A PONTE DE MONTOULIEU (27º Episódio de T.F.)


Sol em abundância debaixo do céu. Havia também, muito azul de céu, e muita luz, pra compensar. E tudo, era muito real. Cada pedra pisada, cada grão de areia debaixo dos pés calcado, fazia sentido. Respirar ar quente era tão real, quanto sufocar. A rua, tão distante estava, mas se sabia que estava lá. Em algum lugar que não se sabia precisar ao certo. As pessoas, por ilusão imprimida aos olhos tremiam debaixo do sol. E mesmo sem saber se haveria amanhã todas as coisas eram absurdamente reais. Nada do que estava ali, tinha a menor importância de ser fato escrito, de estar nos livros. Até porque, por mais que tentasse, não haveria no mundo escritor, capaz de descrever com total realismo, a verdade que estava ali. Ainda se alguém contasse, infelizmente ia parecer mentira. Bem ali na nossa frente, havia uma muralha. Hirta, na mais completa acepção da palavra. Muralha gigante. Feita de pedra e turfa, estendida por quilômetros de extensão. Alucinava-se, danada de doida, e arrogância. Vertiginava-se pelos vales e campinas. A perder-se de vista, a deixar só o rabo debruçado por cima da cadeia de montanhas.  A primeira coisa que vinha a mente de quem a observava era: quem teria tido espetaculosa e absurda ideia de construí-la? Que mente megalomaníaca teria concebido tal empreendimento? Quantas vidas se enfiaram por dentro dela, quantas se perderam, até que fosse edificada? 

Esmeraldina gostava de gatos e de flores. Não sabia ao certo, se mais de gatos ou de flores. Sua mãe dona Deolinda, dizia: “-Não gosto de alguém que chega aqui, e diz: Dê-me um desses gatinhos pra eu criar! Tempos depois encontramos os pobres largados, nas ruas. Arriscando levar pedrada dos meninos. Roubando comida nas cozinhas alheias.” Dona Deolinda, tinha razão, outro dia, ao ir ao barreiro buscar um pote d’água, encontrou um dos gatinhos que a filha tinha dado a uma amiga. Estava perdido, tremia de medo, magrinho! Morrendo de fome! Era só pele e osso. Tanto miava que já rouco estava. Soltava um miado fino, insistente. Pra não decepcionar a filha, levou-o para a casa de Amara sua irmã. A tia de Esmeraldina teria dado ao gatinho o nome de Bola de Gude, por causa da cor dos seus olhos. Um dia, a menina iria descobrir tudo, mas já seriam outros tempos. A casa da mãe de Esmeraldina tinha tanta planta e gatos. Era casa singela, de gente pobre, mas honrada. Erguida de vara entrançada preenchida com massapê. Era casa simples, mas tão bem cuidada. As plantas eram tantas, e tanto colorido emprestava a construção rústica, dando-lhe outro aspecto. Tornada pela simplicidade agradável a alma. Trepadeiras se contorciam, escalando os caibros de apoio do alpendre. A casa tinha cheiro de flores, que lutava, quase sem lograr êxito, encobrir o cheiro dos gatos.

Tagor e Parantrophus ainda estavam na taberna, bebendo. O candeeiro pendia, atado a um pedaço de couro negro, enquanto liberava um fio de fumo, que ia subindo, e logo sumia. A misturar-se com o ar, impregnando de outros odores. As essências, cada uma tinha o compromisso de trazer determinadas lembranças. Retalhos de momentos que retornavam bem nítidos, de coisas ocorridas. E que ficaram eternamente marcadas, pelo apurado sentido do olfato. O cheiro de óleo de coco, do sabão de pedra, se enfiando pelos buracos das ventas dos aventureiros. Trazendo as lavadeiras de roupas lá do cais do porto. Vinham  vagantes pelas retinas telúricas de suas visões. Mulheres, volumosas, com as roupas molhadas coladas aos corpos. Corpos nutridos de muita proteína, e oleosidade, se acumulando debaixo da epiderme bronzeada. Os seios enormes e flácidos balançando frenéticos no puxa, repuxa dos panos, quase se expondo a apreciação pública. 

