O Avô de Deus.

Benedito Joaquim Gabriel Lázaro Souza da Costa. Qualquer um que tenha um nome desses, dar a tratar-se de alguém muito especial. Diante do que será dito, tiremos nós mesmos a conclusão. Nordestino que se preze, tem uma história de vida que mistura nó e destino. Com este sertanejo, de origem humilde - negro até no nome - e pobre de coração, não podia ser diferente. Pra começo de conversa teria nascido, pelo menos, duas vezes, e em lugares diferentes. Possuidor que era de dois registros de nascimento. Um, do dia 05 de abril de 1973, em São Raimundo Nonato, no Piauí. O outro do dia 13 de agosto de 1975, em Monte Santo, na Bahia.

A dupla certidão natalícia teria sido ocasionada por eventos distintos. Seu João Lourenço e dona Lídia Cristina, seus pais: Ele baiano, ela piauiense, se conheceram numa romaria que fizeram a cidade de Santa Brígida na Bahia. Foram morar em Monte Santo, onde nasceria Benedito.  Seu João, a época com apenas dezoito anos, teria se alistado no serviço militar, e fora liberado da obrigatoriedade, pelo fato de estar casado e ser pai, tão jovem. Dois anos de seca na região acabaria por empurrá-los pro Piauí.  Outra vez, diante de outro alistamento, desta feita nas frentes de emergência da Sudene. Pra alistar-se tinha que ter filho natural daquele estado, daí o outro registro de nascimento.

Benedito, seus pais e mais dez irmãos viviam de roça, num casebre na zona rural de Monte Santo. Aos onze anos de idade o menino ingressou no colégio Sagrado Coração de Jesus fundado por freis capuchinhos que faziam votos de pobreza, vestiam hábito de franciscano, com um barbante branco amarrado na cintura, cingindo-lhe os rins, uma enorme cruz pendurada  no peito e tinham o cocuruto da cabeça raspado. Dedicou-se a estudar a história de fundação do município onde nascera. O velho João Dias de Andrade Neto, de família tradicional, lhe contou como Monte Santo tinha surgido. Dizia ele que em 1775 a vila não passava de uma aldeia indígena. E por essa época chegaria o frei capuchinho Apolônio de Todi, convidado pelo fazendeiro Francisco da Costa Torres seu tetra avô, a realizar uma missão de penitência na fazenda Lagoa da Onça. Na ocasião uma grande seca assolava a região. Devido à escassez de água no local, o frei decidiu não realizar a santa missão ali, transferindo-a pra outra localidade denominada Piquaraçá nome indígena. Ao tocar uma grande pedra ao sopé de uma montanha, milagrosamente o frei viu surgir um olho d’água. Escalando a serra o missionário ficou impressionado com a semelhança daquele lugar com o Monte calvário de Jerusalém da Judéia. Junto com o povo que o acompanhava, rezou uma missa, e resolveu rebatizar aquele lugar pelo nome de Monte Santo.

Contando com a ajuda dos sertanejos que estavam na missão, naquele monte, o frei capuchinho ergueu uma capela de madeira.  Usando toras de aroeira e cedro ergueu diversas cruzes em espaços regulares na seguinte ordem: a primeira dedicada às almas. E as sete seguintes representariam as dores de Nossa Senhora. Outras catorze lembrariam o sofrimento de Jesus na sua caminhada para o calvário no Gólgota. Em 1790 o santuário rupestre, foi reconstruído em alvenaria. Tornaria local de romaria, ainda naquele ano elevada a categoria de Freguesia por decreto de Lisboa, recebendo o nome de Santíssimo Coração de Jesus de Nossa Senhora da Conceição de Monte Santo.

Benedito já um rapaz feito saiu do convento como seminarista. Resolveu passar um tempo na terra da sua mãe, São Raimundo Nonato. Conheceu Afrânio Dias Andrade o maior fazendeiro da região. Em plena semana santa, visitou uma propriedade rural do homem influente, onde realizou um retiro espiritual, que começou no início da quaresma e terminou no domingo de páscoa. Visitou o parque nacional da serra da capivara, e ficou encantado com o que viu. Inscrições e pinturas pré-históricas em cavernas. Ficaria quatro semanas isolado da civilização, dentro do sítio arqueológico, num lugar conhecido como caverna do eremita. Milhares de anos antes naquele lugar, vivera um ermitão, que construiu de pedra uma cama, uma mesa, um fogareiro. A vida de privações no convento em muito lhe ajudaria a sobreviver na indomável caatinga. Naquele ambiente inóspito teve a oportunidade de conviver com serpentes, morcegos e saguis. Durante aqueles dias experimentou uma paz espiritual tão intensa, que teve plena certeza de ter tido contato com o criador.  

