Negro Sulino

Santana do Ipanema cidade secular, encravada no médio sertão das Alagoas. Palco de histórias memoráveis, desde o Período Imperial brasileiro. De quando os primeiros desbravadores aqui aportaram resolvidos a cultivar a terra. Dispostos a domesticar e catequizar os indígenas com a ajuda dos missionários. A água em abundância do rio Ipanema garantia de boa caça e pesca. O rio oferecia-se inteiro, para gerar variadas fontes de renda dos seus novos e antigos habitantes. Rio manso deixou-se domar. Deu de si, o massapé pra preencher os tapumes de pau-a-pique. Água pro gado bovino. Madeira da mata branca pras edificações e cercados. Argila das encostas do curso d’água, donde se manufaturavam panelas, potes e tachos. O junco e a palha de suas barrancas, que os rurícolas cobriam suas habitações rupestres. Dele os índios vivam e tiravam seus artefatos de combate, utensílio domésticos, e pigmentos para ornar o corpo.

Santana do Ipanema em breve se elevaria a categoria de vila quando aqui chegaram os primeiros negros da descendência dos Bantos africanos – faltava trinta anos para a princesa Isabel assinar a Lei Áurea - os negros trazidos d’África pro Brasil chegavam na condição de escravos. Trazidos de Angola, República do Congo, Moçambique, Guiné Bissau. Pertenciam a grupos étnicos que os traficantes dividiam em Dembos, Macuas, Benguelas e Anjicos. Eram levados pelo litoral, nos porões dos navios, amarrados pelos pés e mãos para não fugirem. Comercializados nos dois grandes centros da época, o cais do porto de Salvador e Rio de Janeiro. Uma vez vendidos, aos mercadores de escravos, viajavam léguas a pé pro interior, para serem revendidos aos senhores feudais. Em Minas Gerais iam pra garimpagem de ouro, na Província do Rio de Janeiro pras lavouras de café, no Nordeste iam pra região Atlântica, pro cultivo da cana-de-açúcar. Parte deles embrenhados nos sertões, iam para a lida com gado bovino e o serviço doméstico das casas grandes de ricos comerciantes e donatários.

Um dia chegou a Vila da Ribeira de Santana, um comboio de mais de vinte pessoas e dez montarias. Havia entre eles mercadores de especiarias, alguns corsários, e um vendedor de escravos que trazia seis negros - quatro homens e duas mulheres - já vendidos. Uma encomenda do senhor Martiniano Vieira, donatário-herdeiro de parte das doze léguas de terras devolutas, compreendidas entre a Serra do Caracol à Ribeira dos Cabaços. Concedidas pelo imperador D. Pedro II, aos irmãos Martins. Os negros em fila indiana chegaram a pé. Traziam argolas, envolta do pescoço, que unia uns aos outros por uma corrente de ferro. Além de terem as mãos amarradas às costas. Cobertos de poeira - não fosse pela respiração ofegante e o andar claudicante- passariam facilmente por estátuas feitas de barro de louça. Sangravam dos pulsos e da sola dos pés. Os tropeiros pararam no largo defronte a igreja de Senhora Santana. Os habitantes da vila se aproximaram por interesses variados. Alguns para compra de manufaturados - vindos da província - tecidos, aguardente, fumo e pólvora. Outros por pura curiosidade.

