UMA ALMA NO ESCURO (9º Episódio da saga T.F.)



Ninguém entendia o que estava acontecendo. Talvez não precisasse. Quando se está em determinadas situações, algumas coisas se fazem necessário desconsiderar, se quisermos ficar em paz com a consciência. Marcos perguntara certa vez a seu avô, se lá em cima, havia a divisão do dia, entre claro e escuro, como havia aqui. Respondeu que dependia de alguns eventos, e tentou, embora não convenceu muito, explicar da melhor forma. Tinha medo que o menino ficasse fissurado em ciência. A sala onde estava acontecendo à reunião, disse: Não dava pra ouvir nem barulho. Nem mesmo das falas que lhes saiam das bocas. Todos usavam fones de ouvido, pois era só como conseguiam entender os idiomas de cada planeta. 

A frieza do branco gelo da sala foi quebrada com a entrada dum gato. De onde apareceu aquele gato de rabo e focinho queimados? Ninguém sabia. Sabiam, porém, que era um intruso. Não reivindicou um lugar pra sentar, simplesmente ficou andando pelos cantos. E era sobre as quatro patas que andava. Sondava o ambiente como se já estivesse estado ali outras vezes. E agora, apenas conferia se tudo estava como antes. O príncipe Crawell do Planeta Vermelho, o anfitrião. O que presidia a reunião, ao dar fé da presença do inconveniente felino, ordenou aos guardiões que o retirasse de lá.

Uma menina muito estranha, metida num tubinho de plástico, cor de rosa, ocupava a cadeira logo ao lado da do príncipe. Tinha um chapéu muito grande também rosa que cobria parte do rosto. A aba possuía dois furos na frente por onde ela conseguia olhar. De seu rostinho afilado só dava pra ver, o queixo, um pouco das suas bochechas róseas, a boca vermelha que era muito pequena e os cabelos feito macarrão parafuso, tocavam seus espirais no ombro. Ao perceber o gato sendo arrastado por dois gorilas enfardados, pelo salão, de piso encerado e limpo, justo aquela boca fez: “Oh!” O brilhoso piso, refletia fielmente o cinzento do pelo do bichano, que a menor resistência oferecia aos brutamontes. O príncipe entendeu a expressão de Charlote, era esse o nome da pequena. Levantou a mão direita formando um éle com o braço e antebraço. Imediatamente os guardas interromperam o traslado do folgado. E ouviu-se a ordem para que o estrangeiro se apresentasse. E dissesse, para que e porque estava ali, se não fora convidado.
  
O pintor mais perfeito do mundo, naquela tarde estava ainda mais inspirado, com seu cavalete de mármore escalou até aonde os pássaros suavemente bailavam. Arriscou preludiais pinceladas ao ocaso, emagrecido, definhado no horizonte, ia a luz pra acabar desmaiando, bem lá no cantinho doido do fim do mundo. E as águas do riacho deliraram debaixo dos coqueirais, o capim elefante preguiçosamente empurrara com os ombros as fadigas das manhãs, com uns restos de estrelas que ficaram se balançando nos varais de ciranda. Pra voltarem depois loucas cheias de lua. Enfadadas de tanto namorar os lobos, as ninfas, e odaliscas bêbadas de sono queriam tanto dormir. O terceiro menino viu quando o míssil FASHALL explodiu. Foi fantástica hecatombe. O mundo zumbiu assumindo suas ruínas. O deslocamento do ar fez as paredes do livro sacudirem as folhas, algumas foram arrancadas com a violência do estrondo. Chamuscara de fogo a beirada de algumas páginas. O menino jurou de pés juntos que viu Tagor se desintegrando. O tecido epitelial se soltando do corpo, ficando na carne viva. Em milésimos de segundos se decompondo. Os dentes expostos num sorriso macabro, o crânio descarnado, os cabelos se desprendendo do couro cabeludo, o globo ocular caindo da caixa craniana. Cada fibra muscular, cada osso do seu corpo, virando pó. Tagor era o retrato da morte. 