Benedito constataria que a história de São Raimundo Nonato, se confundia com a história de tantos e tantos outros municípios nordestinos. Onde antes vivia uma tribo de índios Tapuias da grande linhagem dos pankarerés. Daí chegaria colonos e religiosos, que entrariam em conflito com os nativos. O então governador Dom João Amorim Pereira, da capitania do Piauí ordenou ao comandante José Dias Soares que conquistasse a região. A ferro e fogo se preciso fosse. E distribuísse com seus comandados as terras conquistadas. Desde então conta a história que se iniciou um ciclo de prosperidade na região, ampliando-se a lavoura e criação de gado. A construção de uma praça, uma igreja sob o auspício de São Raimundo Nonato, e a organização de uma feira semanal, aos sábados, no qual lavradores e colonos comercializavam seus produtos.

Ao completar trinta anos, Benedito, já havia largado o hábito. Já não era mais missionário. Naqueles últimos anos, já havia sido vendedor de livros, palhaço circense, ventríloquo no meio da feira, vendedor de unguento a base de óleo de aroeira. Acompanhou uma trupe, virou ator e comediante. Foi poeta: escreveu centenas de livrinhos de cordel. Andou o nordeste todo de carona, a pé, de bicicleta. Acompanhou milhares de romarias. Pagou centenas de promessas indo a lugares onde havia missões com nomes de santos: santa Bárbara do Oeste, Santa Brígida, Flexeiras, Juazeiro do Norte, Ingazeiras, Cabrobó, São José da Coroa Grande, São Miguel dos Milagres, Canudos. Varreu o raso da Catarina, a chapada Diamantina, o vale do Cariri, o planalto da Borborema. A cada lugar, à constatação de como os lugares haviam nascido: duma igreja, da catequese de missionários, da crueldade dos colonos, e desbravadores. Da submissão dos nativos ao trabalho escravo com a perda de suas terras pros governos e conquistadores.

De repente Benedito aquentou-se num canto. Santana do Ipanema o acolheu, ali conseguiu o cargo de professor de religião, numa escola que tinha nome de padre. Também se interessou pela história do surgimento, daquele lugar, donde então se encontrava. Aonde tinha encontrado guarida. Do terraço da pensão Santanense de dona Maria Valério. Olhando lá pro alto do serrote do Pintado, teve uma visão. E tomou uma decisão, disse a si mesmo: “-Vou fundar uma igreja!” Adotando o segundo nome de batismo, auto intitulou-se Pastor Joaquim, sua igreja se chamaria: Igreja do Avô de Deus. Seu templo, um antigo prédio onde fora um cinema, ficava a poucos metros da igreja matriz de Senhora Santana. Enquanto pregava o pastor Joaquim pra seus vinte e poucos seguidores, os cantos de louvores ecoavam na ex-sala de projeção. E como gostava da história dos lugares, seria bom recordar ao pastor, que no ano em que nascera, seu templo não passava duma sala onde se viam filmes. Onde jovens como seus pais, apaixonados assistiam: “Dona Flor e Seus Dois Maridos.”


Fabio Campos

O Barão e O Disco Voador

Naquela segunda-feira à tarde, resolvi ir à casa do visconde de Sinimbu. Sentia quão era bom, e como, fazia-me bem estar lá.  Não exatamente pela companhia do Lorde. O que me fazia tanto bem era tão somente estar naquele lugar. A cada vez que ia mais e mais consolidava o que eu sentia.

Não me ocorria, ter estado lá alguma vez, pela manhã. Porém era muito provável, que algum dia, tenha ido, ao alvorecer. Muito embora a obrigação, o dever a cumprir, acabaria negando a oportunidade de contemplar a paisagem.  De dar-me o direito de perder tempo admirando as coisas corriqueiras que se desfilavam a cada momento a minha frente. De modo que a manhã, jamais causaria a impressão que o vespertino imprimira. Como se nos fosse negado o prazer de gastar o horário da manhã com o descompromissado compromisso duma visita.

