A Promessa

Houve um tempo que os mais antigos não esquecem. Tempo duma Santana ainda um vilarejo, iniciado no Bebedouro. As casas de gente de posses eram avarandadas, ornadas nos frisos à moda da colônia. Já o povo, o povo tecia teias de catingueira e barro, cobertas com palhas de coqueiros. Casulos que chamavam de pau-a-pique. Canoeiros, almocreves, lavadeiras e pescadores viviam do que lhes dava o braço d’água, berço da raça indígena, o rio Ipanema. A vila era uma ilha de casas e gente, cercada de mata branca dum lado, e rio do outro.

Aos primeiros raios de sol, pelas veredas súcia de negros em fila indiana. Iam pra roça, pra casa de farinha. As mulheres levavam os negrinhos atados em panos das costas. Negros escravos desciam a um lugar ermo pra esvaziarem as latrinas dos seus amos, enchidas no pernoite. Davam de se ajuntar numa canção, misto de hino e oração que lembrava atos heróicos de irmãos do quilombo. O vilarejo começaria no bebedouro devido à existência dum chafariz construído pelos irmãos Rodrigues e Martinhos a pedido do padre Francisco Correia. Houve uma cheia, cujas águas lavariam os degraus da igreja. Isso realmente aconteceu, muito embora a qual igreja as águas do Ipanema teria chegado aos batentes, e em qual parte da vila isso aconteceu, só quem viveu sabe.

Negra sinha Maria Sebastiana tivera doze filhos. Criou-os praticamente sozinha, seu companheiro o negro Cazuza, morrera durante uma expedição pela mata, quando tiveram que ir tirar madeira pra refazer o estaqueamento da fazenda Picada. Acabaria sendo vítima de uma armadilha de caçadores de onça, atingido por um espeto pontiagudo que lhe varou o peito. No meio da mata agonizou até a morte, sem que nada pudesse ser feito. Chovia, o sangue se esvaindo, misturando-se a lama e ao barro. Naquela fria manhã de inverno, foi o preto Cazuza ao encontro da morte. Negra Bastiana sozinha sucumbiu às dificuldades. Viu-se obrigada a entregar Ana, uma menina sua filha, para ser criada pelo senhor Antonio Ariovaldo capataz da fazenda. Um homem muito rude com os peões e subordinados da fazenda Martinho. Este jagunço desalmado acabaria estuprando Ana, a filha da negra lavadeira da fazenda dos irmãos Martinhos. Depois deste acontecimento, episódios muito estranhos passaram a ocorrer na vila. Ao final de cada dia de trabalho, nos galpões e alpendres das casas, enquanto o sol se punha, falava-se dum lobisomem, que depois da meia noite, andava rodando os arredores da fazenda. Se lua cheia, dava-se pra ouvir seus horripilantes uivos. A coruja rasga-mortalha cruzava os céus sobre os telhados das casas, emitindo assobios de mau agouro. Incêndios misteriosos que destruíam plantações e silos deram de acontecer, mas nunca se descobria como teriam começado. Pobres negros, indevidamente acusados de culpa, eram despidos e chicoteados a um pelourinho no centro da vila. Gado e cavalos contraiam doenças incuráveis que os faziam definhar até a morte. Enxame de abelhas atacava rebanhos de ovelhas, matando varas de porcos e bandos de galinhas e gansos. Teve até quem dissesse que se tratava da alma do velho Cazuza, vagando pelos sertões em busca de justiça. A sétima praga dentre as maldições que já haviam ocorrido, aconteceu justamente no mês de julho de 1922. As águas do rio subiram tanto e tão subitamente, que a negra Sebastiana nem teve tempo de recolher todos os panos estendidos na ribanceira. Conseguiu salvar os negrinhos. As águas atingiram uma fileira de casebres e chegaria aos degraus da igreja de São José, no Bebedouro.