A chegada das embarcações. Os gritos dos marinheiros assanhados, impudicos. Acendendo-se neles o desejo sexual ao verem mulheres, depois de tanto tempo, de enfadar-se de só ver os mares. O cheiro de bacalhau se insinuando pelos engradados de madeira, trazendo o esvoaçar das gaivotas, dos albatrozes, dos pelicanos, à cata duma sardinha descuidada, nadando na flor da água, ou surpreendendo algum dos pescadores na despesca das redes. Tantos tragos de rum, Tagor já havia ingerido, que insensível o paladar já nem mais reagia a adstringência do álcool. Ao acre doce sabor de carvalho, do barril onde envelhecera o destilado. As palavras do amigo agora, ressoavam como num sonho, ecoando longe, muito longe. Sua voz chegava-lhe como peixes voadores, lentamente, que atônitos fugiam, da boca de um tubarão horrivelmente asqueroso. E tentariam escapar buscando dentro dos seus olhos abrigo e salvação. Um deles veio-lhe com olhos tristes, como os de Antonieta.

No encaixe da moldura da pintura do bule com flores e da xícara com números com a frase: “Cafés des Fleurs – Jardin des Luiz XV”  Chouchoulina a bailarina do cabaré do subúrbio de Paris encontrou um envelope que continha uma folha de papel com uns escritos a pena e tinta da China. Era como uma carta, ou poema, um manuscrito em francês, encimado de uma ilustração que aparecia um gato negro, um castelo, uma ponte, um nobre, e um diabo com chifres e tudo. Chiclete o seu gato de estimação, dum salto subiu na mesa. Assim que ela começou a ler, o bichano se fez todo ouvidos. Parecia estar entendendo, cada palavra que a moça pronunciava.

“Perto da formidável fortaleza de Foix, na região de Languedoc, em França. Não longe da fronteira com a Espanha, há uma ponte. É a ponte de Montoulieu, que existe até hoje. Pois dela se conta a seguinte história: Numa manhã, Raymond Roger, conde de Foix, acordou de péssimo humor. Desse jeito fez selar seu cavalo favorito e partiu ao galopo rumo às montanhas. Atravessou o burgo de Foix, entrou pelo caminho ao longo do rio Ariège. Ia cavalgando no sentido contrário da correnteza. Ao chegar a região de Ferrières e Prayols  mandou o cavalo cruzar o córrego. Porém o cavalo não quis passar. O conde ficou furioso, deu meia volta e voltou pro castelo. Mandou vir a sua presença o barão de Saint-Paul e encolerizado lhe disse: Eu te ordeno construir na região de Ferrières e Prayols uma ponte sobre o rio. Se em um mês não vejo a ponte. Tua vida vai pender de um fio. Acontecia que o barão era um poeta, um gastador, um tostão não tinha para o empreendimento. E lamentando disse: -Ah! Um pacto com o diabo eu faria para sair desta enrascada! Imediatamente o chifrudo apareceu-lhe a frente dizendo: -Tua ponte estará pronta no dia combinado! Entretanto, o que tens para dar-me em troca? O barão respondeu: -Eu te juro pela minha honra, que a alma do primeiro que passar pela ponte será tua! E cada um foi pro seu lado.