Como se as primeiras horas cobrassem dos seres domésticos, preocupação com as coisas a serem feitas. Tinha o período matutino, essa capacidade incrível de furtivamente furtar a atenção pros afazeres. Em especial, no miolo da semana, os denominados dias brancos. Não permitia a um senhor de engenho tamanho desperdício, de contemplar a beleza dum amanhecer. Sendo dele próprio cobrado, inexorável acompanhamento dos trabalhos. Às ordens a serem dadas aos feitores que acompanhavam os escravos que iam pro desfrute dos coqueirais, era de muito mais importância. Ouvir dos capatazes que supervisionavam os trabalhadores no plantio de cana-de-açúcar que tantos negros haviam fugido. E de outros tantos safos dos trabalhos na olaria. E saber sobre quantos teriam morrido de maleita porque passavam dias a fio dentro da lama. As cantigas cantadas nas matinas vindas da senzala, carregadas de sortilégios de entidades da mãe África.  Era o modo de despedir-se do preto velho, morto a mais de uma semana. Os negros andavam cheios de angústias. Arredios com seus mandantes. E a noite o baticum dos tambores ecoava na mata num choro, lamento.      

A casa dava o lado direito pro mar, muito lá adiante. De onde nascia, o rei de luz e calor. Ao realizar sua parabólica, tocava os gradis do jardim, os oitões. O esplendor de construção erguido num platô cujas portas e janelas frontais, olhavam pra um chapadão, emaranha de tantos tons de verde. Donde um dia braços humanos de negros e brancos abriram picada com característica de vala, e varou toda gleba. E sobre ela assentaram bitolas e grampos que sustinham vergalhões e deu-se estrada de ferro. O trem passava, as janelas olhavam: do trem pra casa, da casa pro trem. A construção de dois pavimentos tinha escadaria frontal que acessava um vão, circundo de parapeito. Três magníficas janelas de lado a lado ornavam o frontispício. Iam lá em cima, e desciam em portões de ferros em estilo gótico. Duas letras: “V.S.” uma na folha esquerda e outra na folha direita do portão, lá adiante do pomar amelhado de frutíferas. A porta central acessava a sala de estar. O piso de madeira untado de azeite, jamais permitindo, ao andar, que o peso do corpo fizesse ranger o lastro.

O visconde fora pra Europa, ter aulas de baruel e orfila. Dom João Lins Vieira Cansanção, apesar do nome, e dos pomposos títulos, era um homem novo, nem trinta anos tinha ainda. Desta última viagem a Paris e Alemanha voltaria à terra natal com o título de barão. O filho do capitão Manuel Vieira, formado em Direito pela Academia Jurídica de Olinda, gostava da vida na província.  Das noitadas de festas que seus pais promoviam toda vez que volta de férias dos estudos nos estrangeiros. À noite, de sua casa dava pra ver as luzes dos lampiões do cais do porto de Jaraguá, lá na vila de Maceió. No pavimento inferior da casa ficavam os aposentos da criadagem, a dispensa, e a cozinha que tomava toda a extensão do lado leste do sobrado. A boquinha da noite farta refeição era providenciada para os convivas do barão, que estava pra chegar. A preta velha estava apreensiva, ficara sabendo que seu filho havia fugido. Não entendia o que se passava na cabeça daquele moleque. O boato da proclamação da libertação dos escravos, pela princesa Isabel, já se espalhara feito rastro de pólvora. Era só ter um pouco mais de paciência. Afinal o visconde era simpático a abolição. O capitão do mato saiu no encalço do negro, por conta própria, por puro ódio aos daquela raça.

