É velho sentar a calçada. À porta
de casa a infância, ainda estava lá. Sentada, esperando que um dia os meninos
voltassem. Os cotovelos sobre os joelhos, olhando pros pés. Os olhos volviam pras
duas mãos de Deus. Os paralelepípedos, com o tempo, acabaram enrugados,
envelhecidos, nunca esqueceram um só dia. Pedras que brincaram. Meninos que
viraram pedras.
Dona Áurea, na cozinha,
eternamente preparando almoço, jantar, um café da manhã. Quando não, um doce de
leite, de pelotas. Por certo lá se encontrava, agora mesmo, na lida com
quitutes, temperos, a mão na massa. Bom mesmo seria olhar pra trás, e ver
novamente aquelas portas abertas. Os quadros nas mesmas paredes. A rede do Ceará
com os punhos encontrados nos armadores, esperando os meninos, e voltarem a
ranger e ranger, a dar solavancos e balanços. Até estourar alguns cordões.
A casa. Tristemente foi ficando
sozinha. As vizinhas, simplesmente foram embora. Em seu lugar surgiram outras.
Os anos passando, a rua vai mudando, só aquela casa continuava lá. Solitária,
triste, esperando o dia que um dia chegaria. De sua morte, um dia, de ser sepultada
um dia. Tantas foram as vezes que pariu seus filhos. Devagar foram saindo, um a
um, indo embora, ganharam o mundo. Devagar passaram, um a um, por aquelas portas.
Engatinhando, aprendendo a andar e andando, correndo, de velocípede, de
bicicleta [inicialmente com as rodinhas de apoio]. Descalços, de chinelos, de
sapatos. A gente e a casa éramos como crianças aos pés dos pais.
A escola. Ela cortou o cordão
umbilical deles com a casa. A primeira comunhão dando significado à reza. A
festa de são João de cada ano, fogos de artifício, ser pastorinho no pastoril.
Ser anjo na lapinha viva, de natal. O jogo de bola a perna quebrada. Os dias
sem ir à escola, o pai arranjou umas muletas. Parece que vão voltar os tempos
das cisternas. Do jeito que vai, com a escassez d’água não vai demorar muito e
voltam. O verão anda tão sertão.
Um dente, lá do oitão da boca,
começou a doer. Ia alta a madrugada, e o dente a doer. Por que será que dente
só dói em hora inconveniente? Todo mundo sabe disso. O dia inteiro tinha pra
doer. Deixou justo pra depois da meia-noite. Pra aliviar se pôs a mastigar
cravo da Índia. Dava sensação de adormecimento. E a dor dizendo estou aqui. E
se botasse pasta de dente. E a dor nem aí. Lembrou duma simpatia: fazer um chá
de camomila, embeber um algodão e colocar em cima. E a dor. Tentou [sem
sucesso] rezar a Nossa Senhora das Dores. E a dor. Encheu as bochechas com uma
mistura de elixir sanativo, um pouco de água e sal. E a dor. Deu murros na
parede, mas só conseguiu ferir os nós dos dedos. E a Dor! [agora, latejando no
dente, e nos nós dos dedos]. Mordeu até rasgar a fronha do travesseiro. E a
dor. Finalmente deu sinal que ia parar. A dor de dente. Pela janela o dia
[ardentemente esperado] vinha amanhecendo. Prometera fervorosamente, assim que
amanhecesse iria ao dentista. Acordaria o homem do boticão logo cedo. Estava
muito cansado pra isso agora. Não doía mais, o cansaço, e a ida ao dentista
ficaria pra outro dia.
A paixão pela prima. Deve está
escrito no livro dos livros da Paixão de Afrodite e Vênus: A primeira paixão de
um homem será pela prima. Não sei se tem fundamento mas o narcisismo pode ser o
responsável por isso. Projetamos naquele ser, a nós mesmo. Uma
vez que somos tão próximos de sangue, de carne, e de fisionomia. Daí a amamos
com todas as nossas forças. Paixão avassaladora. Muito provável que não exista
pessoa mais perfeita na face da terra. O cabelo (igual ao seu), castanho,
deslumbrante, sedosos, cheirosos, perfumados. Bastaria chegar perto dela, assim
por trás. Bastava sentir aquele cabelo roçando no rosto, nos lábios, e quase ia
a loucura. Sua mãos eram de seda (iguais as suas) aquela pele, aquela tez,
morena (igual a sua), aqueles olhos castanhos (iguais aos seus) aquela boca,
que boca sensual, bem desenhada carnuda, voluptuosa. O não, dito tão docemente,
que jamais pareceu não, Mas infelizmente foi não.