A partir daquela data o barão não foi mais o mesmo, estava cada dia mais triste. Um pacto com o diabo, tinha feito. Cheio de remorso foi até a igreja do mosteiro de São Volusien. Ali, envergonhado se prosternou no chão, chorando. O reverendíssimo abade reconheceu no homem prostrado, se tratar do barão de Saint-Paul. Este então lhe confessou seu pecado. O reverendo abade lhes disse; -Amanhã vos farei uma solução! No raiar da aurora apareceu bem construída a ponte sobre o perigoso curso d’água.  Belzebu instalou-se sobre o murinho da ponte, aguardando o primeiro passante para levá-lo ao inferno.  Eis que envolto numa capa preta apareceu o barão de Saint-Paul. O diabo dele zombou, dizendo: -Ah! Então será tu o primeiro a passar a ponte? Abrindo uma sacola ocultada sob a capa, o barão puxou um enorme gato negro, que tinha uma panela presa à calda. E disse: -O primeiro a passar, é este aqui!  O gato saiu disparado cruzando a ponte, fazendo grande escarcel. Soltando vapores pelas orelhas o diabo partiu no encalço do barão, que desde já descia a estrada, correndo morro a baixo. Eis que na encosta do morro surgiu a procissão dos monges de São Volusien. Eles vinham cantando a Ladainha de todos os Santos, com a cruz na frente. Levantando o hissope o abade aspergiu a ponte com água benta. Imediatamente o diabo dissipou-se em fumaça negra afundando sob a terra. E, por muitos e muitos anos, ninguém se aventurou, nem dia de dia, nem de noite, atravessar a ponte de Montoulieu.”

Esmeraldina se tornaria namorada do capitão Aquino de Lucena. Mas somente quando completou dezoito anos. Bola de Gude o gato, o caçula da família, dentre os irmão de Derick, vivia com ela. Era o preferido, foi presente de sua tia Amara. Não sabia ela, que sua mãe o encontrara no barreiro abandonado. Milu, a gata mãe de Derick, não sabia dessa história. Não, até o dia que Tagor a visitou no Asilo para idosos São Vicente de Paula. O problema era que gatos urinavam nas caqueiras das plantas. Faziam isso para marcar território. Para que os gatos da vizinhança não viessem invadir seus espaços. 

O capitão Aquino, ao botar os olhos na menina, a desejou para si. Imediatamente a quis para sua namorada. Mas eram tempos muito difíceis. Muito lá trás. Tempo em que se namorava por carta. Ele buscou informações sobre a moça. Descobrindo a respeito de sua vida que a mesma tinha aulas com o padre e também dava aulas a meninos pobres em sua própria residência. A vila caçoava do capitão, pelas costas, por que não gostava de andar a cavalo, preferia ir a pé. Pra pequenos percursos, como andar pelos arredores, preferia ir a pé. Sobre isso os aldeões diziam: “-Anda a pé, que nem comprador de porco!” Ora, se não era pela necessidade de levar seu produto adquirido (que além de pesado e vivo, era barulhento!) que o comprador de porco tinha que andar a pé! Além do que amarrava o bicho, por uma das patas traseiras. O capitão não gostava de montar, pra não ferir seus bagos muito sensíveis. Isso poucos sabiam. No entanto ele sabia, que Esmeraldina gostava de flores e gatos. Isso era um trunfo. E tornava tudo muito mais fácil.

Fabio Campos, 27 de Março de 2017.


O MONSTRO DA GARGANTA DE OLDUVAI (26° Episódio de T.F.)

Havia um fogo que queimava, e não consumia. A cidade inteira em chamas. As matas, e tudo em derredor. Os campos, as montanhas, em fogo ardente. O rio, como larva fervente, em baixo da ponte, passando vagarosamente. As pessoas ainda que em chamas. Porem, agindo assustadoramente normal. Tudo, em fogo vivo, porém, na completa paz. Tagor percebeu imediatamente, que não mais se encontrava na terra. Tudo se transformara num mar de sol incandescente. 

