Cachimbo Eterno

Santana do Ipanema constitui-se de colinas, em seu arrabalde são elas que definem a paisagem. Delineiam o retrato da cidade. No inverno, o sol, no seu movimento aparente - devido à inclinação da terra – passa do hemisfério sul para o hemisfério norte do mundo, é o Equinócio Vernal. Entre a Serra Aguda e o Alto da Cajarana, por atrás daquelas montanhas, é ali que o sol vai se por. No verão, quando temos dias mais longos, ocorre o Solstício de inverno no hemisfério norte. O astro-rei dá o ar de sua graça com mais intensidade por estas paragens, vamos ter a impressão que ele se desloca um pouco para o noroeste. Proporcionando crepúsculos extraordinários.

Ao reclinarmos nosso olhar um pouco para Oeste deparamos com uma pequena elevação rochosa, o Alto do Cruzeiro. Coberta de verde o ano inteiro, a montanha é encimada por uma protuberância de granizo. A imensa jazida está posta feito um solidéu, o gorro que os judeus ostentam no alto da cabeça. Na semana santa - Formigueiro de peregrinação - o alto daquela montanha, está para os santanenses, como o horto do meu “padrinho” Cícero está para o sertão do cariri do Juazeiro do Norte. A elevação proporciona a quem a ela almeja a graça da contemplação. Reflexão do golgota, do martírio de Cristo ainda aqui na terra.

Nos dias frios, o terral envolve o cume da montanha criando um aspecto mítico. Remete ao observador a magníficos cartões postais dos Alpes suíços. Todo esse fascínio somente - a quem é, ou tornou-se santanense - o é permitido perceber, e usufruir de sublime deleite. Sob a base do Serrote vislumbramos um aglomerado de edificações. Enfileirado de habitações que vai salpicando o sopé da montanha, feito os forros que guarnecem a barra da saia de uma noiva. No passado só existia ali, esporádicos casebres de pescadores. Donde fluía de rústicas chaminés, o fumo negro liberado da queima do carvão, nos fogões à lenha. Refúgio natural do espírito da urbe. Do alto, o cruzeiro, a contemplar o tempo inteiro, o centro da cidade de Santana do Ipanema. Santuário de rara beleza, envolto numa aura de diafaneidade e misticismo perpetuo. Por tudo que representa foi batizado pelo povo com o adequado nome de Cachimbo Eterno.

Em 1879, Santana do Ipanema, já havia sido elevada a categoria de Vila. O padre Francisco Correia nomeado para catequizar nesta freguesia, teria sido chamado a comparecer a Arquidiocese de São Salvador na Bahia, até 1892 configuraria como a maior arquidiocese do mundo. Penedo detinha o título de catedral. Belíssima Catedral de Nossa Senhora do Rosário. Olinda e São Luiz do Maranhão ainda prelazias. O padre fora convocado por Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo, Arcebispo da Bahia e Bispo Primaz do Brasil. O missionário que respondia pela freguesia da Vila da Ribeira de Senhora Santa Anna estaria sendo convocado para se justificar perante a Cúria episcopal, sobre a acusação de operar milagres perante seus paroquianos. Corria pelo sertão histórias que o padre era um homem santo de Deus. As coisas alardeadas e atribuídas a sua pessoa acabou chegando à Sé Primacial do Brasil, a mais antiga das Américas. Diziam que em certa ocasião, o padre no meio do sermão parou a pregação – como em transe, dizia estar tendo uma visão - um amigo frade, distante de onde ele se encontrava milhares de quilômetros, acabava de morrer naquele exato momento, viera despedir-se dele. Dias depois o que dissera se confirmava, também sobre curas milagrosas. Crianças em leito de morte, tendo sua saúde restabelecida só pela chegada do missionário na residência onde se encontrava a criatura enferma. Isso correu feito rastro de pólvora, o estopim a Diocese de São Salvador da Bahia. Ao clero, incomodava essas histórias de santidade. A inquisição estava instalada, o que levou a gerar um inquérito clerical contra o padre, o veredicto poderia resultar no afastamento do missionário de suas funções. Padre Francisco, preparou-se por meses para a longa viagem, muito embora, nunca chegaria a ser interrogado pelo Bispo Primaz do Brasil. Dom Joaquim, veio a falecer em 06 de novembro daquele ano.

