Seu Antonio
acordou sentindo uma sensação estranha, algo sobrenatural ocorrera naquela
madrugada. O que realmente acontecera não sabia direito. Saiu da cama direto para o banheiro. E quase desmaiou ao se ver no espelho. Instintivamente levou as
mãos ao rosto. Ele simplesmente não era mais ele. Seu Antonio quedou-se
perplexo, estava no corpo de outro homem. Branco, ostentando volumosa
barriga, os olhos claros e um cabelo liso e alvo. Logo descobriu que se chamava
Robson, pois sua suposta esposa que se encontrava na cozinha assim o chamava.
Boquiaberto viu um
imenso pomar no seu quintal, morava numa casa a beira-mar. Da porta da cozinha
dava para ver a praia, o imenso oceano, ainda mais bonito assim pela manhã.
Sorrindo-lhe no cintilante brilho do sol refletido na água-marinha em acenos de
ondas, convidando-o a espumas com cheiro de maresia. O campinho dos meninos
jogarem futebol, não carecia de murada. Uma clareira aberta no imenso mar de
coqueirais na encosta da praia.
Interessante era
que Seu Antonio, nessa nova vida, tinha o mesmo número de filhos da outra vida,
três. A diferença que eram dois meninos e uma menina: Luciana, Luiz e Cristiano.
A esposa, dona Carmem, aparentava ser mais velha que ele. Ela costureira, ele
um funcionário da Vigilância Sanitária aposentado. Apreciava tudo que vinha, ou
era trazido do mar, as marés, as ondas, o cheiro de maresia, os frutos, a
pesca, os pescadores, a pescaria. A casa em que morava, a rua, o mar logo ali.
Seu Robinho, como
era conhecido, tinha uma rotina de ir ver o mar pela manhã, passear na areia por
longas caminhadas, sempre procurando se superar. Aumentando sempre o percursos.
Avaliando a que horas a maré estaria enchendo ou secando. Às vezes Os filhos o
acompanhavam. Outras vezes ia sozinho. Ia ao mercado do peixe, e quase sempre
voltava para casa trazendo pescado. A tarde ia a periferia da vila, num reduto
dos pescadores, as docas das Salinas, tomada por embarcações, canoas, barcas, barcaças,
botes, algumas velhas, outras em recuperação, aportadas para o descanso diário, ou
sem condições de navegar, simplesmente abandonadas.
Lá ia Seu Robinho,
pilotando sua bicicleta Monark, dobrando a pracinha onde havia um monumento, a
âncora centenária, a peça de moinho. Passaria na barbearia de Rubens, por um bom tempo ficariam
jogando conversa fora, o senhor General, funcionário público aposentado da marinha
mercante, um negro velho, sempre bem-humorado, sorriso largo, de dentes alvos, de
volumosa pança, braços e peito aberto. Também chegava Zezinho “Boa Vida” e
estava formado o trio de contador de lorotas, sempre traziam casos absurdos
relacionados a desempenho sexual. As gargalhadas estaladas, individuais ou
coletivas, dava para se escutar de muito longe.
Cauby funcionário
da balsa, controlava a travessia do rio Manguaba na sua foz. Cauby ia até a
barbearia de Rubens, depois ia aliviar o calor daquele intenso verão, tomar uma
água de coco no boteco do Jadinho. Sempre, naquelas ocasiões, passava no boteco
do Jadinho, Por volta das quatro da tarde Jadinho tirava seu saxofone da caixa
e dedilhava o instrumento, extraindo dele acordes, e pedaços de melodia que
lembravam noites de seresta e os antigos carnavais. Professor Zito, e professor
Sérgio apareciam no boteco, somente em dia de sábado para degustar doses de
cachaça com limão acompanhada de um fruto do mar, uma lagosta, um caldo de
maçunim, um polvo, um escabeche de cação, uma pratada de camarão, uma panelada
de siri ou caranguejo guaiamum, capturado no manguezal. Quando a pesca nada
dava, tinha que encarar um assado de cangulo um peixe de qualidade inferior. Ou
um prato de unha-de-velho.