Não conseguia entender como, aquele fogo ardia sem devorar as coisas. A matéria, as substâncias, tudo permanecia inexplicavelmente intacto, apesar das chamas. A rua, amplamente frequentada. Homens, mulheres, crianças ricamente vestidos de fogo. Homens com trajes de lordes ingleses, mulheres com vestidos longos de madames flamejantes. As carruagens, os cavalos tudo em estado de combustão, desfilava pelo paço, em tons alaranjado. Transitavam, com a normalidade de um dia de verão. Crianças na praça brincavam de pular corda. No pinga-fogo faíscas largava do chão. Sobejando pinos de fogo, feito ferro no esmeril. Meninas saltavam amarelinha, vermelho alaranjado, de tão quente. Meninos rolavam aros de ferro em pura brasa, girando no calçamento de paralelepípedos em puro fogo. Um cavalheiro se aproximou montado em seu cavalo. Num aceno de mão, chamou Tagor, encolhendo os dedos.

Lucas, o terceiro menino da bicicleta se encontrava em casa. Nove anos de idade tinha ele. E era agora, nos dias atuais, exatamente hoje que se encontrava. Havia chegado da escola, fazia muito calor. Por ter que ter acordado cedo estava muito cansado. Deitou-se na cama sem sequer tirar a farda, nem os sapatos. A mochila largou ao pé da cama. Tinha fome, e sede, mas faltava coragem, vencido pelo cansaço adormeceu. E teve um sonho com Tagor. 

“E estando ele nos tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. Gritou então: -Pai Abraão compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo, a fim de mim refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado por estas chamas. Abraão porém replicou. Além de tudo há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui pra vós não o podem, nem os de lá para cá. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Lucas, Cap. 16 Vs. 23-26”

O homem da montaria, que chamou Tagor, apeou. Desceram lado a lado, pela rua principal. O cavalo, o homem e Tagor. O cavaleiro trajava um sobretudo negro. Na cabeça uma cartola de feltro bastante surrada, enegrecida de grude, fubazenta, cheia de bolor, de tão velha. Vastas sobrancelhas na testa larga. Na lapela, um broche de prata na forma de um dragão. Tirou um charuto do bolso, cortou a ponta com um cortador de prata. Acendeu-o com um isqueiro engraçado, cujo design remetia a um morcego, também prateado. O homem do cavalo convidou Tagor a entrar numa taberna. Uma moça de cabelos de fogo veio os atender. Seus olhos, para um bom observador, eram tristes. Sua boca, porém, muito sensual adornada de um baton vermelho vivo. Olhou para os dois, colocando doçura e beleza na disposição de servi-los. O homem da cartola pediu uma garrafa de conhaque, Tagor preferia vinho. O homem da cartola disse que naquele país, vinho era bebida proibida. Tagor aceitou um rum. Só então o homem apresentou-se: “-Senhor Tagor, eu me chamo Parantrophus, sou um dos guardiões do templo de Armagedon do príncipe Menphis Estofelis, trouxe-o aqui, pois tenho uma proposta para lhe fazer.”

Antonieta naquele instante se encontrava no ateliê de costura de dona Antonia dos Reis. Estava ali pra provar o seu vestido de noiva. Muito em breve aconteceria seu casamento. Era um belo vestido, um imenso véu cobria a fronte deixando seu rosto diáfano. A grinalda cobria seu cabelo, e descia até arrastar-se no chão. Belíssimas luvas de cetim cobria parte dos dedos mimosos de suas mãos magras. Delineava suas curvas o belo vestido, todo pinçado de pérolas. Contas de pérolas por toda a borda do busto. Sobre uma cadeira um buquê de flores, rosas vermelhas, perfeitamente compostas. O espelho refletia toda a candura de uma noiva feliz, porém apreensiva. Dona Antonia, fazia de tudo para tirar os vincos, não apenas das vestes, mas de preocupação desenhada no semblante da moça, mas não estava nada fácil conseguir. O pensamento viajava pelos quatro cantos da futura cerimônia. Não conseguia apartar-se das preocupações pelo que estava por vir. Revivia mentalmente cada instante. Os convivas, os quitutes, as bebidas, o bolo magnificamente manufaturado. Os solenes juramentos, as alianças.  O brinde, o beijo nupcial, os cumprimentos dos padrinhos. Os músicos, a marcha nupcial, tudo pronto para aquele que seria o dia mais incrível de sua vida. Não entendia porque o noivo, a poucas horas de irem pro altar, simplesmente evaporara. 