Certa feita, padre Francisco se preparava para mais uma de suas viagens, sentado a mesa para fazer a refeição matinal, olhando pelo vão de uma das imensas janelas do velho casarão ao lado da igreja, que servia de casa paroquial, vislumbrou o serrote do Alto do Cruzeiro. Sem tirar os olhos de lá, comentou com sinha Eudócia - a preta velha cozinheira da residência do pároco - naquele sábado ia chegar a Santana do Ipanema um estrangeiro. Um forasteiro que ia mudar a história daquele serrote. De fato, se confirmou mais aquela visão do padre, na manhã do primeiro sábado do mês de dezembro de 1879 chegou a Santana do Ipanema, mais precisamente a margem direita do rio Ipanema, vindo do sul, um senhor branco, de meia idade, se apresentou ao intendente municipal pelo nome de Domingos Acácio.Num comboio de seis montarias e um carro de boi. Mulher, um casal de filhos iniciados na puberdade, e um negro escravo seu fiel escudeiro. Assim chegou, em trajes de caudilho Domingos Acácio. Deteve-se a examinar as cercanias da vila. Com as mãos fez concha e provou da água salobra do rio, atravessou de canoa. Ocupou com a família, uma casa no centro da cidade. Cedida a título de empréstimo, pelo intendente Coronel Capistrano Rodrigues. Com o senhor Manoel Rodrigues Rocha Ouvidor-Geral da Vila da Ribeira de Santa’Anna negociou a compra de um lote de terra fincado a sudeste da vila à margem direita do rio Ipanema. As terras compradas pelo mais recente habitante da vila ficavam no sopé da montanha, ali se estabeleceu e ergueu moradia. Trabalhou e cultivou a terra. Instalou uma espécie de entreposto onde comercializava com os viajantes, mercadores e camponeses. Comprava para exportar, pele de animal, capucho de algodão, feijão e milho. Vendia corda de caruá, querosene e sal de cozinha. O colono mercador prosperou. Em sua própria residência improvisou uma sala onde sua esposa dava aula as crianças daquela extensão da vila, uma vez que se quisessem estudar tinham que atravessar o rio de canoa. Era um homem temente a Deus, por ocasião da quaresma com os ribeirinhos subia o Serrote onde fincou o primeiro cruzeiro, tempos depois ergueria uma capela. Devido ao sotaque carregado ao falar, Domingos Acácio denunciava sua descendência hispânica. Diziam que havia lutado na guerra do Paraguai. Preferia ser conhecido como mais um dos netinhos de Santa Anna, afinal havia provado da água do Ipanema.


Fabio Campos

O Menino e o Gigante

Vamos contar história. História caseira, dessas que se conta em fundo de quintal. História com certidão de nascimento, com cartão de vacina, que teve dia e hora pra começar. Historieta que só interessa ao dono. Dessas, que a gente inicia dizendo “Querido Diário...” E quando termina, guarda com carinho, pra muito tempo depois abrir a gaveta do criado-mudo, e sob a luz do abajur reler e chorar. Historiazinha pequenina, do tamanho da alma do autor, que se inventou de escrevê-la, muito embora gigantona como o protagonista que a concebeu. Ela se inicia no dia que o menino Thomas, de apenas dois aninhos veio ao mundo, mas já tem história pra contar. Era um dia vermelho, no calendário. Feriado nacional, desses que o comércio é obrigado a fechar as portas, não porque Thomas tenha nascido, mas porque um marechal, um desses homens velhos, sisudo, de longa barba, desses que vão parar nos livros de história - num dia como aquele, noutro século - proclamou a nossa República. Fazia uma dessas manhãs imensamente cheia de luz, em que o nosso conto de fadas veio ao mundo. Quanta alegria se depositara no coração dos que o aguardavam. O menino nem bem havia nascido e nem sabia, mas já havia ganhado um gigante.