A máquina era simplesmente perfeita. Uma montanha de aço inoxidável e ligas metálicas, painéis de luzes coloridas a contrastar com a pedra da gruta. Combinava, no entanto, com as vestes prateadas dos alienígenas. Assim como uma meia dúzia de explicações técnicas não era suficiente pra qualquer humano entender do que ela era capaz de fazer. Na verdade ninguém nem sabia quem a tinha inventado. Ainda mais complexo seria tentar determinar com exatidão sua função. Com ela se podia ir a qualquer lugar, em qualquer época. Tanto já ocorrida ou mesmo por vir ainda. Podia também transformar grunhidos ininteligíveis, de qualquer alienígena em uma fala entendível. Capaz ainda, de desintegrar um rinoceronte, miniaturizar um dinossauro, agigantar um ácaro. Sem qualquer uso de substâncias externa ao ser. Apenas rearranjando as próprias moléculas. Nada tinha de exotérico, nada de ocultismo, nada a ver com mandala, tudo se tratava de ciência pura. Os cientistas do mundo inteiro jamais descobriram como isso fora possível de realizar. Tantos anos de estudos realizados por muitos. Milênios de conhecimentos acumulados. Indícios da sua existência vinham desde os faraós, dos antigos egípcios. Até alguém ter tido contato com seres de outros planetas. E chegou-se aquele monstro indecifrável chamado de: M.M.T.T. Machine Magnifique Teletransportions of Time. 

Tagor tinha uma irmã chamada Fani. Os coqueirais admiravam-se da perspicácia, da altivez de Fani. As veredas se abriam perante sua passagem. Os crisântemos, as begônias, roxas de inveja rangiam os dentes. Convenientemente bela. Inefável Fani, radiante feito o sol de Marte, Fani parecia uma tia de tanto carinho. E Fani se fez manhã, era flagrada a confidenciar segredos a tarde, arteira a se amasiar com a noite. Uma Fani, das que adorava jogar com a ternura como quem joga amarelinha. O céu ficava olhando pra ela, sem dizer a verdade, porque ainda não era hora. Os índios da Terra do Fogo se projetaram na lente dos seus óculos. Os nativos que o cão de Vanuatu arremessara pra quinta dimensão estavam lá, aprisionados no livro de Fani. Já muito bem ambientados no novo lugar que agora ocupavam. O cenário era simplesmente, puro esplendor. Os montes apalaches num céu dum azul tão amplamente trabalhado. Índigo, caprichosamente elegante, blue. Nenhuma melodia no mundo seria capaz de tirar aquela certeza. 

Enquanto isso, um camponês, indiferente ao que acontecia, ia. Lá dentro a assembleia dos extraterrestres ocorria. O carro de boi passava, flutuando no espaço. O cachorro, seu fiel escudeiro, com certa dificuldade, mas sem nenhum constrangimento, nadava cachorrinho para alcançar a pareia de bois. E o rastro que iam deixando pra trás, era de poeira de meteoritos pisoteados pelos bois. Tacos de asteroides que o sarnento pegara pra brincar iam ficando pra trás. O negro firmamento feito espinho de juazeiro espetava sem dó nem piedade o peito da madrugada. E só sabia que era porque daquela hora avante, sequer se ouvia o piado da coruja, mãe da lua. O gato fubazento fora julgado. Por nove votos a favor, e três contras, fora sentenciado, à pena máxima. Seria atirado ao mar tendo uma pedra de moinho amarrada ao pescoço. O crime invadir sem permissão a sala de reunião. Acontece que ele tinha uma coisa  pra contar que podia ser de interesse de todos, inclusive dele. 