Alguém disse tê-lo visto  na taberna, tomando vinho com um estrangeiro, foi o que ouvira dizer. Não havia padre na vila, ele viria exclusivamente pra cerimonia, especialmente requisitado para a ocasião solene. Chegaria com o dobro do mau humor que tinha. A viagem longa, cansativa contribuía pra isso. Os paramentos colado ao corpo. O calor dando-lhe nos nervos. Antonieta não tinha a menor ideia de onde Tagor estava. Mas tinha certeza pronto para a cerimônia não estava. Naquele exato momento se encontrava na taberna bebendo com um estrangeiro num pais tão distante e quente que o estrangeiro chamava de “Hell”. De certo que não iria casar trajado como um pirata que era como estava naquele exato momento.

Marcos o segundo menino da bicicleta. O que tinha sete anos. Teve pesadelos naquela noite. Sonhou que resolvera matar todos os gatos da sua rua. Nada tinha contra os bichanos. A raiva era porque dona Margarida, a professora, possuía um gato que lhe arranhara no rosto num dia que foi ter aulas de reforço em sua casa. Ele mesmo começou a encrencar o bichano, acabou ganhando um belo dum arranhão na cara, que deixou-lhe com uma cicatriz muito feia. Prometeu vingar-se. Tinha porem, um problema, se somente o gato de seu ódio aparecesse morto, levantaria suspeita. Daria pra desconfiar que fora ele. Era preciso matar todos os gatos daquela rua, quiçá todos da Vila! Para que não gerasse desconfiança. Para isso era preciso bolar um plano perfeito. Um crime perfeito. Precisaria da ajuda do melhor amigo, Tagor.

Tagor, enquanto conversava não tirava o olho duma pintura na parede da taberna. Era uma natureza morta. Tinha flores, um bule, uma xícara de porcelana. E os dizeres: “Cafés des Fleurs – Jardin de Luiz XV” A xícara da pintura tinha números, em algarismos arábicos e romanos, nas bordas. O que era algo, no mínimo interessante. Chouchoulina a bailarina do cabaré francês herdara a pintura de seu pai, que era dono de um circo. Lembrava muito bem quando ele morreu, no seu leito de morte chamou a filha e despediu-se dizendo que guardasse aquele quadro, para o resto da vida. E que ele encerrava um segredo que não conseguiu revelar pois não deu tempo, a morte chegou primeiro, morreu sem dizer do que se tratava. Uma vez que ela era a última herdeira da família, falou que jamais deixasse alguém ficar com ele. Soube de sua vó que toda a sorte da família estava naquele quadro, caso ela se visse em situação muito desesperadora, somente num caso extremo abrisse o encaixe da moldura pois lá existia um segredo. Mas somente em caso extremo e ela obedeceu, até o pai cair no leito de morte. Ponderou que a hora era chegada, iria abrir o encaixe do quadro. A consciência não ia doer tanto, afinal o pai estava morto agora. Estaria realmente?

João, o primeiro menino da bicicleta estava em 2056, mesmo assim não crescera, e tinha ainda seus cinco anos de idade. Encontrava-se num longínquo país africano ao norte da Tanzânia tinha uma história pra contar a Tagor. Descobrira que os aliens não passavam de parentes dos insetos eles eram artrópodes evoluídos. As duas patas a mais que possuíam logo abaixo dos braços. Braços quase humanos que tinham. Só que resolveram esconder dentro das roupas de metal, o par de braços extras, para ficarem mais parecidos com os humanos. Conversou longamente com um monge hindu, descobriu que dali de onde se encontrava distava exatos mil quilômetros da margem direita do rio Eufrates. Estava portanto a um milhão de metros do Monte Megido. O local ficara conhecido como Armagedon. Lugar onde, segundo os Livros Sagrados, se travaria a batalha final de Deus contra as sociedades humanas iníquas. Monte Megido ou “Har Megido” em hebraico. No livro do Apocalipse e também do profeta Jeremias.