Os mercadores de escravos aproveitavam a aglomeração no largo, para anunciar a Vila da Ribeira de Santana, sobre os seus mais novos moradores. Os negros de propriedade do senhor Martiniano Vieira. Dali por diante assim deviam ser tratado, como parte dos bens pertencentes ao donatário. Os negros foram levados para um barracão denominado de senzala, construído para aquele fim. Durante o dia os negros realizavam serviços de capina e plantio, pastoreio de gado e mil outras empreitadas. À noite recolhidos na rústica masmorra, cantavam cantigas de além mar. Cantigas de sua terra-mãe África. Canções na língua Haúça, um dialeto onde proliferavam palavras com muitas Gangas e muitos Zumbas. Os negros de origem africana eram rebatizados pelo missionário Francisco Correia, com nomes cristãos. Receberiam do catequista, nomes de santos da igreja católica de acordo com as datas de seus nascimentos. Àqueles não sabia determinar com exatidão a data em que haviam nascido. O frade batizou-os com o nome das principais províncias brasileiras, Salvador, Sebastião, Vicente e Agostinho. As mulheres passaram a se chamar de Tereza Cristina e Isabel, em referência a imperatriz e a princesa, respectivamente esposa e filha do imperador. Muito embora os negros jamais deixariam suas origens e suas crenças. Criam em deuses vários pra cada evento da vida. Praticavam rituais de vodun originados do candomblé Jeje. À noite ao redor de uma fogueira dançavam ao som de tambores evocando seus deuses. Sacrificavam pequenos animais, pediam proteção e clamavam pela liberdade perdida. Os brancos da vila passaram a respeitar e temer os negros pelos poderes imputados a eles. Acreditavam que tinham a capacidade de transformarem-se em animais, ou tornarem-se invisíveis em determinadas ocasiões. Poderes de ter o corpo fechado para o ataque com arma branca, e mesmo de serem imortais. Os negros mantinham ainda o hábito de falar no seu dialeto de origem, e seus nomes de batismo na mãe África. O negro Sebastião chamado na tribo afro de Heviassô-Agué que significa deus da caça e da floresta teria se amasiado com a negra Tereza Cristina, Ayizan-fa, rainha do mercado e da adivinhação, tiveram doze filhos. O primogênito cujo nome de batismo no ritual afro era Agassu-Lino que na língua Banto quer dizer “aquele que vem do reinado de Benin do Congo”.

Agassu-Lino tornou-se grande líder do povo afro que residia na Vila da Ribeira. Tornou-se uma lenda viva pelos prodígios a ele atribuídos. As negras Bás contavam histórias de dormir aos filhos dos brancos sobre as façanhas de Agassu-Lino. Histórias de suas caçadas fantásticas. Peripécias de ter matado onças e lobos gigantes com as próprias mãos. A proeza de ter enfrentado o próprio diabo. Os negrinhos da vila deram-lhe o carinhoso apelido de Sulino. Pelos muitos anos viveu, habitou o Alto dos Negros - um reduto Quilombola no Serrote de Seu Marinho - ao lado do seu povo. Originários e descendentes da tribo Banto. Já em idade avançada era consultado pelos brancos, que queriam livrar-se de mandingas e moléstias - que os atormentavam - em corpo ou em espírito. Sulino acabou deixando o morro e foi morar na cidade. Era comum encontrá-lo perambulando pelas ruas na madrugada. Acabaria acusado de bruxaria, de virar lobisomem em noite de luas cheias e de praticar rituais satânicos. Em 1975 quando completou cem anos de idade. Entrou em casa e fechou as portas, e não mais saiu. Seis meses depois, os moradores da vizinhança tomaram uma atitude, destelharam a casa e entraram, nem vestígio de Sulino. Cobras, sapos, aranhas e ratos os únicos ocupantes encontrados lá dentro.


Fabio Campos

A Natividade

José desposou Maria
Pois a ela escolheu
Sem saber que seu destino
Era ser Mãe do menino
O Ungido Filho de Deus.
Antes mesmo de casar
Eis que a ela apareceu
O Arcanjo Gabriel
Trazendo a Nova do Céu
Veja o que aconteceu

Não me temas ó Maria!
Eis que vós conceberás
Um filho homem terás
Lá aguardam esse dia
A Ele darás a luz
O chamarão de Jesus
No Céu é grande a alegria
De dúvida ela padece
Pois homem nenhum conhece
Não tenha medo,nem pranto

Te respondo o que me cobra
O que te acontece é obra
Do Divino Espírito Santo
O Anjo vindo em sonho
A José correspondeu
Maria foi escolhida
Sem pecado concebida
Para ser a Mãe de Deus
Deixe os Maus pensamentos
Mesquinhos e pavorosos

Vocês foram Gloriosos
Aceite-a em Casamento
Maria foi ter visita
A prima Isabel chamava
Pois grávida também estava
Vai ser a mãe do Batista
Isabel ao ver a prima
No seu ventre João mexeu
Uma saudação lhe deu
Entre nós serás bendita

Bendito o que traz no ventre
É o Redentor da gente
Minha palavra está dita
Tu serás a Mãe de Deus
E o filho que espero eu
Chamarão de João Batista
O que digo vem de cima
A herança de Davi
Representada aqui
A minha casa se anima !

