Papai Noel, Vovô Não é

Já passava da décima oitava hora, mais uma tarde se ia findando. Ainda a pouco as casas haviam se enchido de ave-marias. Para alívio dos viventes, o soberano astro já se encobrira atrás dos montes. As telhas, caibros e ripas, como dedos e mãos em conchas, protegia os que sob si se abrigava. Havia um verão tão severo que o ar respirável era de uma plasticidade e acabava se tornando uma extensão dos corpos. Como se tivessem alma, aqueles tetos emanava calor. E o que era pra ser visto como metafísico acabava figurando coisa de pele, tato e olfato. Até parecia que daquelas paredes refratárias em corpos afobados e suarentos, a qualquer momento, talvez fossem sair alienígenas, monstros pré-históricos, duendes. E realmente iam.  

No leito da rua, os transeuntes iam se tornando vultos. Cópias desbotadas de si mesmos. E a tarde, antes brincalhona e colorida, sob um céu borrifado da tinta negra da noite, ia se tornando triste. Onde havia cor e luz, restavam apenas silhuetas. Os corpos - antes vivos de cores, melancolicamente se iam desbotando - de náusea e fadiga, desfigurados. Animados apenas pelo movimento, se iam. Arrastando seus donos, fardos pesados demais. E nesse arrastar-se pelo caminho, em busca dos seus destinos, iam produzindo sombras alongadas. E cansados de tanto obedecer a seus donos, iam brincar de pega nos madrigais. E corriam a escalar os muros dos quintais, tentando se esconder na folhagem dos pés de fruteira, ao longo da estrada.

Faltavam poucos dias pro natal. As casas, com seus imensos e alegres colares, e tiaras de luzes coloridas, piscavam umas para as outras. E era uma disputa engraçada pelos olhares curiosos dos passantes. Ora frívolos, ora alternados, ora compassados, competiam os piscas-piscas entre si. E as crianças sem ter do que brincar, sentadas no parapeito da pracinha acompanhava: “-Acendeu!” “-Apagou!” No começo da rua, em frente à pracinha, tinha uma capela. A fachada da igrejinha pontilhada de luzes, caladas, sérias, que pena, não brincavam com as crianças. Mortas de inveja, porque o máximo que conseguiam era a atenção dos vaga-lumes. Dava a lembrar, aos mais velhos, um imenso chapéu de um Mateu, componente do Reizado de Seu Miranda. E lá no sótão escuro da memória, do vovô, uma vela se acendia e dava pra ver e ouvir. Seu Miranda que lá vinha.

“Guerreiro cheguei agora
Nossa Senhora é nossa defesa
Ô minha gente! Dinheiro só de “papé”
Carinho só de “mulé”
“Capitá” só Maceió”

Fugindo do calor, sentados em suas cadeiras de palhinha á calçada, dona Maria, em trajes de dormir abanava-se a opulência de obesidade. Ao lado de Seu João, franzino, em mangas de camisa, tão pouco de corpo, porém muito de coração. E lá nos recônditos porões dos pensamentos, daqueles, ecoava a canção do folguedo nos antigos natais de suas distantes infâncias. Em que iam pra missa do galo, com suas duas filhas, Isabela e Verônica. De tranças e franjas. Depois do compromisso religioso, tinha que ir passear nos corrupios, um singelo brinquedo, em carrossel, movido a manivela, por tração humana, que acionava um fole. E dava pra se ouvir um melancólico realejo. Esvoaçando por entre as narinas aguçadas o cheiro bom de bolo de milho, das mãos mágicas de dona Isaura, concebido. Feito especialmente pro leilão de Nossa Senhora de Guadalupe. Seu Nôzinho levaria coberto com um pano branquinho, que lembrava cocada, que trazia um bordado de três morangos vermelhos.

E os pais dos meninos não tinham sossego, se não comprassem bolo de macaxeira e algodão doce. E lá longe o troar da zabumba, a estridência dos pratos, tudo ritmado na doce candura do tocador de pífano. Trajando calças apertadas, camisas quadriculadas, suspensórios, penteados caprichados com brilhantina ou cobertos com bonés bufantes. Nos pés, sapatos envernizados. Assim iam os rapazes flertar com as moças. Elas desfilariam pelas praças, vestidas em lindas saias godê, muito em voga nos saudosos anos cinquenta, com muitas anáguas. E apertavam o busto em corpetes que evidenciavam o colo. Na cabeça penteados ornados com laquê ou graciosos chapéus. Os rapazes inventavam falas pra dois instrumentos: o taró e o bombo.

“Mulher magra não tem bunda!
Tem!Tem! Tem que eu vi!
Mulher magra não tem bunda!
Tem! Tem! Tem que eu vi!”   

Arribada na fachada da casa paroquial, uma boca de difusora, de um serviço de som chinfrim, anunciava os banhos de nubentes que contrairiam matrimônio naquele mês. E depois o locutor colocaria na vitrola, um Long play que tocaria uma música natalina muito antiga, cujos arranjos eram ao som de harpa, e falava de alguém que pensava que “todo mundo fosse filho de Papai Noel” e que a tal felicidade fosse “uma brincadeira de papel”. Thomas, um menino de apenas quatro anos morava na décima terceira casa daquela rua. Naquela mesma noite uma espaçonave suavemente pousou na grama do jardim, iluminando com suas luzinhas coloridas o focinho do cachorro que correu latindo assustado. E fez o gato esticar-se todo encima do balaústre e piscando várias vezes, arregalou os olhos. Uma espécie de tampa de vidro se abriu e de dentro da aeronave saiu pequenos seres que mais pareciam ratos, porém andavam sobre duas patas e falavam como gente. Com muita habilidade, usando seus equipamentos, escalaram a janela do quarto de Thomas, que já os esperava, tanto que nenhuma surpresa teve ao ver os alienígenas.

O quarto do pequeno Thomas naquela noite invadido por ilustres visitantes. E muito conversaram o menino falou do que haviam motivado o chamamento de seus amigos de outro planeta, de uma galáxia tão distante para vir ao planeta terra. É que ele Thomas, tinha aniversariado fazia alguns dias. Do avô tinha ganhado uma coleção de dinossauros. Já conhecia e chamava todos pelos seus nomes científicos, sabia os hábitos alimentares de cada um, alguns eram herbívoros e dóceis, outros carnívoros e ferozes. Sabia até que punham ovos e assim se procriavam. Porém uma coisa preocupava-o, como estava perto do natal, queria que todos os amiguinhos, inclusive da escola ganhassem presentes, assim como ele. O problema, é que não acreditava que o papai Noel fosse capaz de trazer presentes para todos. Sobre o bom velhinho, sabia que vivia no pólo norte, e que o mundo inteiro enviava cartas pedindo brinquedos para crianças pobrezinhas. Os extraterrestres se foram, prometeram ao menino auxiliar o velho barbudo que morava no gelo, em atender os pedidos de presentes pros amigos do sertanejo.

Thomas naquela noite foi dormir mais tranquilo. Não porque tivesse falado com seus amiguinhos do espaço. Mas porque ganhara um DVD que falava de uma música tão interessante quanto os amigos dinossauros. Falava de um sino pequenino que batia e batia, porque havia nascido um Deus-menino num lugar chamado Belém. Foi dormir pensando: "Amanhã vou pedir a vô que me ajude a escrever uma carta, pra esse menino". Precisava urgente falar com ele.


Fabio Campos 

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