“Chegou o dia do Senhor Javé dos exércitos, dia da vingança em que arruinará seus inimigos. Devorará a espada até fartar-se, abeberando-se de sangue. É a imolação ao Senhor Javé dos exércitos, ao norte, às margens do Eufrates. Jeremias (46,10).” 

Ali, todos os exércitos da terra se reunirão para a batalha final na colina de Megido. O local era assustador mesmo em plena luz do dia. Havia uma montanha que possuía uma imensa caverna chamada de “Garganta de Olduvai” que segundo os nativos abrigava um demônio chamado de Parantrophus que estaria dormindo dentro da garganta há dois milhões de anos. Eis que a terra começou a tremer. João não tinha a menor dúvida a fera havia despertado.


Fabio Campos, 16 de março de 2017.  

TAGOR! TAGOR! (25º Episódio)

Os gritos ecoavam dentro dos ouvidos. Mas ele, apenas Tagor conseguia ouvir. Antonieta sendo atormentada em sonho. Era cruel ver aquele pobre homem sofrendo no escuro, sem que nada pudesse fazer. A noite inteira andaria pelas ruas. Quando era pequena, um dia sua vó, lhes dissera que quando a gente dorme, a alma saía do corpo. E que ficava a vagar pela cidade até raiar o novo dia. Encontrou uma árvore de tronco negro plantada bem no meio da longa calçada, da rua mal iluminada. Os galhos assemelhavam trombas de elefantes empedernidas. As folhas gigantes abrigavam seres estranhos. Uma jia amarela pintada de bolinhas verdes como que sorria, de olhos abertos dormia. O papo enchia e desenchia, de modo a entender que mascava chiclete, fazendo bolas dentro da própria boca. Enquanto umas borboletas nasciam dos galhos, dos ramos das árvores, saiam voando feito vagalume. Subiam e subiam, até sumirem na imensidão do cosmo.

Tagor sentia fortes dores nas articulações dos joelhos, estava muito cansado. A caverna cada vez mais ia ficando menor, mais apertada. Forçando a ficar cada vez mais abaixado. O que acabava forçando as articulações das pernas, não sabia aonde ia dar. Não tinha a menor ideia pra onde estava indo, nem ele nem o pai de Antonieta. O oxigênio ficando cada vez mais escasso. A respiração ofegante. E os gritos da amada não paravam. Instintivamente, começou a cavar com um pedaço de pau que encontrou atirado ao chão. Depois com as próprias mãos e de repente, um buraco no teto deixou aparecer um raio de luz azulada, que era como uma bola de céu. Na verdade um buraco azul de céu. E chegaram a superfície de algum lugar muito bonito. Era deserto e o que mais havia era areia. Tão amarela que mais parecia ouro em pó. E andaram a esmo procurando sem saber direito o que. Ao escalar uma daquelas dunas eis que viram uma casa plantada no meio do lugar inóspito, aridez de alma. Era uma casa de campo. Uma choupana.