Zacarias seu esposo
Se enche todo de gozo
Pois ele que estava mudo
Agora entende tudo
A sua língua se solta
E ele agora exorta
O menino Glorioso!
César Augusto imperador
Ordenou o centurião
Quero saber quantos somos

Israelita ou romanos
Contem a população
Veio gente de Nazaré
Assim Maria e José
No meio da multidão
Ainda grávida Maria
Pra o senso eles vêem
Pelas ruas de Belém
Procuram hospedaria
Não tendo onde ficar

Tiveram que se abrigar
Numa pobre estrebaria
José providenciou
Uma humilde lavradora
Para acompanhar Maria
O Filho de Deus nascia
Numa simples manjedoura
A noite ali chegou
Logo cobriu a cidade
A estrela no céu brilhou

Nasceu Cristo o Salvador
Viva a Natividade
O verdadeiro e Real
Se encarna O Verbo Divino
Veio a nós O Deus-Menino
Simbolizando o Natal
Os Reis Magos avistaram
A estrela de Belém
Lembrando das profecias
Sobre a vinda do Messias

Pra visitar eles vêem
Baltazar levava Ouro
Representando tesouro
Porque todo Rei o tem
Belchior Mirra levava
Uma erva apreciada
Muito amarga também
Cultivada e bem querida
Faz parte ela da vida
De toda Jerusalém

Gaspar presenteou incenso
Que nos lembra nascimento
celebra a paz e o bem
Seu aroma é amado
Deixa tudo perfumado
De um Rei lá em Belém
O Arcanjo Gabriel
Desceu das nuvens do céu
Vinha em faixa de luz
Veio adorar Jesus

Também uma Potestade
Dava Glórias um Arauto
Ao nosso Deus de Bondade
E Paz na terra do Alto
A todos de Boa Vontade!
Nasceu Jesus em Belém
Os Reis Magos descansavam
E no sonho um aviso
Não contem ao inimigo
Aonde Jesus estava

Rei Herodes,rei maldade
Ao se sentir enganado
Ordenou a seus soldados
Até dois anos de idade
Todo primogênito morre!
O anjo outra vez socorre
Apareceu de verdade
Alertando vai José
Desce para a Galiléia
atravessando a Judéia

Se instale em Nazaré
Num estábulo Deus nascia
Num leito forrado em flores
Tendo como companhia
Os Reis Magos e os pastores
A Ele os Anjos servia
Tocavam harpa e clarins
Cítaras som de mil tambores
Um Coral de Querubins
Num céu brilhante em cores

Pra lá foi toda Belém 
Até os animaizinhos
Prestaram a Deus carinho

Veneravam O Sumo Bem
O Galo cacarejou:
CRIIIISSSTO NASCEU!
O Boi manso perguntou:
A OOONNNDE?
O Bode então respondeu:
Em BEEEEEELEM!


Fabio Campos

Noite da Luz! Noite de Maria

Maria das Virgens ia ser avó. Sua filha mais velha estava para ser mãe. Na verdade uma criança ia ter outra criança. As três filhas de Das Virgens tinham exatamente oito, treze e quinze anos. Lembrou-se do dia em que ela mesma fora pedida em casamento contava com dezesseis anos de idade. Vinte cinco anos já haviam se passado desde então. Antonio, o noivo, nem empregado estava à época. Tinha acabado de ser demitido. Trabalhava no canteiro de obras da construção da usina hidrelétrica de Xingó em Canindé de São Francisco. Os serviços haviam parado. Mesmo assim tomou coragem e naquele fim de ano resolvera casar-se. Receberia uma soma considerável da rescisão de contrato. Com o espólio do seguro desemprego comprou, uma cama, um fogão, uma geladeira e uma televisão. Os pais de Maria das Virgens venderam as tarefas de terra do Sítio Baixa do Umbuzeiro que lhe pertencia por herança e isso ajudou os nubentes na compra da moradia própria. Foram ocupar uma casa à Rua Delmiro Gouveia. Daquelas da parte alta, com uma fileira de degraus pra escalar até seu interior. 

