria a estrebaria. 

“Estrela do norte cruzeiro sagrado
Vamos dar um viva ao cordão encarnado
Estrela do norte cruzeiro do sul
Vamos dar um viva ao cordão azul”

Lindosvaldo era menino traquino, outro dia amarrou uma lata de óleo vazia, no rabo do gato, que dona Nazilha a merendeira da escola, criava na cantina. Coitado, quase morre. Lindosvaldo era filho de Mestre Satiro, fabricador e vendedor de corda de caruá. Seu Satiro, junto com os filhos, o dia inteiro girando as manivelas, fincadas na subida do morro rumo ao Alto dos Negros, a antiga subida da Cajarana. A irmã Letícia falava da Lapinha que também se chamava presépio. “-No dia da natividade do Senhor, os pastores foram adorar ao menino Jesus. Também os animais que estavam na estrebaria adoraram: O boi, a vaca, o galo, a galinha, o burro.” Lindosvaldo queria saber: -Irmã Letícia! Também o cachorro estava lá? “–Não Lindosvaldo, o cachorro não estava.” 

“Borboleta pequenina saia fora do rosal
Já nasceu Jesus menino hoje é noite de Natal”


Conta a lenda, que o cachorro era o melhor amigo do homem. Isso vem desde o tempo da Criação. No paraíso, Adão e Eva foram por Deus, impedidos de comer do fruto proibido. Mas a serpente seduziu Eva, que comeu, e ofereceu a Adão. O companheiro da mulher foi consultar seu melhor amigo, o cão. Que o teria levado ao erro da desobediência. Ao ser expulso do jardim do Éden, Adão procurou o ex-fiel amigo, aplicou-lhe tremenda surra, tanto que o cachorro saiu danado chamando pelo irmão: Caim! Desde então o cão foi proibido de adorar o menino Jesus. 

“Adeus é tarde devemos partir
O dia amanhece queremos dormir”



Fabio Campos

Papai Noel, Vovô Não é

Já passava da décima oitava hora, mais uma tarde se ia findando. Ainda a pouco as casas haviam se enchido de ave-marias. Para alívio dos viventes, o soberano astro já se encobrira atrás dos montes. As telhas, caibros e ripas, como dedos e mãos em conchas, protegia os que sob si se abrigava. Havia um verão tão severo que o ar respirável era de uma plasticidade e acabava se tornando uma extensão dos corpos. Como se tivessem alma, aqueles tetos emanava calor. E o que era pra ser visto como metafísico acabava figurando coisa de pele, tato e olfato. Até parecia que daquelas paredes refratárias em corpos afobados e suarentos, a qualquer momento, talvez fossem sair alienígenas, monstros pré-históricos, duendes. E realmente iam.  

No leito da rua, os transeuntes iam se tornando vultos. Cópias desbotadas de si mesmos. E a tarde, antes brincalhona e colorida, sob um céu borrifado da tinta negra da noite, ia se tornando triste. Onde havia cor e luz, restavam apenas silhuetas. Os corpos - antes vivos de cores, melancolicamente se iam desbotando - de náusea e fadiga, desfigurados. Animados apenas pelo movimento, se iam. Arrastando seus donos, fardos pesados demais. E nesse arrastar-se pelo caminho, em busca dos seus destinos, iam produzindo sombras alongadas. E cansados de tanto obedecer a seus donos, iam brincar de pega nos madrigais. E corriam a escalar os muros dos quintais, tentando se esconder na folhagem dos pés de fruteira, ao longo da estrada.

Faltavam poucos dias pro natal. As casas, com seus imensos e alegres colares, e tiaras de luzes coloridas, piscavam umas para as outras. E era uma disputa engraçada pelos olhares curiosos dos passantes. Ora frívolos, ora alternados, ora compassados, competiam os piscas-piscas entre si. E as crianças sem ter do que brincar, sentadas no parapeito da pracinha acompanhava: “-Acendeu!” “-Apagou!” No começo da rua, em frente à pracinha, tinha uma capela. A fachada da igrejinha pontilhada de luzes, caladas, sérias, que pena, não brincavam com as crianças. Mortas de inveja, porque o máximo que conseguiam era a atenção dos vaga-lumes. Dava a lembrar, aos mais velhos, um imenso chapéu de um Mateu, componente do Reizado de Seu Miranda. E lá no sótão escuro da memória, do vovô, uma vela se acendia e dava pra ver e ouvir. Seu Miranda que lá vinha.