A casa tinha telhado baixo, paredes caiadas. Janelas com vidraças e cortinas. Os chanfros eram vermelhos muito vivo. Bem como os umbrais das portas. A porta dos fundos batia e batia açoitada pelo vento. A cozinha certamente estaria cheia de areia do deserto. Tagor do meio do deserto viu o interior da casa. Havia um tapete de pele de urso, uma lareira acesa. Quadros na parede, retratos de família. Um quadro chamou-lhe atenção. Era de uma xícara de porcelana uma pintura diferente: na borda 12 letras do alfabeto, em latim. Na base de um a 30, em números arábicos, e na borda do pires números que iam de um a mil em algarismos romanos. Uma menina, com vestes de dormir subia uma escada de madeira de lei com dois lances que dava num primeiro andar. Não dava pra ver o rosto da menina, só dava pra ver-lhe as costas. Ela tinha um longo cabelo que descia até sua cintura. Cabelo liso, solto. A menina segurava um brinquedo, muito provável estivesse indo pro seu quarto dormir. Mas alguém muito mau que estava na penumbra a espreitava. Era um homem, e dava pra ver apenas a silhueta. Ele tinha mãos enormes, de pessoa que talvez tivesse problemas mentais.  

Da janela do quarto da menina dava pra ver o mar. O mar estava bravio, as ondas quebravam na praia, com força quebravam, com raiva. Estrondavam com volúpia. O homem da penumbra agora estava sentado na praia, e olhava o mar cheio de melancolia e tristeza. O vento movia pra trás a aba do seu chapéu, ameaçando tirá-lo da cabeça. O homem fumava um cigarro, que era muito mais consumido pelo vento, da tempestade. O rosto de sal, de areia e lágrimas que jamais teve vontade de chorar. O vento arrancava-as furiosamente dos olhos de chumbo. E as lágrimas ao invés de descerem pelo rosto, iam pra trás juntar-se ao cabelo negro, revolto. Era possível sentir sua respiração, de alguém ansioso, raivoso. Desses que acham que o mundo, muito mal havia feito para si. E que odiar, destruir, achava isso muito natural. Visto que não via outra coisa a ser feita que não fosse o que sempre fizera, odiar. Jamais admitiria remorso ou arrependimento, o que havia feito, estava feito, e pronto. 

A tarde parecia noite, as nuvens acabariam ficando com cara de ódio. O homem conseguiu contaminar tudo com seu azedume. O céu não aprovava, mas isso era o que menos importava. Viver era muito mais cruel. A praia não concordava, e tudo parecia estar muito triste por conta dessa desarmonia. O barco balançava a proa como se dissesse: “Eu te odeio!” “Eu vou, eu quero te afundar.” Também os peixes e todos os monstros marinhos deviam estar a par de tudo, e também detestavam aquele tipo de situação. A vara de pescar, o metálico molinete, frio e molhado, apenas olhava. Fincada na areia molhada, tão fria acabava enrugando a barriga dos dedos.  Tempo perdido, pescaria perdida, vida perdida. O peixe que o homem não conseguira pescar, jamais tivera o olhar fixo no céu ,enublado, pra onde jamais iria. E suas guelras subindo e descendo, a boca abrindo e fechando lentamente. Se debatendo mais uma vez, sujando de areia as escamas brilhosas de lantejoulas. Nada daquilo fazia o menor sentido, significado algum tivesse. Nem precisava ter. As almas dos marinheiros que morreram no mar, em momentos como aquele resolvia voltar do fundo, do profundo oceano e ficavam andando na praia. Passavam uns pelos outros, calados. E quão trágico era. Os navios e barcos naufragados, pouco a pouco, vindo aportarem na areia. E de seus cascos arrombados, lodosos, carcomidos dava pra ver arcas, arcaicas. Entupidas de moedas de ouro, joias, dobrões, espadas de puro ouro. Tudo irremediavelmente perdido.

