A Oração


O Menino
Já ia alta a noite. Hora de se recolher.   Thômas veio, pediu-me a benção. E tinha outro pedido: Vô, o senhor me ajuda a rezar? Ali, de pé, ao meu lado, o menino e o pedido. Comoveu-me ambos. O céu, aquele que estava bem ali em cima, esse que conseguimos ver, cintilou. As estrelas todas, por instante, talvez tenham brilhado mais intensamente. O outro céu, aquele que não vemos, jubilou-se. A cima das nuvens, numa dimensão que não nos é acessível, com seus palácios e cortes celestiais. Em coro festejaram, regozijaram. Os que lá habitavam começaram a conversar alegremente, como se movidos por euforia momentânea. Os que se haviam do outro lado, ao ouvirem o que dissera o menino alegraram-se também mas não demonstraram. Na cozinha, uns anjos encostados na beira do fogo, depois disso espertaram. Passou o sono. Ouviu? O que? Alguém falou: Hosana!

O Homem
O homem veio chegando, olhando devagar, feito uma onça no meio do mato. Avaliando os que estavam lá. A fila, ia de um poste a outro da rua. Rua ensanguentada de sol. Eram oito da matina, parecia meio dia. Cansados de esperar [estavam lá desde as seis] alguns sentaram a calçada. Numa nesga de sombra murcha, tímida, feita das fachadas das casas, toscamente desenhavam figuras no chão ladeirado. Escorregavam lentamente pra junto dos rodapés com preguiça de ser sombra. Havia muitos tipos de mães, e pais de famílias, alguns poucos jovens. Mães de rostos luzidios, seios fartos, ventres volumosos, roupas de estampas coloridas, Homens franzinos, descarnados, descorados, ossudos, suados. Moças de sorrisos falhados, sem os dentes mais importantes. Rapazes esguios, tatuados nos deltas, chinelas de dedo, bermudas taquitel, camisas regata, bonés de time de futebol, cabelo de cortes estilizados. Os destinos de todos, a só tempo, idênticos, diferentes. Fila pra conseguir uma ficha, para atendimento médico no posto de saúde. O homem trazia um guarda chuva, longo, preto, pontudo, enganchado na gola da camisa, que descia pelas costas. Na mão, o cartão nacional de saúde, legitimamente o detinha. Havia no olhar, um quê de aflição. Tinha pressa. Impossível ter que esperar tanto! Não podia se demorar. A esposa, deixara doente, em casa. Sozinha, em cima duma cama. Dos que estavam na fila, um disse: Ave Maria!

A Mulher  
A mulher, aparentava ser mais velha do que era. Trinta e poucos anos. O lenço amarrado na cabeça realçava-lhes os sulcos da testa, as rugas. E disse bem assim: Eu vivo no escuro. Referia-se a escuridão da noite. Solidão que o ventre do mundo sente quando vira as costas pro astro rei. A noite mal caía, acendia o candeeiro. As cores iam tudo dormir. Se enrolavam todinhas debaixo dos lençóis. O gato em cima da pia, lambendo o papeiro de fundo preto, queimado. Aproveitava o resto  - duma papa - a ração da lactante. As sombras, muito mais volumosas que seus donos. Gordas, vorazmente iam engolindo os pedaços de parede de taipa, botando no ventre parca mobília. Uma mesa, uns tamboretes Umas sacas de feijão, outras de milho num canto. Grãos de feijão, caroços de milho, no chão. Para a mulher, dois eram os tipos de escuridão. A escuridão da noite, enquanto o candeeiro tivesse querosene pra queimar, livres estariam dessa. A escuridão das vistas. Meu pai, minha vó paterna morreram cegos. Deve ser triste ficar sem enxergar a luz do mundo. Para sempre o mundo apagado. O manto de Nossa Senhora não mais veria. Agora só na vida eterna. E a escuridão da alma? Não lembrava. Lembrava de Vera de Zefinha, sua prima. Depois que o marido morreu, ficou numa tristeza tão grande que dava pra ver no fundo dos seus olhos sua alma na escuridão. Desse dia em diante,  nada comia, nem água bebia, não falava mais com ninguém. Foi afinando, afinando. Durou só doze dias. A mulher fez o Sinal da Cruz.