No início não passava de uma bolinha de gente. Frágil criaturinha nem destino certo tinha. Sem rumo, não sabia o que fazer da vida. Vivia passando de mão em mão, olhinhos fechados. Tudo era novidade o tempo todo. Uma vez aqui, tinha que fazer alguma coisa, além de respirar. Aprendeu a sugar o leite materno. Criou uma rotina bacana, enchia a barriguinha - punham-no pra arrotar - e dormia. Descobriu que tinha que evacuar, chorava pra que alguém o limpasse e dormia. Será que a vida toda, ia ser só isso? Comer, arrotar, dormir, evacuar, chorar e dormir novamente. Nesse tempo – que talvez deva ter durado uma eternidade – apareceu um gigante. O gigante levava-o pra tomar banho de sol. Nunca tinha visto tanta luz. O gigante conversava com ele, porém nada compreendia do que se passava, mas pra que compreender? Compreender era coisa de gente grande, precisava mesmo era curtir cada momento! Talvez se lembrasse do primeiro mundo em que vivera, onde só havia penumbra. Na verdade escuridão total. Ali, flutuava num líquido morno, feito um astronauta, ligado a nave-mãe pelo cordão umbilical. Sons estranhos eram percebidos, vindo de um mundo externo. Quando já estava perto de vir pra este mundo de cá, viu a luz pela primeira vez, um cometa cruzou seu céu - a luz da ultra-sonografia - várias vezes. Os sons antes ouvidos, aqui fora eram mais perceptíveis, mais claros. Conseguia identificar pelo timbre da voz, as pessoas com quem convivera até então. A retina ainda em formação, não permitia distinguir com nitidez a forma das coisas, das pessoas. Era mágico, fazer descobertas a cada momento, aprender coisas novas, a cada instante, adrenalina pura! Tudo era percebido meio anuviado, diáfano. Como se inverno. Tinha que estar agasalhado o tempo inteiro. Bom sentir o carinho dos que o rodeavam. Bom ouvir fala de pessoas, mesmo que nada entendesse do que diziam, ainda mais porque, umas com as outras falavam gritando, com ele falavam de forma engraçada, abobalhada. Abanavam suas bochechas e orelhas, riam e bolinavam com insistência seu sexo. Se lhe fosse possível devolvia o maldito afago da mesma forma.

Novas conquistas a cada dia, conhecer, descobrir. A cabeça se firmando pouco à pouco no pescoço, firmeza pra segurar objetos, quanto mais colorido mais atraente. Tudo que pegava levava à boca, por ali aprendera a explorar o novo mundo. Aprender que chorar era o único recurso de comunicação, sua primeira língua de sinais. Então chorava se tinha fome, novamente o choro pra dizer que tinha cólica. Uma sequência de berros pra alguém trocar a fralda. O menino ia entendo como viver no novo mundo. No início a vida significava necessidades a serem supridas, comer que dava um prazer enorme. Dormir que proporcionava uma viagem fantástica pelo mundo dos sonhos, e como sorria enquanto dormia. Comentava-se que enquanto sonhava, sorria porque via anjos. O mundo era distinguido entre claro e escuro. Entre silêncio e barulho. Pessoas tinham cheiro, tons de voz diferente e forma de carinho também. A mamãe cheirinho de leite e de talco. O papai cheirava a suor, braços duros, desajeitados. A vovó perfume forte, carinhos exagerados. A titia cheiro de chiclete. Vovô, às vezes álcool puro, barba dura. Se não tinha sono, vinham as cantigas de ninar, que saco! Um monte de frases repetidas, feito disco arranhado. Balançado, solavancos no braço que o deixava meio tonto, assim não tinha quem não dormisse.

E o menino completou um ano de vida. Quanta alegria pelos primeiros passos, ampliavam-se os horizontes. No dia que fez aniversário estava internado com pneumonia, no hospital de Palmeira dos Índios. Gente de branco, isolamento, corredores, não sabia o porquê, certeza apenas que na era seu antigo habitat. Triste tarde de despedida, após a visita, na hora de vir embora, choro contido, o gigante tendo que deixá-lo a sós, ele e a mãe. E foi uma festa ouvi-lo balbuciar o arremedo de uma palavra: Papá, entendido como se estivesse querendo dizer papai. Vovô, um par de sílabas repetida, fácil de pronunciar. O menino passou a levar o gigante pra passear. Na contemplação, mostrava-lhe o quanto era interessante as coisas, as criaturas de Deus, uma árvore, uma folha, um grilo, um gato, uma galinha, um cavalo, um cachorro. Coisas que o próprio gigante já havia perdido o real significado. Tudo passava a encher de admiração, a ambos. Ao pequenino, porque nunca tinha visto, ao outro, porque estava reaprendendo a ver. Interessante descobrir que havia coisas que se movia e coisas inanimadas. A terra e a água, que poder de atração sobre o pequeno exerciam. Água que se movia, mas não era bicho. Como era bom ter um mundo pra conhecer.
Entre os vários brinquedos que ganhou, um dos que mais gostava era o gigante, não quebrava, não necessitava de pilhas. Brincavam de esconde-esconde, de cavalinho, de soldado, rei e castelo. O gigante fugia do seu mundo, pro mundo do menino que era muito amado pelo seu grande brinquedo. Um beijo carinhosamente depositado no rosto passou a ter um significado muito amplo pro gigante, sentindo despertado pelo menino que nem noção disso tinha. Lua, palavra doce, fácil de pronunciar, bola mágica que aparecia e desaparecia nas tardes de recreio. E o rosto, o coração de pedra, as grandes mãos do gigante, de dedos que viravam tentáculos envolviam o pequenino e o elevava, a lugares nunca dantes alcançados. Mãos que contavam histórias. Histórias que falavam de floresta, de lobo, de seres bons e maus, que faziam coisas ruins, mas aonde o bem, sempre, sempre prevalecia.