Antonieta nunca na vida se sentira tão mal como naquele instante. Não se reconhecia naquela pessoa refletida no espelho. Sua própria imagem era o que via. Como podia ter agido com tanta vilania. Sozinha no quarto rememorava os últimos acontecimentos. Deitada na cama, os olhos fechados, travou uma batalha com ela mesma. Via a própria alma. No dia do sepultamento de Tagor F. conseguiu penetrar-lhe o interior do sepulcro. E o mundo a plena luz do dia escureceu. Tudo naquela hora virou trevas a sua volta. E tudo tornou-se um lamaçal que a aprisionava. Vieram as lembranças desde a infância. Sua tia ensinado o catecismo, as obrigações diárias, a escola, os colegas. A certeza de estar fazendo algo errado, o corpo lutando contra. A lascívia vencendo suas forças. E tudo se repetira no dia que encontrara o tesouro encerrado numa imensa arca. Sabia que o correto era dividir a fortuna, também pertencida aos demais familiares. Mas a vontade de possuir tudo falava mais alto. A sedução do poder tinha domínio sobre seu ser. 

Os olhos de soberba injetados de sangue, não eram os mesmos refletidos no espelho. A alma, é que tinha horrível aparência. Por fora uma bela moça adormecida. Seus lindos olhos cerrados ao se abrirem seriam como diamantes. A pele de colo alvo ornado de colar de esmeraldas. Todo aquele fulgor escondia uma outra face. Lá, bem dentro dela, padecia uma alma no escuro.
 

Fabio Campos, 24 de setembro de 2016.  

P.S. A Gravura que ilustra este episódio é do Riacho Camoxinga na ponte que dá acesso a Escola Mileno Ferreira.  

AÇOITA CAVALO (8º Episódio Saga do Crime de T. F.)






As corças, os peixes caçados pelos ursos. E parecia primavera. As trutas pulando, tentavam vencer a correnteza. O azul do gelo a tempestade se derramou sobre o lago congelado. A avalanche descobrira de debaixo da neve um lenhador e sua figura petrificada. A barba coberta de cristais de gelo. Os olhos abertos fixos no horizonte. Os meninos das bicicletas ficaram horas admirando aquela cena. Perguntaram como tudo acontecera, e o homem contou. Disse que sua casa ficava na encosta do rio Green. O nome era porque suas águas o ano inteiro ficava cheia de uma plantinha trazida da floresta de tundra. De muito longe dava pra ver o rio de relva. Feito suco verde derramado na plataforma do continente, mais frio e mais gelado do mundo.


Ulisses, era como se chamava o negro que exausto procurava, entre o Novo México e o Texas, um hotel pra se instalar. O único a escapar da tramoia da comida envenenada. Saíra de lá convicto que dera cabo de todos os comparsas ladrões de banco. Escondera todo o dinheiro, e agora viajava Américas a dentro. Para ter certeza que ninguém jamais encontraria sua fortuna, só via uma saída comprar todas as terras onde a grana estava escondida. No cartório descobriu que as terras pertenciam a Jonathan “Vergalhão”, o velho louco, da espingarda doze calibres, que atirava em tudo que se movia. A casa de alpendre, estado lastimável, debaixo do sol de meu Deus, valorizava ainda mais o conversível de Ulisses. Havia marcas de tiros por tudo quanto era canto. Saturno e Derick de longe observavam toda movimentação. Apostaram que o velho receberia Ulisses à bala. Derick achou que não, felizmente o bichano acertou. Ulisses lentamente desceu do carro, dirigiu-se ao alpendre, e ocupou uma das cadeiras vazias ao lado do velho. E ficaram lá, os dois, sentados, conversando a tarde inteira. Ulisses acendeu um cigarro feito à mão, de fumo aromático tirado dum tablete, e de belas baforadas compartilhou com o velho Jonathan, como se fossem velhos amigos. Assim como a fumaça que diluindo na brisa, os assuntos fluíram naturalmente. Ulisses quis saber por que a casa estava em situação tão deplorável. O velho Jonathan, das duas uma: ou estava confundindo Ulisses com o pastor, ou achava que era mais um dos fantasmas que via a todo instante. E sem tirar os olhos do horizonte disse que era bronca antiga, era caso de família. Seus avós haviam morrido tentando adquirir aquela casa, junto com toda a propriedade. Fora uma luta sangrenta pessoas da família tivera que morrer.