Naquele mesmo ano, depois do mês de Santa Ana, houve uma estiagem que se estendeu até o mês de novembro. Os irmãos Martinhos resolveram vender parte do rebanho, encarregaram senhor Antonio Ariovaldo, e mais dois peões, de levarem uma manada de bovinos até o sertão da Bahia. Nada de anormal aconteceu na ida. A volta é que nunca mais esqueceriam. Encontravam-se arranchados em torno de uma pequena fogueira, já haviam feito a refeição noturna. Preparavam-se pra dormir quando foram surpreendidos com a chegada de um bando de cangaceiros. Nada puderam fazer, um dos peões tentou fugir e foi morto a tiros. Os facínoras tiraram tudo deles, cavalos, víveres, armas e o dinheiro do gado vendido. Foram-se ao amanhecer. Deixaram os dois homens amarrados, feridos propositadamente para que o carcará desse cabo deles. Ariovaldo perto do meio dia conseguiu se soltar. Percebeu que o outro peão não resistira aos ferimentos. Sepultou seus companheiros e partiu. Andou horas de caatinga sem encontrar viv’alma. Já era quase noite quando avistou um casebre. Um ermitão louco habitava ali. Recebeu-o entre pragas e acusações dos crimes que já cometera. Falou dos negros que açoitava e do estupro a menina Ana. Ordenou que se afastasse e o deixasse em paz. Vaticinou que ia arder no fogo do inferno pra pagar pelos seus pecados.

No meio do mato não conseguiu dormir, e nem era pela fome e sede que sentia. Não conseguia entender como aquele velho sabia tanto de si. Certeza tinha que nunca o conhecera. Outro dia, e mais caminhada sob o rigor do sertão seco. Achou que estava perdido, talvez estivesse andando em círculos. O mundo tremia sob o sol, a morte lhe sondava. No meio do facheiro percebeu um homem montado num cavalo vindo em sua direção. Talvez fosse só uma miragem. Era o negro Cazuza. Parou ao seu lado, com voz de trovão pediu que lhe prometesse, fazer uma romaria até juazeiro do norte. Teria que se confessar com o padre Cícero Romão Batista e voltar a Santana do Ipanema trazendo uma imagem de São Sebastião. Dito isso sumiu o negro, o cavalo permanecia ali. Tanta era a sede que tinha que tentou aplacá-la sorvendo o suor do animal. Conseguiu montar e partiu rumo ao norte.





Fabio Campos

Halley

Na madrugada do dia 18 de Maio de 1975, uma bola cor de fogo riscou a via láctea, por cima dos céus do sertão de Santana do Ipanema. Passou traçando um arco no negro firmamento, por sobre o serrote do Pintado, como se viesse do sul em direção ao norte. Tinha a aparência de um sol, desses que vemos todos os dias. Um pouco menor devido aos milhões de anos-luz mais afastado do nosso sistema solar. Uma estrela de Belém dois mil anos longe do propósito de anunciar a vinda do Messias, ainda mais distante da Galiléia. Era o cometa Halley. Meio que atordoado fomos acordado por papai, pra ter aquela visão magnífica. Uma imagem e um momento que guardaremos pro resto da vida. Seguindo seu trajeto o astro incandescente, desenhou no espaço sideral e nas memórias de quem presenciou, parte de sua bela história.

Muitos anos precisaram se passar até que ficássemos sabendo do legado de vida daquele asteróide. Seu passado, sua eterna viagem, cuja trajetória se repetiria em sucessivas parábolas. Tão longo caminho teria a transcorrer pela frente que só tornaria a passar próximo ao nosso planeta azul dali a quase um século. Só vampiros, duendes e magos, dentre os que habitam entre nós mortais, conseguirão viver o suficiente para tornar a vê-lo. E lá ia ele, como um filho do sol, feito incandescente espermatozóide. Indo dar a luz sabe-se lá onde. Seguia e seguia, lenta e calmamente, até sumir na imensidão do cosmo.

Na Rua de São Pedro à casa de número 238, a uma singela moradia, residia a menina Maria Francisca. O que passamos a contar aconteceu um ano depois que o cometa de nome inglês passou sobre nosso céu. A Casa ficava no lado de baixo da rua, onde os quintais oferecem aos moradores a paisagem e a brisa meridional. De onde se tem também a visão do leito do Ipanema, até a ponte dos canos. Donde no verão dava pra se ver bandos de garças voando em “v” migrando pro sul. Nos dias de inverno se chovia a caída d’água das telhas proporcionava bicas que enchiam tonéis na varanda das cozinhas. E os meninos aproveitavam pra tomar banho. Maria Francisca tinha seis irmãos, todos estudavam no grupo Escolar Padre Francisco Correia. Os pais da menina tudo faziam para agradá-la e a mimava, por ser a única dentre tantos irmãos homens. A menina mimada gostava de bichos, quis ter e teve diversos animais de estimação. Da fazenda o pai teria trazido-lhe filhotes de ovelhas, coelhos, cágados e preás. Pássaros seus irmãos já os tinha, e de toda variedade.