Fabio Campos

Sagrado Coração de Jesus

Santana do Ipanema nasceu no coração do sertão. Santanense que se preze nunca esquece seu torrão natal. Quem nasce na caatinga jamais esquece sua terra. Diz um ditado “quem bebeu da água do Ipanema, ainda que tenha partido, um dia volta”. Volta porque um dia matou a sede com o néctar da flor do sertão. Saboreou o licor precioso que perpetua a vida. Isso vai sendo passado de geração a geração, pelo sangue. A aridez do clima, as coisas do sertão acabaram indo parar nas mãos, na pele, no coração do sertanejo. A água do Ipanema refrigério pra garganta e pra alma do sertão. A beleza e exuberância da vegetação estar nos olhos da mulher sertaneja. A água salobra acaba vertendo dos olhos do caboclo, se longe se encontra do seu torrão natal. 

O Sertão 

Quando o galo canta na alvorada. O Criador se inicia a pintar mais uma de suas obras. O céu transfigurando-se de esplendor vai clareando, o nascente da cor de fogo. Como se a maior de todas as coivaras estivesse ardendo além do horizonte. O tênue fio de negrume pontilhado de estrelas vai deixando lentamente o firmamento. O breu da noite se esvaindo do céu. Feito cortina puxada pro infinito. Donde se deixa vislumbrar um magnífico cenário rico em beleza. Isso é o sertão. Extraordinário palco onde o mais belo espetáculo se inicia, a cada dia. Os casebres de barro sob a luz do sol vão tomando forma, a coberta das moradias vão projetando suas palhas contra o céu. A irregularidade das curvas do pau-a-pique. O barro sob a luz vai deixando de ser apenas silhueta, adquirindo a cor original. A manjedoura cheia de palma, o cheiro forte de Aloe vera, ruminada na boca dos bovinos. Ainda que longe da Judéia o sertão, lembra com riqueza de detalhes, o antigo cenário de Belém, onde Jesus nasceu. O cabrito berrando no chiqueiro. Galinhas, marrecos e guinés no terreiro, embaixo dum pé de umbuzeiro, se pondo a ciscar catando o que comer. Com paciência bovina, a vaca deixando-se ser ordenhada. O jumento atado a uma estaca pelo cabresto, abana o rabo e a cabeça, tentando livrar-se dos mosquitos. A caatinga de chão forrado, com tapete de facheiros, chique-chiques, coroa de frades e rabos de raposas. Acauã cantando no olho da craibeira. Calango sardão se camuflando sob as folhas secas de catingueira, se esconde do astucioso Carcará. O majestoso mandacaru com seus imensos espetos. Seu fruto carmim assemelha-se ao coração de Jesus traspassado pela coroa de espinhos. 

O Sertanejo 

Os tons marrons e castanhos dominam a paisagem do sertão. De cor marrom, é a pele do vaqueiro. Tanto sua pele legítima, quanto as vestes de couro de boi que o recobre para protegê-lo do sol. Chapéu de couro e gibão, perneiras, peitoral e alpercatas. A cela e os arreios de sua montaria. Moreno é o couro do boi e do cavalo. Marrom e a madeira envelhecida dos bancos, dos tamboretes e da mesa de umburana de cheiro. Marrom e o chão rachado do açude seco. Donde o sertanejo tira a cerâmica que molda o tijolo, a telha, o pote e a panela. Dali o barro das esculturas de mestre Vitalino. Dali o massapé, a argila das entranhas, do corpo, da casa, e da alma do sertanejo. A corda de caruá entrançado. Acastanhada a corda que laça o boi, que apeia o bicho brabo. A corda que desce a vasilha até o fundo do poço e acorda a água. O cordel de barbante arqueado pelo peso das roupas postas pra secar. A poesia quarando no meio da feira. Castanho o cachimbo, a palha seca de milho e o fumo. Marrom, a água de barreiro. Castanho o apito de chamar o espanta boiada. O pião e a ponteira, a baladeira do menino. Marrom o cupinzeiro, o formigueiro, o enxame, a abelha e o zangão, o Louva-deus e o Cavalo do cão. Marrom o quengo do coco e a cocada. A paçoca, o amendoim, o doce de leite, o cravo e a canela. O bolo de mel de uruçu. Morena a casca da macaxeira, do inhame e a raiz da mandioca, do umbuzeiro, a casca do angico. Marrom a Carraspana, a rapadura, o mel de engenho. A garrafada e a raspa do tronco do juá. Castanho os olhos da morena. Lá na Galiléia uma moça de cabelos morenos foi a escolhida para ser a mãe de Jesus o filho de Deus. 