Bela noite vaporosa e quente se havia. Uma chuva leve tinha molhado o mato ao cair da tarde liberando um cheiro bom de capim fresco. Um enfileirado de tochas acesas alumiava o terraço desde o portão de entrada até a escadaria que acessava o frontispício do imponente casarão colonial. Os pirilampos faziam a festa. Tudo ali, naquele momento, em muito, lembrava um ritual de casamento havaiano. Muito embora nenhum cerimonial de núpcias estivesse pra acontecer, tão somente aguardava-se a chegada do visconde, que chegaria ainda naquela noite.  Na companhia de lindas donzelas, os convidados bebiam vinho no terraço. Deles preferiam passear pelo jardim. Ao som de um quarteto de músicos, que tornava tudo ainda mais alegre. Os mais velhos preferiam jogar gamão e pôquer na ante sala. Donde se ouvia leves estalos de língua ao deguste de modestas doses de uísque, vinte anos envelhecido. Fios de fumaça azulada saiam dos charutos subiam, e subiam. Indo impregnar de fumo e nicotina o lustre de cristal pendido do teto. Uma pintura, a óleo, de busto do barão olhava sereno pra outro quadro, duma gravura náutica na parede do lado oposto. Numa mesa enorme com forro branco, requintados petiscos. Um leitão jamais tocado parecia dormir sobre a bandeja, ornado de frutas e legumes. O capitão providenciara para a chegada do visconde barão  a queima de fogos de artifício. Porém nada daquilo aconteceria. Ao aproximasse dali, o barão liberou o cocheiro. Passou a conduzir a carruagem e na companhia de algumas meretrizes trazidas de Paris, ganhara o caminho da praia. Amanheceram bêbados e nus. Aos gritos, recitavam poesias em francês. Os nativos que  a tudo presenciara batizariam o local de praia do francês.

A igreja do Santo Rosário estava lotada. Naquela ensolarada manhã de domingo celebrava-se a missa da páscoa. Quinze dias, exatamente duas semanas, separava aquela cerimônia clerical, do episódio a beira mar. O solene som do órgão solfejava cânticos, o santo ofício. Padres, bispos e presbíteros em seus paramentos. Sentados diante do altar, distribuíam-se em meia lua, conforme a hierarquia, do centro para as pontas. O tilintar do castelo batendo nas correntes do turíbulo, o cheiro de incenso perfumando toda a nave, a assembléia. O coroinha segurando a franja do véu umeral, a reta guarda do sacerdote, enquanto era incensado o altar. A mitra apontando pra cúpula eclesiástica. O recital, os cânticos tudo em latim pronunciado. De repente, lá na porta da igreja, uma figura grotesca surgiu.  Era o capitão do mato.

Aos gritos de “-Senhor Barão!” entrou na igreja. Em vão tentaram interpô-lo, porém pararia somente aos pés do barão. Lívido de espanto, assim como toda a igreja, Dom João viu o terror nos olhos daquele seu empregado. O rosto crispado de medo, relatou-lhe o seguinte: “-Meu senhor! Estive no encalço dum negro fujão. A dois dias atrás, o encontrei. Era por volta das três da tarde quando o coloquei sob a mira da minha espingarda. Eu ia atirar, quando  do céu apareceu uma grande carruagem de ferro, sem cavalos, nem cavaleiro. Um facho de luz de lá saído, desceu até o negro, e sugou-o pra lá dentro. E A imensa nave sem vela que flutuava no ar, se foi!” Dito isso desmaiou.

Duzentos anos se passaram, e a nave espacial voltou. Mansamente veio vindo, veio vindo, e pousou ao lado da casa do Barão de Sinimbu. A aprazível casa do primeiro ministro da justiça, pioneiro em defesa do ensino primário e secundário patrocinado pelo governo. Depois de sua morte cedida como espaço para os professores se reunirem.


Fabio campos      

A Pedra, A Estrela de Monalisa

Havia um quase final de quaresma. Manhã de domingo, não muito a se fazer. Era sempre assim, a muito tempo era assim. Demorar-se um pouco mais na cama. Dava para ouvir o mar. No quarto, sob os lençóis, dava para ouvi-lo. As ondas quebrando na praia. Aquele era um dia bom pra pescar.

Pedro estava em casa. Já era casado, e pai de família. A muito deixara para trás a vida de solteiro. Ultimamente era assim, bastava ir pro alpendre dos fundos da casa, começavam as reminiscências. Conhecera e casara com uma jovem, cabocla de vasta cabeleira negra, que se derramava para além do colo, se encantara por aqueles olhos de mel, os braços longilíneos. A leveza da corsa no andar. Pelo menos dez anos mais jovem que ele. No entanto jamais se incomodara com a diferença de idade. Já os cabelos ficando grisalhos e as primeiras marcas de expressão no rosto, os músculos dando sinal de cansaço. Lembrava com carinho do tempo de namoro. A moça morava no Sítio.  A grande família do Lajedinho dos Morais o acolhera. Tão bela era a vida entre os camponeses. 