“Guerreiro cheguei agora
Nossa Senhora é nossa defesa
Ô minha gente! Dinheiro só de “papé”
Carinho só de “mulé”
“Capitá” só Maceió”

Fugindo do calor, sentados em suas cadeiras de palhinha á calçada, dona Maria, em trajes de dormir abanava-se a opulência de obesidade. Ao lado de Seu João, franzino, em mangas de camisa, tão pouco de corpo, porém muito de coração. E lá nos recônditos porões dos pensamentos, daqueles, ecoava a canção do folguedo nos antigos natais de suas distantes infâncias. Em que iam pra missa do galo, com suas duas filhas, Isabela e Verônica. De tranças e franjas. Depois do compromisso religioso, tinha que ir passear nos corrupios, um singelo brinquedo, em carrossel, movido a manivela, por tração humana, que acionava um fole. E dava pra se ouvir um melancólico realejo. Esvoaçando por entre as narinas aguçadas o cheiro bom de bolo de milho, das mãos mágicas de dona Isaura, concebido. Feito especialmente pro leilão de Nossa Senhora de Guadalupe. Seu Nôzinho levaria coberto com um pano branquinho, que lembrava cocada, que trazia um bordado de três morangos vermelhos.

E os pais dos meninos não tinham sossego, se não comprassem bolo de macaxeira e algodão doce. E lá longe o troar da zabumba, a estridência dos pratos, tudo ritmado na doce candura do tocador de pífano. Trajando calças apertadas, camisas quadriculadas, suspensórios, penteados caprichados com brilhantina ou cobertos com bonés bufantes. Nos pés, sapatos envernizados. Assim iam os rapazes flertar com as moças. Elas desfilariam pelas praças, vestidas em lindas saias godê, muito em voga nos saudosos anos cinquenta, com muitas anáguas. E apertavam o busto em corpetes que evidenciavam o colo. Na cabeça penteados ornados com laquê ou graciosos chapéus. Os rapazes inventavam falas pra dois instrumentos: o taró e o bombo.

“Mulher magra não tem bunda!
Tem!Tem! Tem que eu vi!
Mulher magra não tem bunda!
Tem! Tem! Tem que eu vi!”   

Arribada na fachada da casa paroquial, uma boca de difusora, de um serviço de som chinfrim, anunciava os banhos de nubentes que contrairiam matrimônio naquele mês. E depois o locutor colocaria na vitrola, um Long play que tocaria uma música natalina muito antiga, cujos arranjos eram ao som de harpa, e falava de alguém que pensava que “todo mundo fosse filho de Papai Noel” e que a tal felicidade fosse “uma brincadeira de papel”. Thomas, um menino de apenas quatro anos morava na décima terceira casa daquela rua. Naquela mesma noite uma espaçonave suavemente pousou na grama do jardim, iluminando com suas luzinhas coloridas o focinho do cachorro que correu latindo assustado. E fez o gato esticar-se todo encima do balaústre e piscando várias vezes, arregalou os olhos. Uma espécie de tampa de vidro se abriu e de dentro da aeronave saiu pequenos seres que mais pareciam ratos, porém andavam sobre duas patas e falavam como gente. Com muita habilidade, usando seus equipamentos, escalaram a janela do quarto de Thomas, que já os esperava, tanto que nenhuma surpresa teve ao ver os alienígenas.

O quarto do pequeno Thomas naquela noite invadido por ilustres visitantes. E muito conversaram o menino falou do que haviam motivado o chamamento de seus amigos de outro planeta, de uma galáxia tão distante para vir ao planeta terra. É que ele Thomas, tinha aniversariado fazia alguns dias. Do avô tinha ganhado uma coleção de dinossauros. Já conhecia e chamava todos pelos seus nomes científicos, sabia os hábitos alimentares de cada um, alguns eram herbívoros e dóceis, outros carnívoros e ferozes. Sabia até que punham ovos e assim se procriavam. Porém uma coisa preocupava-o, como estava perto do natal, queria que todos os amiguinhos, inclusive da escola ganhassem presentes, assim como ele. O problema, é que não acreditava que o papai Noel fosse capaz de trazer presentes para todos. Sobre o bom velhinho, sabia que vivia no pólo norte, e que o mundo inteiro enviava cartas pedindo brinquedos para crianças pobrezinhas. Os extraterrestres se foram, prometeram ao menino auxiliar o velho barbudo que morava no gelo, em atender os pedidos de presentes pros amigos do sertanejo.