Na casa de Maria Francisca também tinha cães e gatos. E nem eram estes os preferidos dentre os seus outros bichos de estimação, mas eis que um dia uma bela gata angorá ficou prenhe e teve uma ninhada de sete gatinhos. A um deles a menina deu o nome de Mickey. Devido ao pelo negro do bichano, quis colocar o nome do famoso rato de Walter Disney. Era um belo filhote de angorá, o único que nascera com a pelagem negra. Maria Francisca iria carregar por toda sua vida, um trauma de infância. Seu irmão Everaldo, numa aula de Religião da professora Marinalva, contaria no grupo escolar. Pobre menina acabaria chorando muito, ao ver revelado a professora e aos colegas da escola, seu drama até então mantido em segredo. Maria Francisca fora brincar no quintal de sua casa colocou Mickey sobre a tampa de uma das tinas d’água. O gatinho acabou caindo dentro do tonel e morreu afogado, sem que ela nada pudesse fazer para salvá-lo. Por conta do ato inconsequente teria tomado uma bruta sova de sua mãe. Tão forte foi a comoção da menina que adoeceu. Passaria alguns dias com febre, sem se alimentar tendo convulsões e delírios.

Muitos anos se passaram desde então. Maria Francisca cresceu e se formou. Tornou-se professora. Casou-se com um agrônomo e foi morar na capital, de volta a Santana foi residir à Avenida Professora Marinita Peixoto Nóya. Tivera três filhos o casal. Átila, Arquimedes e Angelina. A menina assim como sua mãe, viveu cercada de mimos por ser a caçula e única dentre os filhos de sexo feminino. Os irmãos tinham dela ciúmes pelo excesso de agrados dispensados por seus pais. Repetiu-se com ela o apego a bichos de estimação. E o quintal da casa acabaria dotado de jaulas e gaiolas que abrigava as mais variadas espécies de pequenos animais. Papagaios, araras, piriquitos. Lebres, porquinhos da índia e um pequeno Pudle. O belo aquário com peixinhos ornamentais na sala também lhe pertencia. Um dia a menina ganhou do morador da fazenda um filhote de gato, de pelo acinzentado que ela deu o nome de Apolo em referência ao deus grego.

Angelina não demoraria e logo se tornaria uma moça. Junto com a meninice foi deixando pra trás o apego aos bichinhos, fruto de seu mimo e estima. O único que jamais abandonaria em zelo e carinho era Apolo, o gato de pelo plúmbeo. O felino parecia compreender perfeitamente o amor de sua dona para com ele, e correspondia em igual proporção dentro da sua limitação de gato. Acompanhava-a nos eventos domésticos. Ao comer, estudar, brincar, assistir televisão e até dormir. Só a perdia de vista quando a moça ia pra escola. Angelina teve seu primeiro namorado, um rapaz de nome Bruno que foi devidamente apresentado a Apolo. Muito embora ambos estranharam-se e passariam a ter ciúmes um do outro. Bruno propôs outro nome pro gato e sugeriu que mudasse pra Halley. O rapaz era admirador de motos e carros possantes. Sonhava um dia possuir uma Halley Deivson. Angelina achou legal e passou a chamar o bichano por aquele nome.

Num final de semana foi o rapaz pra Pão de Açúcar. Junto com alguns amigos numa grande farra, onde acabou tomando todas. De repente apareceu ali um rapaz com um Jet Sky e Bruno aproximou-se pra conhecer a máquina. Tornaram-se amigos, e àquele ofereceu-lhe para que se dispusesse a andar na moto flutuante. Afoito Bruno se atreveu a esquiar no Jet sky mesmo sem saber nadar. Numa manobra mais arriscada foi jogado na água. Em segundos Bruno foi tragado pela correnteza e desceu. Desceu as profundezas do São Francisco. Desesperado em vão se debateu, não demoraria a ficar inerte, sem vida. Foi sendo arrastado mais e mais pro fundo. À medida que afundava iam as águas ficando cada vez mais escuras. Sua alma não mais afundava. Seu espírito agora parado via seu corpo imerso sendo arrastado. Bruno olhou pro alto e viu a superfície, tão distante, parecia o firmamento. O Jet Sky continuava lá na superfície boiando. A máquina ainda ligada tinha o farol aceso voltado pro fundo, visto por Bruno lá de baixo o farol parecia uma imensa bola de fogo. Parecia um cometa cruzando o céu e a via láctea. Se fosse o Halley, só dali a um milênio voltaria um dia a aparecer. E isso apenas fadas e faunos, dentre os que habitam entre nós, conseguirão viver para vê-lo.