Antonieta entendeu que a árvore estava se abrindo, se rachando ao meio. Deixando escapar uma intensa luz verde de seu interior. A luz apontava pro céu negro, e ao chegar lá, ia se perdendo no infinito. Pensou que aquilo pudesse ser um farol, um tipo de comunicação dos aliens lá no cosmos com os aliens que estavam aqui na terra. O barulho de um pelotão de soldados em marcha fê-la voltar o olhar pra rua. De fato um grupamento de policiais vinha em marcha acelerada no leito da rua. Vestia fardamento verde fechado, seus coturnos pretos produziam o barulho característico ao chocar-se com o calçamento. Pararam de frente uma edificação magnífica. Uma espécie de quartel muito semelhante a um castelo, de fachada azul claro e frisos brancos. O jardim era bem cuidado, a grama bem aparada. Não fosse pelo arame farpado, as cercas elétricas, os holofotes e câmaras de circuito interno ninguém diria que tratava-se dum campo de concentração. Um tipo que parecia ser o comandante da corporação deu ordens para se posicionarem em pelotão de fuzilamento. Mas quem seria executado?

Milu continuava com os olhos arregalados pra o visitante. Tagor tentou passar a mão na cabeça da gata, mas ela arreganhou a boca mostrando os dentes, e dando aquele soprado de ar ameaçador que todo gato faz quando sente o perigo. Ao tempo que esticava a coluna vertebral pra parecer maior ao seu opositor. Tagor só queria tomar umas informações novas com a anciã. Sua fala foi reconhecida por aqueles quase centenários ouvidos. Dona Gumercinda entendeu porque ele estava ali. Inclusive tinha um presente para lhe dar, um broche que ganhara no dia do seu casamento. O marido era mascate comprou aquela joia a um vendedor ambulante que garantiu, pertencera a uma noiva de um mágico de circo. O mágico no seu show fazia o perigoso espetáculo das facas. A namorada presa a um tablado circular enquanto ele arremessava facas incendiárias. Com o picadeiro totalmente às escuras. Eis que num dia trágico, o casal brigou. Na hora da apresentação ele arremessou uma faca que veio perfurar um pulmão da moça, que viria morrer em consequência disso.

A cobra que engoliu o cangaceiro, não conseguiu ir muito longe. Pois como disse o padre, esses répteis gigantes quando engolem uma presa muito grande, não conseguem movimentar-se muito rápido. De modo que a volante dos soldados de polícia mais a guarnição do coronel Rodrigues de Miranda conseguiu matá-la. Mas já era tarde demais para salvar a vida do cangaceiro Cascavel. O corpo do desafortunado bandido foi trasladado para Sergipe, mais precisamente para Porto da Folha, sua terra natal onde foi enterrado. Já a cobra de vinte metros foi empalhada e ficou exposta ao povo. Onde se encontra até hoje, no museu das relíquias do padre Segismundo, em Juazeiro do Norte.

Milu a gata, queria saber o paradeiro de Bola de Gude e Chiclete. Tagor e Antonieta sabiam pois tinham visto Chiclete em companhia de uma amiga chamada Chouchoulina uma bailarina francesa, que morava no subúrbio de Paris. Já Bola de Gude momentos difíceis dentre suas sete vidas viveria ainda. Foi adotado por um vendedor de carne de porco que gostava de bichanos, tinha pra mais de quinze. Na hora do almoço era aquela farra. Os gatos tudo miando por uma porção de carne. Romenito “Jo-Jo” o açougueiro, alimentava-os com carinho, escolhia um dentre eles, punha no colo e deixava até comerem sobre a mesa, no seu próprio prato. Sua esposa dona Diolinda odiava aquilo, tinha raiva, porém nada dizia. Apenas sonhava um dia, livrar-se de todos eles. Matar todos aqueles gatos! Prazer indizível. Tagor, sentiu calafrios. Pertubou-se na alma. Lembrou de quando era jovem. Temeu seus próprio pensamentos. Dona Diolinda não suportava ter que aguentar os caprichos do marido, com tanto zelo e dedicação aquele monte de peludos nojentos. Chiclete vivia com Esmeraldina a namorada do capitão Aquino de Lucena. Agora, como o capitão encontrou Chiclete, aí é outra história.

Fabio Campos, 07 de Março de 2017.