Thomas naquela noite foi dormir mais tranquilo. Não porque tivesse falado com seus amiguinhos do espaço. Mas porque ganhara um DVD que falava de uma música tão interessante quanto os amigos dinossauros. Falava de um sino pequenino que batia e batia, porque havia nascido um Deus-menino num lugar chamado Belém. Foi dormir pensando: "Amanhã vou pedir a vô que me ajude a escrever uma carta, pra esse menino". Precisava urgente falar com ele.


Fabio Campos 

NATAL 2113

Um velho homem se fazia, sentado numa velha cadeira de balanço, no alpendre duma rude casinha desaprumada, lá no sopé do serrote da Camonga. A colossal “Baronesa”, do escritor Clerisvaldo B Chagas compunha o fundo dessa cena. O sol a pino, em todo seu esplendor, de raios, a tudo desnudava, tornando livre de qualquer poesia. O rei dizia que já ia o meio dia. Crudelíssimo sol, a muito estriando o seio do árido solo moreno do sertão. A craibeira semelhante a uma gigantesca mão de uma bruxa, brotada dantescamente do ventre da terra. Crispada, pedia clemência pelos seus pecados. Um carro de boi na estrada, violino rústico compondo a melodia do sertão. O carreiro fez os animais, unidos pela canga, pararem a marcha. Apoiando a vara de ferrão no chão quente, olhou pra lá. Os bois da dianteira, um fio de baba se esticando do espelho da bocarra. Sopravam das ventas hálito de mato rumino. Meneio de cabeça, e um dos bois, olhou pra lá. O cachorro, negro de cor, lá adiante parou. Tentou morder umas pulgas que lhe incomodava nos genitais. Endurecendo as sobrancelhas brancas, olhou pra lá. E Deus que a tudo assistia, olhou pra lá. Olhavam todos para lá. O homem sentado na velha cadeira de balanço, no alpendre da casinha no sopé da montanha. E era Deus aquele homem.

O homem solitário. Barba branca, de alguns dias por fazer, olhava o horizonte, na direção donde o azul do céu se ia misturar com o lago do Bode. Onde caprinos pastavam na relva, e galinhas selvagens flutuavam na superfície d’água. Olhando pra lá, Ele apenas piscou os olhos, na própria lentidão da cena. Um milésimo de segundo talvez. Foi o suficiente. Os cílios das pálpebras, mal tocaram os cílios de baixo. Sequer os olhos se fecharam, e dez gerações haviam se passado. Um século adiante era o que o calendário dali por diante dizia. E Deus olhou pra estrada. Carro de bois, carreiro, cachorro pulguento, estrada, craibeira, nada mais havia lá. Nada do que antes existia tinha mais. Porém, O Homem, ainda estava lá. Sentado calmamente a cadeira de balanço, no alpendre da casinha. O solo continuava, castigado de sol causticante, inclemente. O escritor não mais existia, porém a senhora “Baronesa” continuava lá. Em toda sua imponência, de pedra, granito, ervas, envolta de clorofila. Ainda mais rica de lendas, histórias e mistério. E o limiar do primeiro ano que dera início aquele século, talvez parecesse com aquele que culminaria com o início da primeira grande guerra, cujos jornais do mundo noticiaram: 

"28 de junho de 1914, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, o herdeiro do trono da Áustria-Hungria, pelo nacionalista iugoslavo Gavrilo Princip em Saravejo, na Bósnia, foi o gatilho imediato da guerra, o que resultou em um ultimato Habsburgo contra o Reino da Sérvia. Diversas alianças formadas ao longo das décadas anteriores foram invocadas, assim, dentro de algumas semanas, as grandes potências estavam em guerra; através de suas colônias, o conflito logo se aspalhou ao redor do planeta."

O Homem agora ia pela estrada que levava a cidade. Era dia, porém o céu que cobria o mundo se fazia plúmbeo. O ar pesado carregado de partículas poluentes era quase palpável, pouco respirável. Densa neblina de gás que anuviava as coisas todas que existiam. Cheiro forte de resíduos queimados, como se o mundo tivesse se transformado num imenso lixão. E a densa neblina cinza, escondia o céu, de um quase azul, azul sujo, encardido. Muitos elementos que no passado era abundante, passaram a ser precioso. Água era um deles. Os alimentos agora eram sintéticos. O combustível dos únicos transportes existente, os ônibus espaciais, era de origem atômico nuclear. Quando chovia, e isso só ocorria algumas vezes por ano, era chuva ácida. Água potável, só havia nos pólos da terra, no que restava das calotas polares. 