A propriedade rural, uma rotina nada leve. Plantar e semear na prosa, cheia de interjeições, colher e descascar, poesia, e exclamações. E se tinham imprecações também tinha a esperança na ajuda da virgem Santíssima. A lida com as coisas do campo embrutecia corações, calejava as mãos. Pedro era homem letrado, até então pensava que só tinha pedra no nome. Mão de seda, nas divagações metia-se a debulhar espigas de versos. De posse dum facão punha-se a pinicar palmas cheias de espinhos, e farpas verbais, num balaio trançado, adjetivado de cipó. Enquanto gemiam as cordas duma viola numas mãos analfabetas de partituras.  O pai da moça gostava de ouvir versos, ainda que salpicados de lama, com cheiro de bosta de boi. E iam os olhos lá longe onde umas moitas de mato verde não tinham planos pro futuro, nem pronomes possessivos como o milho e o feijão. As horas voavam e pipilavam no recitar de poesias de cordel, e os versos sorriam e  faziam os olhos sorrir nas histórias de Pedro Malasarte e Cancão de Fogo. História que trazia bem pra ali, pro meio do terreiro um rei dos tempos dos castelos medievais. Chegava num belo cavalo branco. Seu Malaquias pedia pros meninos providenciar um bocado d’água pro moço, um banco onde pudesse se sentar. Ele porem não se demoraria tinha uma besta-fera pra caçar, resgatar uma menina dos cabelos de ouro, que havia sido perseguida e raptada. Um combate colossal estaria pra acontecer. E tinha tudo pra terminar com um final feliz. Pedro depositava toda sua esperança no desfecho.  O velho Malaquias sempre perdia a melhor parte, acabava arriando de tantos tragos de cachaça. O casal de namorado, enamorados davam-se em beijos e abraços.

A casa era quase silêncio. Não fosse a porta do quarto soltando um gemido de insatisfação, tendo que largar o repouso com preguiça. Monalisa, a filha caçula de Pedro se acordara, esfregando nos olhos um “-Benção pai.”, Sumiu dentro do banheiro. Pedro continuava no alpendre, de pé olhava pro céu.  E seu eu, foi ter uma conversa, de pensamentos e olhares, com as nuvens. E lá estava o temível dragão, voltando do passado.  Sendo seguido pelo príncipe no seu cavalo branco. Os cabelos de ouro da mocinha ficaram prateados. Enquanto seu vestido de noiva, como se tivesse perdido um fio na bainha, ia puxado por um cisne que voava pro horizonte. Na pedra do lajedo, pela primeira vez amou Maria. Não sei o que se passava em seu coração, sobre o marmóreo lajedo do Lajedinho chorou suas lágrimas. Talvez porque a mãe teria dito pra casar virgem. E acabaria molhando de vermelho, o verde esmorecido das catingueiras. E ia a chuva indo lamber a poeira do sertão, que de tão fermentada acabava liberando aroma adocicado de tapera úmida. A casinha de taipa, velha e rachada. Coberta de palha, soltava pedaços do reboco que mais pareciam tacos de beiju. E o negrinho filho da mucama, metia na boca e comia como se fosse fino manjar. As narinas fantasiavam o perfumo duma peixada à moqueca, cozido na panela de barro, servido na telha. Peixe criado no fundo do barreiro cuja carne punha gosto de terra na boca.

As mãos de Pedro, com os dedos esfregava a pedra do anel de formatura. Daí sentiu uma dor. Tão fina, que teve a mais lúcida certeza de ter sido transpassado por uma lança, que lhes atravessou o baixo ventre indo sair na virilha. Instintivamente dobrou-se na posição fetal. Olhou pro chão esperando ver sangue, nada. Onde estava seu algoz? Nada. A dor crudelíssima persistia, tombou. As vistas davam sinal de escurecimento. Ó quão tamanha dor que nunca sentira! O ar passou a ser o bem mais precioso, no entanto lhe fugia. Batimentos alterados. Precisava preparar-se pro pior. Minaram-lhes as forças. O céu ficou lilás, severo, inquiridor e acusador. Talvez um século tenha se passado, em apenas alguns segundos. Sentiu que alguém se aproximava. Um par de pés metidos em pantufas verdes de cara de sapo surgiu no seu campo de visão. “-Pai?! O que o senhor tem?”  A voz de Monalisa naquele momento soou como a de um arcanjo. Acordou no hospital, com um diagnóstico: pedras nos rins.