No resvalo da encosta, Derick e Saturno confabulavam. O que contava acontecera poucos anos depois que a ilha fora descoberta. Não existia a vila ainda. Apontando pro aglomerado de edificações disse: Nada disso existia naquele tempo. O tempo a que ele se referia era início do século dezessete Tá vendo aquela ladeira? Bem no final havia um córrego, tudo ao redor era mata até onde os olhos conseguiam ir. O riacho agora não passava dum esgoto fétido que atravessava a rua pavimentada escondido dentro de uma bueira, onde ratos enormes disputavam com cassácos alguma imundície pra comer. Os pensamentos falaram mais alto e mais rápido que as palavras. E numa fração de segundos voltaram pro tempo dos monstros gigantes de galhos e folhas verdes. Titãs de lignina, fibra e seiva bruta sob os olhos atônitos dos desbravadores temerosos de serem engolidos por eles. Não se davam conta, porém, já se haviam nas entranhas da mata. A luta descomunal da clorofila com o anil azulado do firmamento, era pra ver quem era maior. O vento ameaçava atirar no mar de azul metil os monstros de mais de cinquenta metros de altura cujos músculos de ervas suavam flúor por todos os poros. Um dia quando estava extremamente atormentado pelo calor, debaixo da bola de fogo que chamamos de sol. Achou de arrancar um galho de uma árvore pra se abanar e espantar os mosquitos. Um líquido leitoso se desprendeu das folhas daquele galho salpicando no seu rosto, e os olhos do gato ficaram muito inchados, logo se formaram pústulas. E Derick ficou cego por três dias.


Nicolas Crossover era um desbravador intergaláctico. Sua nave sofrera uma avaria, e teve que fazer um pouso forçado num planeta desconhecido que ele próprio batizaria de Rapkins Lands. Em homenagem a seu pai que naquela data 13 de setembro de 2056 fazia aniversário de 56 anos. Muitas eram as semelhanças com o planeta Terra. O ar existente na superfície era composto de grande parte de oxigênio e hidrogênio, mas acender um fósforo ali, nem pensar, na atmosfera muito gás metano e enxofre nas partes mais baixas. Caminhou por um desfiladeiro até encontrar uma espécie de plataforma muito longa, duma liga metálica muito semelhante ao material da qual sua nave era feita. Ao tocar com o pé sobre aquela estrada Nicolas foi sugado para o centro, das laterais brotou uma espécie de redoma que se elevou e vedou a estrada por toda a sua extensão. O piso tornou-se uma esteira rolante que levou o aventureiro até um palácio todo feito de liga de carbono, titânio e vidro. Içada numa altura estonteante, que feriam as nuvens com suas torres pontiagudas. No interior do castelo uma reunião de cúpula estava acontecendo. Um conselho onde representações e líderes dos quatro cantos do universo se faziam presentes. O representante da Via Láctea era um negro que muito lembrava Nelson Mandela, as feições de um nipônico de cor, e quando falava, nem um só músculo do rosto se movia somente os lábios. Como se a boca tivesse vida própria, a não depender daquele boneco de cera a que estava pregada. Estariam eles decidindo o futuro de alguns planetas que se haviam tornado insustentáveis. O planeta Terra estava entre os da lista.


Tagor Fashall consultou seu relógio de algibeira, ele dizia que era sexta-feira 16 de setembro de 1774. As colônias Britânicas na América definitivamente tinham tudo pra naquele dia entrarem para a história.  Juntamente com seu melhor amigo o gato Derick, descobriria os poderes de uma planta fenomenal. Como foi? Foi assim: Justo naquele dia resolveram dar mais uma batida pela mata pra ver se encontravam o tesouro encantado de Lopevi. E acidentalmente descobriram aquela árvore. Elas sempre estiveram lá, tantas vezes passaram ali e não a perceberam. Somente depois que Derick ficou três dias cego resolvera estudá-la. A fruta se assemelhava com a da conhecida mancenilheira, tinha a aparência duma maçã inglesa. Porem um pouco menor. Notaram que a maioria das árvores ficava ao longo da costa. À medida que se avançava pro interior do continente iam escasseando. Seus galhos robustos de cor avermelhado via-se que se prestavam perfeitamente para o fabrico de móveis. Era preciso dar um nome aquele vegetal magnífico. Pra isso precisavam observar aos fenômenos que ela produziria dali pra frente.


