Tábata nunca conseguiu entender o que se passava com seu
pai. Tinha dias que ficava amuado num canto, horas sem dizer palavra. Olhava
pro nada. Pelo menos era o que aparentava, de cócoras, olhando pro nada. Os olhos
quase cerrados por conta da luz intensa. O cotovelo do braço direito apoiado na
coxa da perna direita. Enquanto a mão repuxava os fios do negro bigode. Ninguém
dizia, porém, naquele nada que fitava, muita coisa havia. Suas recordações o
levavam pra muito distante dali, e daquele momento. Tem coisas que nos acontecem, e que nós, jamais conseguiremos entender.
A luz do sol muito forte entrando pela porta assemelhava
um foco de projeção de uma sala de cinema. Lá fora, as tendas permaneciam
armadas, debaixo do sol abrasador. A lona de tão quente causaria queimaduras na
pele, de quem se encostasse ali. Tábata estava à mesa. O caderno clareava seu
rosto de pele amorenada. Os olhos, duas jabuticabas molhadas, vitrificadas. A
menina, olhava pras mãos, pros dedos, olhava pro pai, ruía as unhas, olhava pra
lá fora. Vieram-lhe lembranças de quando sua mãe precisou viajar pra casa de
sua vó materna. E seu pai teve que ficar cuidando da casa, também por conta das
ovelhas, dos cabritos, da parelha de bois, das novilhas, das vacas e dos
cachorros, que tinha que alimentar. O cachorro Negão e a cadela Amora. Negão,
por conta de seu pelo escuro. A cadela Amora, era a mãe de Negão. Do jeito como estavam agora, Tábata à mesa, o pai agachado, na soleira da
porta. Amora surgiu das moitas num grunhido que estava mais pra choro.
Seu Antônio perguntou-lhe: “O que foi minha filha?" A
cadela respondeu-lhe grunhindo mais forte, e olhando em direção de onde surgira.
E partiu pra lá. Seu Antonio a seguiu. Pressentiu algo estranho. o que se
confirmaria, encontrou Negão morto. O
cachorro estava na ribanceira do rio, seu corpo estava intacto, não sofrera
ferimento. Não fosse o fio de sangue saindo de sua boca, e ausência de
respiração, pareceria estar dormindo. Seu Antônio teve um ataque de fúria,
gritando e chorando desfechou vários golpes de facão num pé de craibeira
próximo.
Não era a primeira vez que Tábata via seu pai tendo
ataque de fúria. Por várias vezes o presenciou naquele estado de nervo. Quando
adestrava uma parelha de bois pro arado, por vezes se machucou, na doma dos
bichos brutos. Também nas brigas que tinha com os vizinhos, por conta de fios
de arames arrebentados por animais alheios, caso tivesse ovelhas roubadas nas vésperas
de festas natalinas, ou quando desapareciam galinhas, levadas por amigos que
faziam aquilo, somente pelo prazer de vê-lo enfurecido. Naquela ocasião, porém,
era diferente. Era um ódio regado a outro sentimento ainda mais forte, o de
vingança. Tábata jamais esqueceria aquela cena, seu pai urrando feito um
lobisomem. Desfigurado, fora de si, prometia beber o sangue do maldito que fizera aquilo com Negão,
seu cachorro, seu melhor amigo, seu irmão. Precisava ir ao barracão, tomar umas
cachaças.
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