Quando o irmão mais velho casou,
foi morar numa casa de Cohab - conjunto habitacional. Bonito ver as casinhas,
todas iguaizinhas, os telhados iguais, as portas iguais, a pintura idem. A rua
limpinha de dar gosto. Acho que foi sonho. Um dia viu uma cena pra lá de maluca.
Os maridos saindo de suas casas de Cohab, pra ir trabalhar. Todos ao mesmo
tempo, trajados de paletó, chapéu de massa, gravata, pasta zero, zero, sete,
cidadãos classe média, americano, dos anos quarenta. As mulheres todas idênticas,
em blusa e saia godê, de avental branco, cabelo preso em rabo de cavalo. E se
despediam com um beijo. A mulher ficava em pé da porta acenava. Mas, o que
prevalecia era uma piada contada na roda de amigos do pai, e nunca mais se
apagaria, sempre que lembrava do irmão, vinha a anedota. “Casa de Cohab é tão
pequena que o cara entra, se deita na cama, a cabeça e os pés ficam do lado de
fora.” E imaginava o irmão naquela situação incômoda, engraçadamente desenhado
por Caruso numa charge. O pai e os amigos, riam e riam divertidos.
Os quinze anos. Não existem quinze anos sem
festa. Isso, claro, se a aniversariante fosse do sexo feminino. Pros menino, a
data passava em brancas nuvens. Era preconceito, resquícios da ditadura,
machismo, do tempo do carrancismo. Engraçado, fazia tempo que não ouvia esta
palavra... Fosse o que fosse, só sei que virou trauma. Foi desse, não direito a
uma festa de aniversário, desde criança, que pegaria a mania de fazer festa de
aniversário pra tudo quanto era coisa. Aniversário de tantos anos de conclusão
da faculdade, aniversário de um ano de um neto, aniversário de quarenta anos do
curso de datilografia. Comemorar [sem beber] um ano sem beber, um ano sem
fumar. Um ano, passaria a ser referência para todos os tipos de superações.
A ovelha e o porco. Não sei qual dos três,
mais marcou minha infância, se o porco, a ovelha, ou a gata. Na casa da minha
infância, meu pai gostava de gatos. Não de qualquer gato, tinha preferência por
gatos malhados. Criou um monte. E dava do seu prato, da sua comida pra eles,
por baixo da mesa. Minha mãe não gostava por que sujava o piso da cozinha. Depois
que meu pai morreu, uma gata que ele gostava muito também adoeceu, e morreu.
Coube a mim, fazer o sepultamento. Lembro que levei o corpo até a ribanceira do
rio e deixei lá. Dentro de uma caixa de
papelão. O que lhe ocorreu não sei. O porco, vivia num chiqueiro improvisado
atrás de casa, mas um dia ele escapou. Corri, corri atrás. Faltou paciência
taquei-lhe uma pedra no meio da testa, caiu no chão ciscando. De medo, corri
apanhei-o desmaiado e num esforço enorme levei pra casa. Sujei a roupa e quase
apanhei por isso. A ovelha comia caroço de algodão. Achei bonito vê-la comendo.
Dei o saco inteiro de caroço. Morreu empanzinada.
Alguém falou que se você
encontrar uma foto velha, mofada de família, veja em que parte estaria mofada.
No local que estiver bolorento, naquela parte do corpo se vai adoecer. Se for
nos olhos, a pessoa vai ficar cego, se for nas mãos, vai ter Parkinson, se nos
pés, paralisia, no peito pode morrer do coração, ou ter câncer de pulmão.
Tia Maria morreu. Na sala havia muitos
retratos da família. Num deles tia Maria aparecia de pé, trajada num belo
vestido estampado. O cabelo negro, longo bem penteado. Olhar sereno. A mancha
de mofo no retrato de tia Maria tomava-lhe parte das nádegas. Tia Maria morreu
de câncer no reto. Acho que tia Maria nunca queria mesmo era receber a visita
da sobrinha. Sobrinha que lhes dava conselhos. Conselhos assim, que se dá a
alguém que morre de medo de avião. Vai viajar de avião. E fica sabendo quão perigoso seria andar de
avião.
Ilustrado por pintura [tinta acrílica sobre papel sulfite] de Aika (7 anos) Ela mesma disse que se chamava: "Homenagem a Maria"
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