Fabio Campos

Sinha Pretinha

Sinha Pretinha nasceu índia. Numa manhã de janeiro do ano de 1927 veio ao mundo. Às margens do belo rio Ipanema em Águas Belas. Ao completar dez anos de idade, uma grande seca assolou àquela região. O rio Ipanema secou. Pra não morrer de fome muitos índios foram embora da aldeia. A menina índia, mesmo contra sua vontade, teve que abandonar a tribo em que nascera pra acompanhar seus pais. Ajuntando os parcos pertences, seguiram rumo ao sul. Quando se deram conta que estavam em terras de Alagoas, dirigiram-se à região de Água Branca. À meio caminho andado, encontraram uma caravana de tropeiros. Mascates que transportavam e vendiam víveres, artefatos de caça, e utensílios domésticos. Dirigia-se a caravana à cidade de Mata Grande. Pretinha, teria sido negociada por seus pais com um dos tropeiros. Trocada seria por meia manta de charque, uma faca peixeira, e uma cuia de farinha de mandioca.

Os pais de Pretinha e os tropeiros viajariam juntos até Água Branca. Nas imediações da vila arrancharam-se na propriedade do Senhor Anacleto da Costa Barros, um rico donatário, possuidor de vasto campo agropastoril. Senhor Anacleto explorava o cultivo de feijão, milho e algodão em grande escala. Além de possuir uma manada considerável de bovinos que mantinha de carne e leite, o donatário e sua freguesia. Parte de sua produção era vendida pros vizinhos estados de Pernambuco e Sergipe, e até mesmo pro estado da Bahia. Pretinha passaria a ser considerada pelo tropeiro que a adquiriu mercadoria de comércio. Orientado pelo capataz Florêncio Bibiano, senhor Anacleto negociou a aquisição da menina índia, por ela pagaria a quantia de quarenta contos de réis em dinheiro vivo. Pretinha passaria a ser propriedade do senhor Costa Barros e passaria a integrar a imensa leva de trabalhadores braçais. A maioria contratado do arrendatário Anacleto, pro cultivo de feijão, milho e algodão.
Os pais de Pretinha ainda ficaria por algum tempo trabalhando naquela seara, depois foram embora. Um prato de comida em troca dos dias de serviço fora tudo o que conseguiram ali. Ainda no seu corpo franzino de menina de dez anos, Pretinha era obrigada a trabalhar de sol a sol junto com outros trabalhadores, por ter sido vendida, não pode partir com seus pais. Talvez pro resto da vida tivesse que dar conta de cuidar, de cultivar e descascar eiras e eiras de sementes do plantio do seu amo. Todo aquele serviço em troca do pão de cada dia. Certa ocasião chegaria à propriedade do senhor Anacleto, trazido sobre carros de boi, uma nova horda de trabalhadores. Seriam novos contratados para ajuntar-se aos demais, pro serviço de roça na imensa plantação. Havia entre aqueles, alguns homens brancos, talvez rechaçados da plebe, desenganados da vida de boemia. Aventureiros que perderam o que tinham na jogatina, nas noitadas dos cassinos. Se submeteriam a semeadura agropastoril, tentariam angariar o que comer, e dinheiro pra retornarem à sua terra natal.

Num determinado dia de campo, Pretinha fatigada do árduo serviço, encandeada com o sol a pino acabou por arrancar um pé de feijão, no arrasto da inchada. Teria sido isso suficiente para o capataz encolerizar-se e num ímpeto de fúria desfechar-lhe violenta lapada de chicote às costas. Florêncio era de proporções descomunal, parecia nada possuir de humano aquele homem vil, assemelhava-se a um bisonte apoiado em duas pernas. Pondo sequência a seu ato, arribou a saia da menina, expondo as vistas dos demais trabalhadores suas intimidades, desferindo nas suas nádegas mais três lapadas. Um dos novos contratados chamado Abdon ao ver a cena, teria parado de fazer seu serviço e comentado a alto e bom som que aquele só teria feito aquilo porque era uma menina, se fosse num homem não ficaria assim. Dito aquilo foi em socorro da pequena índia que se punha ao chão, quase desfalecida com a violência do castigo. Aquela atitude acabaria por provocar desenfreada ira no capataz que iria interpelar de modo grosseiro o gesto de complacência do peão recém-contratado. Este porém, já lhe aguardava, empunhando uma faca peixeira, e deixaria bem claro que se não os deixassem em paz não hesitaria em desferir-lhe tantos golpes fosse necessário para não mais os importunar. Ao galpão da casa grande, na grande mesa à hora do almoço, capataz Florêncio teria contado o incidente ao senhor Anacleto, que considerou como decisão mais acertada demitir o empregado Abdon. Este sabia que a menina era propriedade do arrendatário, propôs-lhe a compra da índia. O fazendeiro não se mostrou interessado na venda. Não havendo mais o que fazer, ao peão só restou uma alternativa juntar seus pertences e deixar a fazenda, não sem antes se despedir da menina que chorou ao vê-lo partir.