Nas noites de inverno dava pra se ouvir a sinfonia dos grilos e sapos nos baixios. O rio Ipanema ameaçava os casebres da ruela de baixo com tsunami cor de café com leite. Pra ajudar no orçamento doméstico Das Virgens fazia sacolé de polpa de frutas. Vendia em casa mesmo, aos estudantes que passavam pra Escola Ormindo Barros. Maria das Virgens terminou o curso de magistério e foi ser professora do serviço público municipal. Antonio passou uma época vivendo de bicos. Foi servente de pedreiro e pintor. Até conseguir, depois de ter feito um curso de segurança, um emprego fixo de vigilante no Departamento de Estradas de Rodagem. Era uma família feliz, as filhas foram aparecendo, e que episódio triste ocorreu àquele casal. Dois marginais invadiram o setor onde Antonio trabalhava e traiçoeiros tiraram-lhe a vida para roubar-lhe a arma. Maria das Virgens ficou viúva, só tendo a si, e suas três filhas.

No dia de natal, pobre viúva, tinha somente as três filhas de companhia. À boquinha da noite, Maria Lúcia começou a sentir umas pontadas nas costas. Após a ceia foi ao banheiro com as mãos nos quadris. Das Virgens, via tevê, ficou preocupada, perguntou se estava sentindo alguma coisa, se queria ir pro hospital. Disse apenas que não. Achava que eram só cólicas e que logo passaria. Não passou, pelo contrário aumentou. Maria do Amparo uma enfermeira amiga de Maria das Virgens estava de plantão no Arsênio Moreira veio até sua casa às pressas. Lúcia acabaria tendo o bebê em casa mesmo. E Maria do Amparo aparou e amparou o bebê de Maria Lúcia, aquela que deu à luz. Um menino, um varão - nasceu quando o relógio da matriz iniciava as doze badaladas - Ganharia o nome de Cristiano.

Bate o sino pequenino
Sino de Belém
Já nasceu o Deus-menino
Para o nosso bem

Maria da Luz era muito pobre morava lá no Bebedouro. Mãe de doze crianças. Seu Ostílio, o esposo, era agricultor. Vivia mais na roça que em casa. Só ia ver a família nos dias de sábado. Levava mantimentos. Parte comprava na feira, parte trazia do Sítio Capim Grosso perto da Remetedeira. A casinha que Da Luz ocupava com os filhos era muito pequena. As crianças, pobres crianças. Dormiam todos num único colchão. Naquela noite de natal, Maria do Rosário uma das filhas de Maria da Luz, uma menina, dez anos tinha. Esperou que todos irmãozinhos dormissem. Ajoelhou-se no chão. Ficara acordada na noite de natal para fazer uma oração. O sino da igreja, o pipocar dos fogos de artifício anunciavam o encerramento da missa do galo. As mãozinhas postas, a menina rezou, pedindo a Deus que o papai Noel naquela noite viesse a sua casa. Viesse trazer presentes pra ela e pros seus irmãozinhos, não precisava ser naquela hora, podia ser depois que ela adormecesse, mas que deixasse uma boneca no chão. Lamentou sua casa não ter lareira, seus irmãozinhos não terem botas para colocar na janela. E foi dormir.

Noite Feliz! Noite Feliz!
Ó Senhor Deus de Amor
Pobrezinho nasceu em Belém
Eis na lapa Jesus nosso bem
Dorme em paz ó Jesus
Dorme em paz ó Jesus

Maria Elisabeth morava próximo ao sítio Vaquejador, duas léguas depois do povoado Olho D’água do Amaro. Conheceu e veio a casar-se com Zacarias. Como viriam a conhecer-se foi dessas coisas chamadas de capricho do destino. Zacarias teria ido a feira do povoado Riacho Grande, comprar umas novilhas para seu pai pecuarista e açougueiro. Ao passar de cavalo por um barreiro resolveu dar de beber ao animal e avistou uma menina com uma bacia na cabeça, indo lavar roupas com sua mãe. Encantado ficou por aquela menina. Não entendia, era apenas uma menina. Voltaram a ver-se numa corrida de argola. Iniciaram um namoro e um ano depois estavam casados. A noite de natal estava bonita estrelada. Uma estrela com um brilho mais intenso veio vindo, vindo e pairou sobre o casebre. Ali nasceu João Batista.

