Santana do Ipanema, de quatro décadas atrás, não era muito diferente da atual. Era uma Santana mais família. Aos domingos nossos pais, levava-nos a alegres e divertidas visitas à casa dos tios. Bom era ir à casa de tia Emília. Ainda mais porque ficava no outro lado do rio Ipanema, próxima a ponte da Barragem. Tão boas visitas domingueiras, aos primos da Barragem.
Prazeroso estar sob a tranquilidade e paz de uma casa afastada do centro. Ainda mais que, do alpendre da casa, dava pra ver, ouvir, sentir o rio Ipanema. Com os primos Antonio, Jacinta e Lúcia íamos olhar o panema. Da ponte um esplendor de encher as vistas. De um lado o rio calmo e manso. Uma areia fofa na barranca, refletida pelo sol parecia ouro em pó. Ouro que se grudava a pele dos meninos que tomavam banho e brincavam na ribanceira. E como se tornavam ricos, ricos de tanta alegria. Feitos reluzentes golfinhos, davam saltos acrobáticos. Frívolos pés de mamonas balançavam ao sabor da brisa, oferecendo seus cachos pra puro deleite e regozijo dos moleques. As águas, resignadas desciam o rio. Pro lado da nascente, um imenso lago calmo. Bravias e revoltas depois das corredeiras. De dentro de nós surgiam navios piratas que iam, em perseguição às caravelas imperiais, e acabavam chocando-se nas pedras e sumiam entre as águas tempestuosas. Desvaneciam no meio do pedregulho semi submerso, onde nascia espuma flutuante, d’águas dançantes. Tudo testemunhado por um céu feito desenho caprichado, pintado a lápis lazúli anis dum sonho de criança.
Na casa da tia, tudo lembrava uma casa do campo. Um paiol, um carro de boi. O cheiro fermentado de silagem. Palma picada no balaio de junco seco. Facão embainhado, gibão, chicote e chapéu de couro dormiam no armador. Arado, pá, enxada, ancinho descansavam arriados no chão, tendo ainda barro, aderido entre as partes. Uma velha cartucheira de couro de bode, de um revólver trinta e oito. Tinha o revestimento interno chamuscado, porque tio Otacílio muitas vezes guardara a arma ainda quente. Otacílio Bezerra havia participado da emboscada ao bando de Lampião em Angicos, Sergipe, no ano de 38. Sentávamos no chão pra ouvi-lo contar aos adultos, como foi naquele dia. Assumia um ar solene, um tanto severo, pausando as palavras. Parecia não gostar de falar sobre, mas era como um desígnio que teria que carregar pro resto da vida. Olhos e ouvidos aguçados de seus interlocutores, buscavam com avidez cada som que saía de sua boca. Silêncio pesado, nada podia atrapalhar aquele momento. Contava-nos que no dia fatal, estava chovendo muito. Obrigando os soldados do tenente João Bezerra e do sargento Aniceto, volante a qual ele pertencia, tomarem muita cachaça pra enganar o frio. Mastigavam folha de Juá, pro hálito impregnado do destilado não se espalhar, e denunciá-los os animais noturnos. Pois os cangaceiros tinham suas atenções voltadas, e escutavam primeiro os animais da mata, principalmente os pássaros. Pois a depender de seu comportamento podiam detectar a presença humana. A narrativa, em determinados momentos tornada num trovejar de palavras, pra noutro instante sair quase em manso sussurro. Tudo a depender da emoção revivida. Interrompia a narração e ia até o quarto. Expectativa geral. Voltava trazendo um pequeno embornal de couro, decorado a modo matuto, de dentro tirou um punhal. Com olhar pousado nele, semblante cerrado, num burburinho de sentimentos aflorados. Empunhava a arma branca, revelando tê-la usado para degolar alguns cangaceiros, já tombados sem vida na gruta de Angicos. Ainda contava a história do tempo de Lampião, e eis que um grito de pavor vindo do paiol foi escutado. Primo Tonho atônito! Descobrira uma imensa cobra jibóia se espreitando por entre os caibros roliços que cobriam o velho armazém, causando alvoroço. Primo Geraldo já havia dado de mão de um fueiro com forquilha. Subindo no carro de boi conseguiu prender a cabeça da serpente, com a outra mão empunhou o facão e espetou a cabeça do imenso réptil até sagrar. Deduziram que a jibóia viera atraída pela presença de uma galinha que chocava seus ovos no paiol.