 O velho Jonathan quebrou a monotonia da tarde acionando o gatilho de sua espingarda doze. O tiro foi endereçado ao conversível de Ulisses. Atirou ao tempo que gritava que dentro dele havia um demônio. De fato de lá dentro saiu um ser horrível que somente o velho Jonathan, Derick e Saturno conseguiam ver. Ulisses ficou furioso achando que era mais um surto de loucura do velho “Vergalhão”. O alien viera da caverna da montanha, seu faro apurado dizia que por ali havia o metal precioso que o seu povo tanto precisava, e que só existia aqui na Terra. Ouro pra levar pro espaço, ouro tão necessário pra salvação do seu planeta Urano. Viera bisbilhotar a vida do velho Jonathan porque tinha certeza que ele sabia onde havia uma jazida do metal escondido.


A árvore seria comparada com a árvore da maldição. Aquela considerada antes do pecado a árvore da ciência plantada por Deus no jardim do Éden, da qual a serpente seduziu Eva. E que levaria ao homem e sua companheira a provar cometendo o pecado primordial, o da desobediência ao Criador. Os homens da vila quando cometiam qualquer delito eram levados a um júri popular que os condenavam a ser amarrado àquela árvore. E passar dum dia pro outro, atados a ela. Era sentença de morte porque quando o orvalho batia nas vestes dos infelizes a humidade em contato com a árvore produzia uma seiva que liberava um veneno mais poderoso que o de uma serpente da mais poderosa peçonha. Os cavalos que provavam dum galho daquela árvore ficavam alucinados. Pompadur o cavalo de T. Fashall passou por tal experiência. Desde então a planta ficaria conhecida pelo nome de Açoita Cavalo.



Fabio Campos, 15 de setembro de 2016.  

P.S. A Gravura que ilustra este Conto é a mesma que está no Conto "A Maldição do 13", do mesmo autor, publicado neste Blog em: 20 de Março de 2013.


UM PLANO DIABÓLICO (7ª Parte...)


Por incrível que pudesse parecer o cão de Vanuatu, não queria briga. Derick é que não entendendo o espírito da coisa, partiu desesperadamente pro ataque. Dando um belo dum salto, com as patas dianteiras buscou o pescoço do cão. Que instintivamente se esquivara, sem no entanto, conseguir muita coisa. E as massas de músculos e pelos estrondaram-se num choque gigantesco, rolaram colina abaixo, levando consigo vários pés de pinheiro e muita neve. O brutal e grandioso embate provocaria uma avalanche. Uivos e grunhidos ecoou desfiladeiro a fora. Aquilo fatalmente causaria um deslocamento nas placas tectônicas. Um abalo sísmico seria inevitável, dali a alguns dias, na ilha de Roma. Alheia a tudo isso uma casinha cochilava calmamente lá longe, ao pé da montanha fumegando a chaminé num tufo cínzeo que subia, e subia, preguiçosamente. Acabando por se perder em meio à alvura e a neblina. Sentado sobre as pernas cruzadas um moicano, com uma pele de urso sobre os ombros nus, tentava se proteger do frio. De muito longe, apenas observava. A espingarda segurava como a um bebê que se é levado ao colo.