Natal! Natal das crianças
Natal da noite de luz
Natal da estrela guia
Natal do menino Jesus


Fabio Campos

Belchior, Baltazar e Gaspar

Professor Belchior morava na Praça do Monumento em Santana do Ipanema. Vamos contar coisas de uma época em que não tinha ainda internet, nem celular. Tempo em que as nossas mães passavam o dia enfeitando a casa pra noite feliz. À vitrola som de harpa, melodia de velhos Long plays voando por entre as coisas. De porta em porta – ia mensageira - pela rua. Indo acordar o espírito das coisas natalinas. Frágeis bolas luzidias nas árvores de natal refletiam os rostos duendes de nós mesmos. Rostos de imensos narizes, deformados na fina camada de alumínio das esferas de cristal. Telefone, só existia os fixos, dos que se colocava o dedo num disco e girava, girava. Ainda assim nem todos tinham. Na nossa rua somente, Doutor Aderval Tenório, o promotor de justiça tinha. E meu irmão que estava longe, ligava no dia de natal. E minha mãe corria da cozinha, enxugando as mãos molhadas no avental. Apressada a tirar o lenço da cabeça, ia conversar com o filho distante. As mãos seguravam com carinho o aparelho como se afagasse o rosto do filho. Olhos rasos d’água, fixos num ponto qualquer, buscando a fisionomia do menino que, nunca crescera, nunca cresceria. O coração apertado, tanto quanto o fio enrolado nos seus dedos. A benção banhada de lágrimas. Um triste feliz natal de despedida. O professor Belchior fora amigo de infância daquele menino do Rio. Cresceram juntos jogando bola nas areias e tomando banho no Ipanema. Um dia lá no pátio do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, prometera serem sempre amigos. Uma amizade que jamais deveria acabar. E no natal, se estivessem distantes um do outro, cada um devia fazer uma caridade, como ensinava a professora dona Marinalva Cirilo. Professor Belchior agora adulto se lembrava daquele juramento. Tanto tempo havia se passado. Descobria com aperto no peito que a pureza, a inocência de menino, o mundo infelizmente havia roubado. Endureceu-lhe o coração tão sorrateiro que ele mal percebera. Estava resolvido a cumprir naquele ano o propósito de infância. Convidaria os demais colegas da escola, arrecadariam donativos e doariam as famílias pobres do alto dos negros.

O sapateiro Baltazar na bela noite se punha a um banco na Praça do Comércio. Desligado do mundo admirava as luzes coloridas piscando no meio do verde da árvore natalina. Aquilo trazia lembranças de um natal de outros tempos. O pensamento voou lá pro tempo de infante, quando ali naquela mesma praça dona Marina Marques organizava e apresentava um pastoril. Tanta divagação que chegou a ouvir a música cantada pelas pastorinhas.

“Meu São José dá-me licença
Para o pastoril dançar
Viemos para adorar
Jesus nasceu para nos salvar”

O chap-chap dos maracás nas mãos das belas pastoras. As torcidas pelo azul e o encarnado. As fitas balançando, a lapinha disposta com esmero. Areia do Panema pra apoiar a estatueta do camelo. Os pastores, igualmente estático, como se pousassem pro flash das máquinas fotográficas. Capim do poço dos homens pra manjedoura onde nascera Jesus. Pedras e pés de catingueiras do poço do Juá pra dar autenticidade ao cenário de Belém de Judá. Noite realmente feliz. Ainda não se pensava em natal como festa apenas de consumo. Era festa essencialmente religiosa. Baltazar tinha uma irmã que morava no Paraná. Todos os anos dela recebia uma encomenda pelo correio. Presentes pros seus três filhos, roupas e brinquedos. Um cartão, com uma árvore coberta de neve e letras douradas, desejava-lhes feliz natal. Colocaria junto ao porta-retratos de casamento. No início do ano iria pro álbum de família. Todos os anos iam a missa do galo, antes da ceia natalina uma oração. Os filhos abraçariam os pais, e se os padrinhos morassem perto, receberiam a visita dos afilhados. Tentariam angariar uma prenda. Baltazar tinha um segredo só seu. Todos os anos, no dia de natal ia ao Asilo São Vicente de Paula, e doava para os velhinhos alguns pares de alpercatas, feitos de si mesmo. Resolveu fazer diferente desta vez levaria pra alguns mendigos que dormiam na marquise do prédio do Correio.