As grandes nações haviam se apossado dos territórios gelados do planeta, formando a Tríplice Aliança: Estados Unidos da América e seus aliados se apossaram do pólo Ártico. Alemanha e China, mais outras potências européias e asiáticas, se apossaram da Antártida. Os países emergentes, depois da revolução religiosa agruparam-se em dois blocos. Um deles explorava o Oceano Atlântico, a água do mar, era parcialmente dessalinizada. Do mar se sustentavam. Outro bloco, composto por países africanos, e mulçumanos do oriente médio, formavam a maior organização terrorista do planeta. Exploravam o Pacífico. As notícias chegavam ao sertão com alguns anos de atraso. A rede internacional de computadores não havia mais. Como naqueles inícios de séculos do passado, o mundo passava por mais uma revolução industrial. Os grandes rios haviam secado. As usinas hidrelétricas, por falta d'água, não funcionavam mais. A energia ainda existente era de origem eólica ou solar. 

Senhor Josevel e dona Mirian tiveram seis filhos. Belchior, Baltazar e Gaspar, que tinha três irmãs Francisca, Jacinta e Lúcia. O ano de 2113 estava terminando. Havia sido um ano muito difícil. Seu Josevel faleceu naquele ano. A família ficou amparada com os recursos que tinham. Prédios, que alugavam na cidade. E a exploração de minas de alumínio, cobre e enxofre. Instaladas num lugar inóspito. Perto de uma região no passado, chamada de agreste. Descobriram mananciais de vários metais, próximo a uma urbanidade chamada de Jaramataia. A divisão dos bens causou grave desunião entre os irmãos. As irmãs queriam reter os prédios alugados somente para as três. Sob sua responsabilidade ficara a guarda da mãe, sofrendo mal de Alzheimer, em idade avançada, e viúva. Os irmãos achavam injusta a divisão, pois as minas davam sinal de esgotamento.

O mês de dezembro, do primeiro ano do início daquele século, estava quase no fim. A uma casinha alpendrada, fincada no sopé da montanha da Camonga morava Donana e Seu Joaquim. Eles tinham uma filha única, chamada Maria. Eram devotados cristãos. Nesse tempo cristãos eram perseguidos pelos Mulçumanos. A prática da religião católica era proibida. Padres, missionários eram perseguidos e mortos. Tratados como bandidos. Missas eram celebradas as escondidas, em grutas e cavernas em lugares secretos. Os governantes recompensavam quem denunciasse o que eles chamavam de rituais. Atentavam, segundo os que comandavam, contra a lei, a moral e os bons costumes. Maria fora desposada por um rapaz chamado José. A quase menina estava grávida. Estava para se completar os dias de dar à luz. José fora embora pra São Paulo. Viajaria dizendo que só voltaria quando tivesse dinheiro, o suficiente para comprar uma casa. Carpinteiro de profissão pensava em montar uma marcenaria. Trabalhava com madeira sintética, produzida a partir de plásticos, prensado com outros materiais recicláveis. 

Lá pras bandas do por do sol. Uma estrela mais brilhante que as outras surgiu no céu. E os filhos de Seu Josevel, amigos de Seu Joaquim e Donana, quiseram ir visitar Maria que estava para ter bebê. Levariam presentes. E pegaram seus cavalos, e rumaram pras bandas do Serrote da Camonga. Um carro de boi na estrada, violino rústico compondo a melodia do sertão, tendo ao fundo magnífico por de sol. O carreiro fez os animais, unidos pela canga, pararem a marcha. Apoiando a vara de ferrão no chão, olhou pra lá. Os bois da dianteira. Fio de baba se esticando do espelho da bocarra. Soprava das ventas hálito de erva ruminada. Meneio de cabeça, e os bois, olharam pra lá. O cachorro, negro de cor, lá adiante parou. Mordendo umas pulgas que lhe incomodava, endurecendo as sobrancelhas brancas, olhou pra lá. O homem sentado a cadeira de balanço assistia a tudo. Era Deus que olhava pra lá. 

Fabio Campos