Numa estrada asfaltada, a milhas e milhas de anos-luz dali, um negro guiava seu conversível, debaixo de um sol que refletia azul índigo blue, nas lentes dos seus óculos. No chapéu uma pena de águia. O rádio tocava uma música que falava de lobos, índios apaches e igrejas velhas, num lugar deserto no estado do Novo México. Torcia para que surgisse a sua frente um desses hotéis de beira de estrada, onde pudesse descansar. De preferência que não houvesse surpresas desagradáveis. Gente maluca, fantasmas, abutres que sentiam de longe o cheiro de confusão e consequentemente de carniça. Nesses lugares que forasteiros nunca eram bem-vindos, ainda mais um negro. Um velho psicopata, que passava o dia inteiro atirando com uma espingarda de cano duplo de grosso calibre, que abriam buracos enormes. Vestido num macacão jeans arruinado e fétido. Ficava sentado numa cadeira de balanço debaixo dum alpendre enquanto escolhia um alvo. Atirou num barril do qual jorrou sangue. Isso porque o desmiolado do seu neto de onze anos, achou de esconder-se lá dentro. O xerife seria chamado pela vizinhança, porem não se animaria a fazer nenhuma investigação porque entendia que era dever da família providenciar a internação do vovô Carabina. O máximo que haveria era um funeral no fim da tarde, pois todos compactuavam igualmente daquela doideira. Um problema de malucos, uma família de malucos, uma população de malucos, num condado de malucos e todos se entendiam. O pastor negro, que usava um bigode negro, trajava um terno igualmente negro, foi chamado para encomendar a alma do pobre menino. No interior da igreja havia um alçapão no piso do altar que dava acesso um túnel que ninguém sabia nem que existia, muito menos onde ia dar.

O menino chamava-se Igor Carvalhal. Em silêncio Igor acompanhou o funeral. Serenamente segurava o chapéu que um dia ganhara de sua vó. Era um chapéu engraçado, triangular igual aos dos bravos que vieram conquistar novas terras na colônia inglesa. Vez outra Igor olhava pros bicos dos sapatos, esboçou um sorriso ao ver neles algumas manchas de sorvete. Mamãe Marcela tinha-lhe encarregado de limpá-los fazia uma semana. Os três meninos das bicicletas se aproximaram dele fazendo barulho. O pastor, olhar de reprovação ainda segurava a bíblia aberta. A algazarra de imediato foi abafada. E leu: “Filipenses: 1:21-22: Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas se o viver no corpo é útil para o meu trabalho, não sei o que devo preferir.” E continuou: “Pai nos ajude a lembrar que somos pó e ao pó havemos de tornar. Quando a nossa hora chegar de caminhar pelo vale da sombra da morte, que não temamos nenhum mal. Ajuda-nos a viver enumerados com os justos, cujos corpos aguardam a ressurreição dos justos.” Os meninos convidaram Igor pra sair dali. Ele disse que tinha que ficar até o funeral acabar. Marcos, Lucas e João lhes falariam da busca a um tesouro encantado. Arregalando os olhos quis saber que mistério era aquele do tesouro perdido? Os meninos o corrigiram: perdido não, encantado! Igor falou duma passagem secreta que acabara de descobrir no piso da igreja. Ficava escondido debaixo do tapete do altar. E que finalidade teria uma passagem secreta que começava dentro da igreja, e que ia dar na entrada duma mina abandonada na base da colina que dava pra o leste do condado. A resposta poderia vir dum carro novo, porem muito sujo, logo ali parado. Parecia que não fazia muito tempo que estava lá. Pelo calor do motor teria sido abandonado fazia só algumas horas.

O cão de Vanuatu sentado num tronco conferia os arranhões e raladuras que o felino em fúria lhe provocara. Comentaria com Derick que não precisava tê-lo recebido com tão estúpida agressividade. Derick justificou-se dizendo que não teve como evitar, por puro instinto de sobrevivência agira. Não esperava um ser horripilante lhes aparecendo assim, e que fosse para uma conversa amigável. O cão de Vanuatu apresentou-se dizendo chamar-se Saturno. E zombou do gato que devia ter visto a cara de medo que estampara no momento do encontro. Falou da mania que tem os felinos de se esticarem para parecerem maiores do que eram. Disse que aquilo nunca colara, e riram os dois. Saturno teve um corte mais sério no supercílio que não estancara. Isso o fez lembrar-se duma erva fantástica, tinha que consegui-la pra fazer o ferimento desaparecer. Andaram uma jornada dum dia até a floresta tropical. Se continuassem andando penetrariam na floresta negra dos gnomos. Já o dia ia findo, então resolveram acampar. E Saturno aproveitou pra contar a Derick a lenda do “Açoita Cavalo” a planta que procurava para sua cura.