Seu Gaspar era carpinteiro, morava próximo ao Viaduto Professor Deraldo Campos. Pela época do natal fabricava cavalos de pau pra presentear crianças pobres. Seu Gaspar morava sozinho num quartinho anexo a sua marcenaria. Tinha um universo de quinquilharia que qualquer criança ficaria fascinada caso conseguisse um passaporte pra uma viagem aquele mundo encantado. Ali podiam possuir o pó de pir-lin-pin-pin e navegar aquelas miniaturas de caravelas, aviões. Tronar-se o Pinóquio daquele Jepeto santanense. Viúvo a mais de vinte anos, tivera seis filhos todos já haviam casado nenhum morava em Santana do Ipanema. Aquela poderia ser uma data muito triste, se Seu Gaspar não fizesse ele próprio a diferença. Na noite de natal vestia uma velha fantasia de papai Noel e ia pelas ruas e praças distribuindo doces com crianças de rua.


Fabio Campos

O Sobrado

Um chapéu Coty na cabeça. Terno marinho, fino broche à lapela. Lenço branco esmeradamente dobrado no bolso, formando duas pirâmides. Calça de linho, sapatos de couro envernizado. As mãos alvíssimas, bem cuidadas, apoiada uma na outra, sobre os joelhos cruzados. O homem estava á mesa, sozinho. Tinha o rosto duro, mas naquele momento parecia tranquilo. Um bigode bem cuidado. Parou de olhar pro quadro na parede, minha presença chamou sua atenção, fitou-me. O que fazia ali? Os cabelos grisalhos denunciavam a meia idade. Tudo isso percebi dum só lance, ao subir a escadaria do velho sobrado, onde funciona o Conselho Tutelar do Município de Santana do Ipanema, ao fundo da Matriz de Senhora Santana. Dirigi-me a uma sala contígua. Procurava por um funcionário. Podia-se identificá-los pela farda, uma blusa vermelha carmim. Fui ali, pra falar com o Conselheiro Natan, colega de Faculdade. Tínhamos um trabalho pra fazer. Uma moça bonita, de longos cabelos negros, por trás de um pequeno birô, sorrindo-me - com lindos olhos negros, e dentes perfeitos - informou-me que meu amigo havia saído, mas logo retornaria. Resolvi esperá-lo. Voltei pra sentar à mesa, onde se encontrava o homem de trajes antigos.

O homem não estava mais lá. Havia um menino em seu lugar. Dez anos talvez. Cabelos crespos em desalinho. Pele morena. Trajava uma surrada camiseta do Corinthians, e um calção de poliéster, em idêntico estado de situação. Nos pés rajados de poeira, um roto par de chinelas de dedos. Tinha o rosto marcado por manchas de grude, suor e lágrimas. Havia chorado. Esperava. Dois bonecos, réplicas de heróis de vídeos games que tinha, punha pra brigar sobre a mesa. Não demorou e Natan chegou. Cumprimentou-nos, e foi resolver o caso do menino. Quis deixá-los à vontade, fui até a janela. Dali tinha-se uma visão magnífica. Além do que o sol da tarde fazia o colorido das coisas ainda mais vivo, pulsante. As coisas de metal, luminárias dos postes, canaletas d’água, reluziam com sagacidade. O imponente casarão do museu Darras Nóya, com sua fileira de janelas, remetendo-nos a tempos imorredouros, de uma Santana do Ipanema colonial. Transeuntes, alheios ao que aquele casario um dia presenciara e pra nossa história representava, passavam incólumes. Parte do largo do comércio flertava-nos pelo estreito beco. A fachada das casas comerciais, o Mercado Municipal da Carne. O inicio da Rua Tertuliano Nepomuceno. Um céu quase emerso dum mar de azul turquesa que nunca foi da Turquia. Pras bandas do Norte flutuando lentamente, uns capuchos branquinhos, que a gente quando era menino chamava de carneirinhos.