Três anos desde então se passara. E eis que o destino da menina índia novamente voltaria a cruzar com o destino do senhor Abdon. O senhor Anacleto foi num dia sábado à cidade de Água Branca comprar víveres. A cidade fervilhava por conta que era dia de feira livre. Senhor Anacleto teria levado Pretinha para livrar-se de um dente que a incomodava. Deixou-a aos cuidados do boticário e encarregou o jagunço Florêncio pelas compras. Dirigiu-se ao cassino para divertir-se, tomar vinho e jogar pôquer. Eis que terminaria reconhecendo entre os que compunham a mesa de jogo o seu ex-contratado, o ex-peão Abdon. Já não mais se assemelhava àquele indigente que um dia vira. Agora trajava terno de linho do qual exalava perfume. Trazia fino cigarro Camel de filtro aos lábios, e chapéu Coty na cabeça. Sobre o tablado de linho verde as cartas iam passando de mão em mão, o ar saturado de fumaça de charutos e cigarros. Os copos tintos e dourados de vinho e uísque. As apostas se sucederiam a cada momento. Senhor Abdon ganhava sucessivas rodadas, enquanto o tempo passava. Senhor Anacleto se dispôs a abandonar o jogo por não ter mais o que apostar, perdera todo dinheiro que trazia consigo. Senhor Abdon propôs que apostasse a índia, em troca de tudo que tinha adquirido naquela ocasião. A soma considerável de trezentos mil contos de réis, dinheiro suficiente pra comprar uma propriedade como aquela que possuía senhor Anacleto. O arrendatário topou a parada e num jogo extremamente nervoso, sob um clima pesado, senhor Abdon ganhou a índia Pretinha naquela mesa de cassino, numa aposta de pôquer.

Abdon trouxe Pretinha pra Santana do Ipanema quando dava de iniciar a década de quarenta. No cartório do Senhor Benício casaram-se civilmente ela escolheu pra si o nome de Maria Aparecida. Pediria ainda que uma última vontade sua fosse realizada. Na terra natal de seu companheiro queria morar à beira do rio Ipanema. Pretinha e Abdon foram morar ás margens do rio no qual aquela índia um dia recém nascida fora batizada pelo velho pajé Yavoi-Tuba que significa “Pai da Mata e do Rio” da tribo Funi-ô de Águas Belas. Arã-Yacany-Pitanga era o nome indígena da índia, que quer dizer “Nascida do Rio Vermelho”.


Fabio Campos

Liras de Santana, Liras de Nossas Ruas

Sempre retorno a rua em que morávamos quando criança. Fisicamente ou em reminiscências revejo nossos vizinhos. As fachadas das casas, a calçada, as ruas. Os raios de sol nos céus matutinos, nos crepúsculos de nuança vária que anunciavam luares de magnífico sertão. De tudo que recordamos o que captou a visão, ficou com muito mais ênfase do que se nos imprimiram os outros sentidos. Muito embora tudo o que ouvíamos, se nos chega com muita nitidez, mesmo que agora tudo pareça fazer parte apenas de um sonho.

O cantar dos passarinhos, na copa das árvores dos quintais sacudindo as cortinas do dia. O halo gélido do alvorecer, a alma das manhãs esvoaçante feito nuvem se desfazendo em orvalho. Embaçando as vidraças, umedecendo os biscuits na parede, as porcelanas no bufê. O hortelã deixando fluir sua essência sobre as coisas, misturando-se ao aroma encorpado de um café saindo do bule. Sinfonia de pardais. Eram esses alguns dos sons que anunciavam o dia, a cada dia.