Dona Maria, a
moradora da casa da esquina que dava para o ancoradouro da balsa, tinha um pé de
carambola no quintal. Badeco que trabalhava no outro lado da rua, no prédio da
telefônica, ia pedir a Dona Maria para pegar umas carambolas. Ela sempre permitia.
A cadeia pública guardava ainda os traços arquitetônicos do século dezesseis.
As janelas tinham largura nos tijolos dobrados. Entrar ali era mergulhar no
túnel do tempo. Dava pra sentir a presença das almas literalmente apenadas, e quantas vidas se teriam perdido naquela clausura. Tudo cheirava a tempos passados. O
som de grades se chocando, elos de correntes se arrastando entre os grilhões,
os lamentos, os pedidos de clemência, vindo dos porões, das masmorras, não era somente algo imaginado. Eram
cenas seculares se eternizando, se repetindo. Como se aquele ambiente aterrador
e hostil jamais conseguisse se livrar da inclemente maldição do passado.
A escola Ciridião Durval, abarrotada de barulho de crianças, que um dia cresceriam. Porém, continuariam crianças. Ainda que crianças velhas, que já se tinham ido. Partiram em busca de seus sonhos, de aventuras. Alçaram vôos, capitaneadas por seus ideais, navegariam por mundos estranhos. Ora voavam, ora sobrevoavam, pilotavam suas embarcações imaginárias, navegavam até o alto-mar. Muitos venceriam as tempestades, muitos sobreviveriam, muitos naufragariam. Muitos virariam soldados, e com tanto orgulho serviram a pátria. E depois, tantos outros se desiludiriam, e se atirariam ao delírio, a embriaguez que o mundo podia oferecer, e viveriam também suas frustrações. Outros partiram, e continuariam partindo com um gosto de sal na boca. Deixando para trás, amigos, vivências, experiências, paixões, amores, dissabores. O destino os empurrariam, obrigariam a darem às costas, sem olhar para trás. E lágrimas deslizaram pelos seus rostos. E nunca mais, é muito tempo, quem sabe voltariam. Tito? Onde estais? Edvaldo? Para onde fostes? Seu Paulú, me dê conta desses meninos!
A capela de Nossa
Senhora da Piedade ainda preservava os traços barrocos, a própria imagem vinda
de Portugal datada de 1607, no frontispício, o marco de sua fundação. Dona Lourdes zeladora, dona Belmira vereadora, a mantenedora. A igrejinha delimitava a praça com o próprio nome da santa, que ficava logo em frente, e
a Rua Vigário Bello, com a placa indicando a mais de século que aquele centenário vilarejo fora parte importante do descobrimento do Brasil. O lugar que
um dia fora chamado Águas Bellas, de antigo casario, de ruas com antigo calçamento, onde carruagens imperiais trafegaram, "Ò peble! Curvem seus corpos, o imperador estar a passar!". O pisoteio dos cavalos e coturnos dos soldados, quebrando o silêncio da madrugada,
ainda dar para se ouvir. Os estampidos dos canhões e bacamartes. O embate entre corsários e capitães de terra. Os gritos de
horror dos condenados a forca, das chibatadas nas costas dos negros escravos encarcerados. Nos
recônditos assoalhos, por baixo das tábuas, ensebadas de óleo e rum, carcomidas pelos cupins, dobrões de prata, espadas, moedas, medalhões de ouro, e pedras preciosas, tantas sepultadas, cujos donos, piratas, mercenários,
caçadores e desbravadores destituídos de suas aparências humanas, apoiados
somente por suas pobres almas, que teimavam em permanecer aprisionadas aos cadáveres, aos restos mortais do que um dia foram seus corpos, e defenderiam como poderiam, seus tesouros.
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