Houve um tempo que os mais antigos não esquecem. Tempo duma Santana ainda um vilarejo, iniciado no Bebedouro. As casas de gente de posses eram avarandadas, ornadas nos frisos à moda da colônia. Já o povo, o povo tecia teias de catingueira e barro, cobertas com palhas de coqueiros. Casulos que chamavam de pau-a-pique. Canoeiros, almocreves, lavadeiras e pescadores viviam do que lhes dava o braço d’água, berço da raça indígena, o rio Ipanema. A vila era uma ilha de casas e gente, cercada de mata branca dum lado, e rio do outro.
Aos primeiros raios de sol, pelas veredas súcia de negros em fila indiana. Iam pra roça, pra casa de farinha. As mulheres levavam os negrinhos atados em panos das costas. Negros escravos desciam a um lugar ermo pra esvaziarem as latrinas dos seus amos, enchidas no pernoite. Davam de se ajuntar numa canção, misto de hino e oração que lembrava atos heróicos de irmãos do quilombo. O vilarejo começaria no bebedouro devido à existência dum chafariz construído pelos irmãos Rodrigues e Martinhos a pedido do padre Francisco Correia. Houve uma cheia, cujas águas lavariam os degraus da igreja. Isso realmente aconteceu, muito embora a qual igreja as águas do Ipanema teria chegado aos batentes, e em qual parte da vila isso aconteceu, só quem viveu sabe.
Negra sinha Maria Sebastiana tivera doze filhos. Criou-os praticamente sozinha, seu companheiro o negro Cazuza, morrera durante uma expedição pela mata, quando tiveram que ir tirar madeira pra refazer o estaqueamento da fazenda Picada. Acabaria sendo vítima de uma armadilha de caçadores de onça, atingido por um espeto pontiagudo que lhe varou o peito. No meio da mata agonizou até a morte, sem que nada pudesse ser feito. Chovia, o sangue se esvaindo, misturando-se a lama e ao barro. Naquela fria manhã de inverno, foi o preto Cazuza ao encontro da morte. Negra Bastiana sozinha sucumbiu às dificuldades. Viu-se obrigada a entregar Ana, uma menina sua filha, para ser criada pelo senhor Antonio Ariovaldo capataz da fazenda. Um homem muito rude com os peões e subordinados da fazenda Martinho. Este jagunço desalmado acabaria estuprando Ana, a filha da negra lavadeira da fazenda dos irmãos Martinhos. Depois deste acontecimento, episódios muito estranhos passaram a ocorrer na vila. Ao final de cada dia de trabalho, nos galpões e alpendres das casas, enquanto o sol se punha, falava-se dum lobisomem, que depois da meia noite, andava rodando os arredores da fazenda. Se lua cheia, dava-se pra ouvir seus horripilantes uivos. A coruja rasga-mortalha cruzava os céus sobre os telhados das casas, emitindo assobios de mau agouro. Incêndios misteriosos que destruíam plantações e silos deram de acontecer, mas nunca se descobria como teriam começado. Pobres negros, indevidamente acusados de culpa, eram despidos e chicoteados a um pelourinho no centro da vila. Gado e cavalos contraiam doenças incuráveis que os faziam definhar até a morte. Enxame de abelhas atacava rebanhos de ovelhas, matando varas de porcos e bandos de galinhas e gansos. Teve até quem dissesse que se tratava da alma do velho Cazuza, vagando pelos sertões em busca de justiça. A sétima praga dentre as maldições que já haviam ocorrido, aconteceu justamente no mês de julho de 1922. As águas do rio subiram tanto e tão subitamente, que a negra Sebastiana nem teve tempo de recolher todos os panos estendidos na ribanceira. Conseguiu salvar os negrinhos. As águas atingiram uma fileira de casebres e chegaria aos degraus da igreja de São José, no Bebedouro.
Naquele mesmo ano, depois do mês de Santa Ana, houve uma estiagem que se estendeu até o mês de novembro. Os irmãos Martinhos resolveram vender parte do rebanho, encarregaram senhor Antonio Ariovaldo, e mais dois peões, de levarem uma manada de bovinos até o sertão da Bahia. Nada de anormal aconteceu na ida. A volta é que nunca mais esqueceriam. Encontravam-se arranchados em torno de uma pequena fogueira, já haviam feito a refeição noturna. Preparavam-se pra dormir quando foram surpreendidos com a chegada de um bando de cangaceiros. Nada puderam fazer, um dos peões tentou fugir e foi morto a tiros. Os facínoras tiraram tudo deles, cavalos, víveres, armas e o dinheiro do gado vendido. Foram-se ao amanhecer. Deixaram os dois homens amarrados, feridos propositadamente para que o carcará desse cabo deles. Ariovaldo perto do meio dia conseguiu se soltar. Percebeu que o outro peão não resistira aos ferimentos. Sepultou seus companheiros e partiu. Andou horas de caatinga sem encontrar viv’alma. Já era quase noite quando avistou um casebre. Um ermitão louco habitava ali. Recebeu-o entre pragas e acusações dos crimes que já cometera. Falou dos negros que açoitava e do estupro a menina Ana. Ordenou que se afastasse e o deixasse em paz. Vaticinou que ia arder no fogo do inferno pra pagar pelos seus pecados.
No meio do mato não conseguiu dormir, e nem era pela fome e sede que sentia. Não conseguia entender como aquele velho sabia tanto de si. Certeza tinha que nunca o conhecera. Outro dia, e mais caminhada sob o rigor do sertão seco. Achou que estava perdido, talvez estivesse andando em círculos. O mundo tremia sob o sol, a morte lhe sondava. No meio do facheiro percebeu um homem montado num cavalo vindo em sua direção. Talvez fosse só uma miragem. Era o negro Cazuza. Parou ao seu lado, com voz de trovão pediu que lhe prometesse, fazer uma romaria até juazeiro do norte. Teria que se confessar com o padre Cícero Romão Batista e voltar a Santana do Ipanema trazendo uma imagem de São Sebastião. Dito isso sumiu o negro, o cavalo permanecia ali. Tanta era a sede que tinha que tentou aplacá-la sorvendo o suor do animal. Conseguiu montar e partiu rumo ao norte.
Fabio Campos