A areia da praia, por algum motivo, lembrava Abraão. Como era bom andar na areia. De pés descalços, sentir as ondas lavando entre os dedos. Levando a areia deixando sal. “-Pai! Tira uma foto minha naquelas pedras. -Não são pedras menina, são corais.” A brisa batendo no rosto, os corpos, todas as coisas banhadas de sol.  A maresia, cloreto de sódio pra pele, pros cabelos. E a gente que tanto de sal tinha no sangue, no suor, na lágrima, mais salgado ficando. De vez em quando, olhava pra trás, e a vila, ia ficando pequenininha. Parecendo a terra de Lilipute, enquanto os coqueiros viviam seu momento de Guliver. As casas fundindo-se numa cromátide imperfeita, irregular. O farol, peça perdida de um xadrez, encimado no meio da mata atlântica. Os pescadores lá longe, formigando uma jangada pra dentro do mar.  “-Olha Pai! Achei uma estrela! Podemos levar pra casa?”

Permitiu levar, pensando que era como uma pedra, um fóssil. Muitos anos se passariam até entender o que era um equinodermo. E que as estrelas-do-mar apesar do corpo duro de cálcio, tinha vida e se locomoviam usando seus “braços”. No dia seguinte quando a menina Monalisa se acordou sua estrela não mais estava no meio dos brinquedos, tinha ido embora. Pela fresta da porta ganhou os fundos da casa, o quintal de cerca não foi empecilho. Foi juntar-se as suas irmãs de constelação oceânica, na esplendorosa galáxia marinha.  


Fabio Campos

Os Quintais e As Luas




A casa. De fachada simples, quase sem eiras e beiras, tinha janela e uma porta, e três cômodos: sala de estar, um quarto e a cozinha. Aos poucos meu pai foi aumentando, pois o quintal era tão grande que ia até o Largo São Francisco, que mais tarde viria a ser a Rua Marinita Peixoto Nóya. Dali avistava-se perfeitamente o Largo do Maracanã, e a ladeira que subia até o cemitério Santa Sofia. Assim, quando morria alguém, dos fundos da minha casa, dava pra ver o cortejo subindo, subindo, até chegar ao Quinto das Tabuletas. A cisterna que tomava parte do nosso quintal foi demolida, pra dar lugar a mais três cômodos. A cozinha remodelada e ampliada. Outros dois cômodos quartos dos meninos e das meninas. Entre a nova cozinha e o quarto dos meus pais, acabaria ficando uma espécie de clarabóia que anos depois mudaria numa área verde. Antes disso ocorreu o episódio de um ladrão que entrou na nossa casa.

A história do tal furto, contaremos com brevidade porque não é a desventura de um reles larápio o ponto de convergência da nossa história. Foi num dia que Francisco, o primogênito, que embora já houvesse casado, naquela noite resolveu dormir em casa dos pais. Já ia alta a madrugada, pelo quintal do vizinho, o gatuno, sem dificuldade alcançou a clarabóia. Entrou pela escadinha que Severino e Seu Zé Benjamin usavam para encher a caixa d’água do banheiro com água do Panema, trazida em ancoretas no lombo de jumento. Andou pela casa toda, no entanto levaria consigo, o relógio, uma corrente de pescoço banhada a ouro, a carteira, a calça e os sapatos do meu irmão. Já ia indo embora, e desistiu de levar a calça, deixou-a na escada. Largou também a carteira somente com os documentos.

A casa da minha mãe nos dias que se sucedem passou por uma reforma. Já estava mais do que na hora de uma recuperação na sua infra-estrutura. A última que lembro, tinha ocorrido a cerca de quarenta anos. Foi a poucos dias da revolução de 64. Naquela época notícias a uma cidade como Santana do Ipanema, encravada no sertão nordestino, chegavam através do telégrafo. A agência dos Correios, naquele 21 de março, recebera a notícia que os paulistanos tinham realizado na metrópole brasileira, a grande “Marcha da Família com Deus”, que reuniria cerca de quinhentos mil pessoas, manifestavam pela lei e pela ordem, e contra a transformação do Brasil numa república comunista do tipo adotada pelo ditador da ilha de Cuba, Fidel Castro. As Forças Armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica, foram para as ruas, invadiram palácios de governos estaduais, marcharam contra as universidades e reprimiram com vigor e veemência os dissidentes políticos, taxados de golpistas e comunistas. Muita gente foi presa: intelectuais, escritores, artistas e políticos da linha de esquerda. Muitos deles foram deportados, outros conseguiram asilo político em países vizinhos, ou encontraram guarida em países da Europa e na América.