Cícero e José eram os mais velhos, dentre os cinco primos. A eles cabia a tarefa de cuidar do gado. Todos, inclusive as meninas, montavam a cavalo. Tio Otacílio além da lida com o gado, era açougueiro. Toda sexta-feira, mais de dez bois abatidos por eles no Matadouro que ficava ali próximo. A família De tia Emília e tio Otacílio, todos juntos, lembravam-me tempos depois, a família Bonanza, de um seriado de Tevê da época. Pelo aspecto de vaqueiro, de homens fortes e destemidos. O jeito xucro, os modos de que lida com gado e cavalo brabo. Dava gosto vê-los andando pela casa, absorto em suas tarefas. Tia Emília à cozinha, e que prazer ver a mesa posta. A louça branquinha de porcelanas pintada. As xícaras tinham uns desenhos bem antigos. As taças, talvez de cristal. Os talheres imitavam a prata. Dava pra gente se ver refletido, de tão polidos. Travessa com carne de boi guisada. No fogão uma caçarola com ovos de gema avermelhada. O cuscuzeiro enorme impunha respeito, angariando pra si os olfatos e olhares, no arrebatador aroma de massa de milho que enchia todos os cômodos da casa. Balde de alumínio, cheio até as bordas de leite fumegante, numa das bocas do fogão ladeado da chaleira de café quente. Uma terrina de rodelas de inhame. Uma jarra de coalhada. O café da manhã era um momento ímpar. Todos reunidos na cozinha, o patriarca ordenava que todos se colocassem à mesa, pra ele aquele era momento sagrado. Tia Emília não sentava, ocupada na tarefa de servir. Ao terminarem o desjejum, em silêncio iam saindo um a um. Não sem antes se benzerem, e pedirem a benção as pais e padrinhos, era tradição.
Após as refeições iam todos pra sala. Havia um tapete enorme sob o centro. Na parede um quadro do coração de Jesus, de gesso, em alto relevo. Na estante uma bíblia de capa preta, no lóbulo o título do livro sagrado em letras douradas. Sobre o feixe de folhas uma tinta vermelha. Vários retratos da família emoldurados pendurados na parede. Num modesto quadro de moldura oval, um retrato de nossos avós: Senhor Antonio Francisco de Campos, de terno e gravata borboleta, com ar solene está de pé, e Dona Maria Francisca de Campos sentada numa cadeira, com um vestido muito engraçado, que lhes desce até os tornozelos. O retrato em preto e branco, tirado ao ar livre talvez pra aproveitar a claridade.
O primo Cícero, que um dia passara pelas bancas do Grupo Escolar Ormindo Barros quis continuar os estudos, já não era mais menino, pensava no futuro. E um dia estaria matriculado no Ginásio Santana. No convívio escolar conheceu uma moça. Uma linda normalista por quem se apaixonou perdidamente. Cícero comprou uma motocicleta, não dava pra ir pro Ginásio à cavalo, isso era costume de tempos imemoriais. Achou melhor que a montada nos baios e alazões. Achou bom o novo galope. Não precisava domar a relho, não era marchador, nem troteador. Não precisava tirar os arreios, nem a cela. Não carecia de esporas nas botas. Só força nos punhos, e isso Cícero de Otacílio tinha de sobra. Como era bom cavalgar o vento, ainda mais levando a amada na garupa. Enlaçando sua cintura, como eram felizes.
Um dia, Cícero Bezerra recebeu uma carta de sua noiva. Tão querida, sua futura esposa, escrevia-lhes acabando tudo. Nada mais existiria entre eles. Nem namoro, nem noivado, muito menos haveria casamento, mais nada. Estaria apaixonada por outro. Foi um golpe forte demais pro coração do peão. Partiria de casa cavalgando seu cavalo de aço, movido a gasolina. Passou a mil sobre a ponte da Barragem. Cavalgando o vento, tomou o asfalto. Alta velocidade, vertigem. O mundo rodopiou também a moto. A altura do cruzamento do Maracanã, o choque contra o asfalto. O fim.
Fabio Campos