Sem tirar os olhos das nuvenzinhas que se esquentavam ao sol, rumando alvissareiras pro poente, percebi meu amigo aproximar-se. Perguntou-me se sabia que aquele sobrado era mal-assombrado. Disse-lhe que não sabia. Sem sairmos da janela, contaria que certa noite teve que vir a repartição, e ouviu o choro desesperado de duas crianças num dos cômodos, foi até lá e nada havia. Daí pôs-se a contar uma história. História de um tempo que não havia ainda energia elétrica, nem água encanada em Santana do Ipanema. Tempo em que senhores feudais e missionários, desbravadores viajaram de terras longínquas para se estabelecerem em terras devolutas, concedidas pelo provisório governo colonial. A prosperidade que aqui vislumbravam, trouxe pra cá comerciantes, que apostavam num enriquecimento rápido, num acúmulo de fortuna, com a exploração das riquezas naturais que por aqui havia em abundância, madeira, couro, algodão. Traziam de muito longe, tecidos, perfumes e especiarias. Remanescentes de corsários fugitivos das invasões holandesa e francesa também vieram pro sertão, caravanas de ciganos. O mundo deu muitos giros, e vieram trupes de saltimbancos, cartomantes, vendedores ambulantes e artistas. Mágicos e atores excursionavam pelos sertões levando espetáculos circenses para divertir o povo, em teatros improvisados, ou mesmo na via pública.

Vamos à história. Naquele sobrado viveu um rico comerciante e sua família – dizia Natan – O senhor Apolinário Fontes Maia, homem influente, casara-se com dona Genoveva Cruz e Souza, filha de ilustre donatário. Tiveram dois filhos, Filadélfia e Felisberto, uma menina e um menino, que tinham à época do dia fatídico, nove e dez anos respectivamente. O dia fatal aconteceu porque o senhor Apolinário descobriu que sua esposa o traia. Enquanto tomava uma bebida no quiosque do velho Quelé, na Rua do Sebo, perto da Cadeia Pública, deixou que uma cigana lesse sua mão, teria sido orientado a deitar cuidados a sua esposa pois segundo a cartomante já não era merecedora de sua inteira confiança. Passou a investigá-la por conta própria. E constataria verdadeira a denúncia da mulher nômade. Sua digníssima esposa, pessoa recatada, respeitada perante a vila e toda parentela estava lhe traindo. Não entendia como sinhá Genoveva que ao menos em aparência o amava e respeitava. Uma madama prendada nos dotes domésticos e na educação da prole. Uma mulher temente a Deus, cultuada nos serviços da igreja. Como ainda assim o traia? Levava pro leito conjugal um jovem, de nome Carlos Floriano, um boêmio, jogador de baralho. Da janela onde estávamos Natan apontou outro sobrado, no outro lado da rua. Diria que naquele, funcionava o Cassino Lira D’ouro, donde o mancebo comunicava-se com a matrona. Desta janela - dizia ele - a madama acenava furtivamente com um lenço pro amante. A depender da cor, ele poderia, ou não, vir na calada da noite, para o encontro amoroso. Pelos fundos da igreja matriz havia um terreno baldio, por onde o jovem escalava o muro e chegava ao sobrado.

O dia fatídico foi quando o senhor Fontes Maia, enganando a esposa, não viajou a Pão de Açúcar como frequentemente fazia. Retornando ao sobrado naquela madrugada, flagrou os amantes, o rapaz conseguiu fugir completamente despido. Tomado de impetuosa fúria o comerciante investiu com uma faca peixeira contra sua mulher desferindo-lhe dezoito golpes. Filadélfia e Felisberto apavorados partiram pra cima de seu pai para tentarem salvar a mãe, mas vosso pai como em possessão demoníaca desferiu igualmente outros golpes fatais contra as duas crianças. Depois de colocar os cadáveres nas suas respectivas camas. O senhor Apolinário abriu uma garrafa de vinho, pôs o gramofone pra tocar um bolero. Vestiu seu melhor terno marinho, broche de lírio à lapela, calça de linho, sapatos envernizados. Buscou uma corda na dispensa e enforcou-se, no caibro central daquele antigo sobrado.



Fabio Campos