O Rapaz
O rádio ligado, a dizer solenes notícias de dias anteriores. Resultado das eleições presidenciais, a extrema direita subira ao poder. O clima altamente quente, a temperatura baixamente temperada, a umidade relativa do ar, relativamente árida. O corpo de um rapaz, com sinais de espancamento, havia sido encontrado a margem da estrada de barro, ao lado de uma moto abandonada. O chefe da polícia fez averiguações. Quem o delegado chamaria pra depor? Talvez intimasse aquele céu esverdeado da cor das folhas da baraúna? Ou quem sabe aquela linda folhagem amarela da craibeira? Aquele azulado céu de domingo, muito provável queira servir de testemunha! Ou àqueles capuchos brancos, de nuvens veranescas. Não há de negar aquele era um céu interruptamente brasileiro. Nos trajes, no trágico acontecimento, no vislumbre das cores. No velório: No primeiro mistério vamos contemplar A Agonia de Jesus no Horto das Oliveiras!

O Negro, a Negra
Negro não é gente! Branco também não. São cores. Tia Maria não conseguia mais engolir os comprimidos inteiro. Era preciso machucar num pires, com uma colher, e fazer uma garapa com um pouco d’água. Só assim conseguia. As filhas deram pra brigar. Será que todos os irmãos do mundo brigam? Em especial quando as mães mais precisam deles? Gilda e Jane na verdade nunca se deram. A gente era que nunca prestara atenção. É desde pequenas que elas são assim. Agora, depois de velhas. A mãe doente deram pra esculhambar uma com a outra. A palavra mais bonita que uma diz com a outra é cachorra. E por aí vai. O carro vencendo a distância. Viajar a noite é perigoso. A estrada. O caminhão que vinha cegava sem cortar a luz. Um cachorro? Ou seria um cassaco? Se atrevendo atravessar a pista. Perigo iminente. Os livros que engoliam feriados prolongados. Engolia paciência. Engolia vistas ruim. Negro não é gente. Negra é a noite. Antes de sair de casa, reze um Pai Nosso.

O Filho
O cigarro aceso parecia não incomodar, mas incomodava. Fazia uma concha com a mão para escondê-lo. A saudade tudo suporta. Barba por fazer, já se acostumara com esse visual desleixado. O cabelo por cortar, o cavanhaque. O descuido com a aparência. E a saúde? Como estaria? Quando se encontravam sempre perguntava as mesmas coisas. Como estava? Chove por lá? E os serviços, sempre aparecem? O carro? Não dera mais problemas? Tinha tempo pra compor? Recebera todas mensagens que lhes enviara? Por que não respondia? Onde ia passar o natal? E ano novo? Uma barata doida invadiu o ar. Se interpor num momento tão solene, entre pai, mãe e filho que a muito não se viam. Pediu pra ser assassinada. O pensamento foi lá pra baixo, rente ao piso esmagado, junto aos restos mortais do pobre inseto fêmea. Talvez tivesse prometido não matar mais nenhum animal? Deve ter algum nome especial tal filosofia, de não matar nenhum ser vivo. Parece que os chineses, que nada matam? Nem uma formiga? Só humanos. Nossa Mãe!

A Oração

Vô? Por que temos que rezar? Lá vinha Thômas com mais uma perguntas desconcertante. Já deitado, coberto até a altura do peito, virado pro outro lado. Nada fácil responder. Nada fácil ser avô. Não fora fácil viver até ali. E ir pra fila de um posto de saúde, às sete da manhã. Não era fácil ter uma filosofia de vida. Lembrou que no umbral da porta, de tia Maria havia uma Nossa Senhora nordestina, uma Sagrada Família barroca, um panfleto avisando que haveria reunião bíblica. Àquela altura já passara. 

É pra gente conversar com Deus, Thômas. Alguns usam essa conversa, e aproveita pra pedir alguma coisa, outros simplesmente agradecem. Thômas? Está me ouvindo? Silêncio. Adormecera. Acho que olhar para o céu, já seria uma oração. Isso parece tão bonito. Meu Deus. Seria assim mesmo?

?...

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