O tilintar dos talheres, prenunciava a mesa posta. As bocas e as mãos alvoroçadas das mães acordando os filhos pra iniciarem suas jornadas. Se ouvia por toda a vizinhança a cada manhã, os sons de Deus, atividades e vozes humanas que nos acordavam. A casa de Seu Cariolano ficava longe. Porém percebíamos nitidamente à sala de estar um relógio de pêndulo. Sóbrio, resignado no seu ofício de ficar feito soldado britânico, fazendo a guarda da rainha. Tendo a obrigação de a cada hora se anunciar com seu som gélido, inquisidor, lento e pausadamente dizendo agora é tal hora. Na casa de Seu Leopoldo som nenhum durante toda a manhã ia se ouvir. Uma só vez o silêncio seria estilhaçado na manhã daquela casa, o estridente despertador na penumbra do quarto, exatamente às seis, acordando as coisas, mas sem nada conseguir tirar da apatia em que tudo se encontrava. Os sapatos comportados permaneceriam lado a lado. Gravatas, calças de linho e paletós tontos do cheiro de naftalina continuariam hibernando no roupeiro. Seu Leopoldo já havia ganhado o caminho da fazenda Boa Vista, o seu mundo. À cozinha Dona Maria preparava o café dos meninos. Na casa de Doutor Aderval o arquiteto pensou em tudo, no aproveitamento dos espaços. Esqueceu a acústica, longe ouvia-se o clap-clap das galochas de borracha de Dona Déa no piso de mosaico, a voz enfática ricocheteando nas paredes, nos umbrais ganhando o céu, ganhando a vizinhança, as recomendações a empregada antes de sair, as mãos girando a maçaneta e o molho de chaves chacoalhando e indo parar no bolso do macacão de jeans índigo blue. Acionando a ignição do jipe, o ronco do motor se afastando, em poucos instantes estaria pisoteando com aquelas galochas a bosta do bovino retido no curral, acompanharia a ordenha ouvindo vez outra o mugido longo e plangente das vacas entremeado pelo alegre som acobreado dos chocalhos.

Dona Maria Laranjeiras tinha um piano. Todos os dias ao cair da tarde Dona Maria tocava ao piano. E também dava aulas de flauta doce e cítara. À casa de Dona Maria respirava-se arte. Dona Maria Ourives ensinava esculpir na madeira. Dentre os discípulos de Dona Maria, tinha os gêmeos Kéops e Jacó, filhos de Doutor Adelson Isaac de Miranda. Zezinho filho de Dona Maria pintava quadros, naturezas mortas, paisagens, cenas urbanas. Impressionou o menino que fui, uma paisagem bucólica noturna, a beira do mar com luar. E da casa repleta de artes, cordas e pinos traziam músicas natalinas longe dos natais, músicas de ninar longe de criança pra embalar. Nas paredes quadros impressionista, cubista, desenhos de Alberto o outro filho de Dona Maria que era artista. Por sobre os móveis partituras, pincéis e frascos de tintas na mesa. Formões, cinzéis, pincéis, toras de tronco espalhados no chão que virariam belas peças depois de talhadas. A casa ateliê, sonho de qualquer artista, logo ali à duas casas da minha.

Gilvan Carvalho tocava violão. Gilvan era nosso vizinho pelo lado direito, a parede do nosso quarto ficava encostada na parede de sua casa. Todos os dias Gilvan dedilhava as cordas do pinho, tentando arrancar dele uma música que não saía. Tive vontade de aprender violão contagiado pela persistência, insistência, determinação do vizinho. O menino que um dia fui, por conta própria, compraria um violão. Num dia de sábado na feira do passarinho. Às escondidas no quarto se iniciaria sozinho no mavioso caminho das cordas aprendiz de violão. Duas decepções se seguiriam inibindo as vontade de ser um futuro violonista. Primeiro Marquinhos de Seu Breno alegaria ser muito complicado dar aulas de violão a aprendiz esquerdo. Concluiríamos que não apenas o violão mas o mundo fora feito para os destros. Papai ao ouvir certa vez o som das cordas ainda que abafadas pelas paredes do quarto evoluidas, na hora da janta faria um comentário que acabaria de vez com o sonho do futuro ex-violonista.

-Se encontrar um violão nesta casa. Quebro na cabeça do violeiro!

Ó mundo ingrato! Perdestes um violonista mas não perdeste um eterno apaixonado pelo violão. O menino que um dia fui continuou encantado pelo som produzido não apenas pelas cordas do violão mas também do bandolim, violoncelo, violino, cavaquinho, birimbau. Nas noitadas de seresta à Praça da Bandeira. Nas passeatas onde garbosamente desfilavam liras de vinte e poucos anos.


Fabio Campos