Os meninos vasculharam tudo, ao abrirem a mala traseira encontraram o corpo de um homem perfurado a bala. Pelo menos uns vinte tiros havia tomado. Um dos projéteis quebrara dois de seus dentes incisivos. Percebeu Marcos algo brilhando dentro da boca do morto, era uma moeda de um dólar. Não sabiam, mas estavam sendo observados por um homem no alto dum penhasco. Com um binóculos os observava. Numa velha choupana onde aos fundos se via um amontoado de ferro retorcido, como se ali funcionara uma oficina, ou seria um local de desmanche de carros. Muitas peças do motor. O cheiro predominante era de combustível, gasolina, óleo diesel. Dentro da casa vários homens, entorno duma mesa discutiam, sobre o que iriam fazer com todo aquele dinheiro. Haviam assaltado o banco. Tanta era a grana que não conseguiram acomodar num dos quartos que havia na casa. Fora uma caminhoneta todinha carregada de cédulas de um dólar até a altura do teto da cabine. O plano dera certo. Mas agora não sabiam o que fazer, e discutiam. Os ânimos exaltaram-se indiscriminadamente. O que parecia ser o chefe, propôs que alguém fosse a vila comprar comida, toda aquela discussão lhes dera fome. Todos concordaram. O que iria a vila foi abordado por um terceiro, que tinha um plano diabólico. O que ia à cidade devia comprar veneno de rato, colocaria na comida, e ficariam os dois com toda a grana. O que ia avisou ao comparsa: "-Só não colocarei veneno nas duas últimas marmitas, que será a que nós devemos pegar."

O corpo encontrado pelos meninos na mala do carro era do gerente do banco. Depois de encherem a caminhonete com a grana. Um dos assaltantes saíra pelos fundos levando o dinheiro, guiou a picape até o deserto, enquanto os demais saíram em direção a igreja trocando tiro com a polícia. E assim conseguiriam escapar. Os meninos das bicicletas arranjaram mais um amigo com quem se divertir. Iam e vinham pelo túnel do tempo. Ora continuavam crianças que jamais cresceriam, ora se tornavam velhos adultos prisioneiros de si mesmos. Sem nunca conseguirem crescer nem ficar velho, indo e vindo pelos caminhos tortuosos e imprevisíveis do túnel do tempo. Suas mães sonhavam encontra-los, e todos os dias iam à pra praça de Maio. De fronte a Casa Rosada, num protesto pacífico reclamavam seus filhos, perdidos pra ditadura peronista. 

O ladrão que fora comprar comida pôs-se a pensar dizendo: "-Sem veneno, deixarei somente a primeira marmita." E assim fez. Ao chegar com a comida, aquele que tramara com ele adiantando-se proferiu: -Atenção, Pessoal! Ninguém toca nessas marmitas! E se nosso colega por acaso teve a ideia de colocar veneno pra matar a todos nós, e ficar com toda grana? O chefe se achando muito sábio sugeriu: "-Que seja ele então o primeiro a provar da comida!" Todos concordaram. Nada lhe aconteceu. Então, todos serviram-se e comeram. O comparsa teve o cuidado de ser o último a pegar, e foi também o último a morrer.

Fabio Campos, 08 de Setembro de 2016.


P.S. A Gravura que ilustra este Conto é imagem sacra de São Raimundo Nonato, que encontra-se na Capela e no Povoado de mesmo nome, que delimita o município de Santana do Ipanema - Alagoas com o vizinho estado de Pernambuco.