Em Santana do Ipanema, a revolução não passaria em brancas nuvens, também tivemos manifestantes nas ruas. Assim que a notícia da revolução se espalhou os estudantes foram pras ruas. O jeep da polícia realizou várias batidas, prendeu alguns boêmios, vários estudantes, e um professor. Alguns prédios públicos foram depredados e pichados. O prédio da perfuratriz ganhou um símbolo nazi-facista a suástica alemã, uma mão com o dedo polegar içado, e os dizeres: “Fora Comunistas!” Manifestantes invadiram o posto da Coletoria Estadual. Móveis foram atirados no leito da rua, e queimados, juntamente com diversas pastas e documentos. Ainda naquele dia, da capital chegou um pelotão da Infantaria Motorizada, soldados do exército que teriam feito uma batida na cidade sitiada. Composta de dez homens, a guarnição trajava farda de cor cáqui, coturnos de cano longo, fuzis com baionetas e capacetes em forma de bola, o que possibilitaria o pejorativo apelido de “soldadinhos de cuia”. A varredura incluía revista a prédios públicos, escolas, estabelecimentos comerciais e mesmo algumas residências. No cassino "A Lira d'Ouro" ao se negar ser revistado meu pai foi preso. Nesse tempo era banqueiro de jogos de azar, vivia do carteado. O farmacêutico Seu Caroula, compadre de meu pai, não fazia muito, havia sido nomeado delegado. Teria conseguido um salvo conduto, para que ele fosse posto em liberdade, ficando sob sua custódia. Mas só depois de ter ficado preso por uma noite na Cadeia Pública.


Feng Shui e Aruwana. E tinham uma história pra contar. Pra tentar descontrair e possibilitar amabilidade, perguntei o que significavam seus nomes. O “Clamor do Vento e da Água” disse o chinês. “O que tem a “Língua-Dura-Como-Osso” falou o índio. O chinês se iniciou no que tinha a dizer; “Amigo, somos viajantes, andarilhos pelo mundo. Viemos aqui trazer uma revelação: todo lugar no planeta tem uma vibração, libera uma energia positiva ou negativa. Se uma edificação é erguida próximo ao sopé duma montanha a energia se acumula, numa construção próxima de um rio haverá energia em constante movimento. No caso desta casa, construída próximo a um templo de oração as vibrações positivas se expandem num raio de cem metros. Todos os que nascem ou nasceram neste local estão ou foram revestidos desta energia. No entanto caso se afaste, ou vão pra longe precisam voltar com certa frequência aqui, para renovarem esta energia, que vai se gastando ao longo do tempo, até se acabar e passa a acumular no corpo a energia contrária, a negativa. Dessa energia divina é que dependem as suas, as nossas realizações pessoais, o encontro consigo mesmo, a paz, a tranquilidade interior.

E chegou a vez do índio falar. “Amigo, venho de uma tribo politeísta. Meu povo acreditava em Cinco deuses: Hotí deus do fogo; Hatí deus da terra; Watí deus da água, Hér deus do Ar, Thor deus do trovão. Certo dia chegou na nossa aldeia, um homem de longas vestes pretas, chapéu preto, uma cruz pendurada no pescoço. Ele falou de um único Deus em quem devíamos acreditar. Falou da importância da oração. Não dei valor a nada do que ele disse, além do mais disse-lhe palavras duras, daí ganhei o apelido de “Língua-Dura-Como-Osso”. E por castigo fiquei mudo. Num sonho fui visitado por um profeta que me perguntou: “Aruwana! Que rei começa com quinhentos e já no meio da vida só tem cinco? Tens até a quinta lua pra responder. Passei quatro luas tentando encontrar a resposta. Quando clamei a Deus, Ele me respondeu, Aruwana, o rei que tem quinhentos no começo e cinco no meio é o rei Davi. Então minha língua se soltou. E até hoje sou o que sou.”