O Coração de Jesus 

Santana do Ipanema tem nos seus modos e costumes, o jeito da cidade de Jerusalém. Nos seus becos estreitos. No sobe e desce das vias e ruelas. No clima e na vegetação. Nos lugares sagrados de oração. Igrejas e santuários réplicas das antigas sinagogas. O sertanejo e sua devoção levam-nos a acompanhar os missionários nas santas missões. Atravessam noites em vigílias e orações. Realizam novenas e procissões. Ensejando cânticos de louvores vai à multidão. Romaria, um caminho mais longo, uma peregrinação maior para expiar os pecados. O ex-voto, feito para representar uma graça em Deus alcançada. Vão levando piedosamente, sobre um andor ricamente ornado, a mãe da mãe Santíssima, Senhora Santa Anna. Ela quis habitar no coração do sertão, por ser lugar, semelhante à Judéia, onde viveu enquanto esteve aqui na terra. Na casa dum autêntico sertanejo, sempre vai se encontrar a imagem do sagrado coração de Jesus. 

Um dia, lá atrás, na tenra infância, sentado no batente à porta de casa, na companhia de meu pai. Chegou-nos à calçada um pintor sacro também fazia restauração. Expôs-nos sua arte. Meu pai foi até lá dentro, voltou trazendo o nosso Sagrado Coração de Jesus. A moldura se encontrava desgastada, carecendo de reparos. Ali mesmo na calçada, foi acertado o valor para que o peregrino artista restaurasse a moldura do quadro. Ainda hoje está lá, encravado de espinhos, pagando o preço das nossas faltas. Porém restaurado. Protegendo a nossa família, o meu, o seu, o nosso, Sagrado Coração de Jesus.

Fabio Campos           





Corrida no Sertão


Santana do Ipanema, sertão das Alagoas no ano de 1962. Ainda que longe da Califórnia e do Arizona, tinha as características de uma cidade do oeste americano daquela época. Um posto de gasolina na entrada. Uma lanchonete. Uma avenida quase deserta. A cidade crescia à beira de uma rodovia. Lugar aonde se ia por dois motivos, para rever os familiares, ou apenas de passagem. Reduzido casario enfileirado. De fachadas coloridas, ainda mais coloridas se verão. O pó de barro vermelho levando pelo redemoinho acabava por ir deitar-se sob os móveis das casas, nos birôs das repartições. Melancolia se fazia no cantar do pássaro na gaiola. O cão latindo no quintal. O cantarolar da negra Bá vindo lá da cozinha. A única atividade que punha algum movimento aquela paisagem estática, era os meninos jogando bola no areal do rio. Alguns deles se ocupavam de atirar pedras tentando derrubar castanholas, do frondoso pé de amêndoas na foz do Camoxinga. Outros cuidavam de reconhecer formas de animais e seres fantásticos se metamorfoseando nas belas e alvíssimas Nimbus, Cirrus e Cúmulos no véu azul do firmamento. Santana do Ipanema no início da década de sessenta era assim. Isso se fosse verão.

Se inverno, esmorecia as cores das coisas. A paisagem de verde exuberante e doirado alegre do sol, dava lugar a um céu plúmbeo ameaçador. Tudo se envolvia de umidade. Os fungos faziam a festa, esverdeando o pote de barro, as telhas das casas. Cobria-se de musgos a portinhola da cisterna. Os vitrais e janelas bufos, retesavam-se de frio, como se as casinhas cochilassem sob a aragem das manhãs friorentas de julho. Uma preguiça boa descia pela rua principal, levada pelo halo gélido da serração. A monotonia só seria quebrada, caso aparecesse um viajante. Se ali chegasse um forasteiro. Se apontasse no horizonte um automóvel, e acordasse a cidade com o ronco do motor. Naquela época só alguns poucos possuíam carros. De modo que a chegada de um carro estrangeiro era imediatamente percebida. As pessoas mesmo dentro de suas casas reconheciam os carros, pelo som que os motores produziam. Identificavam assim, a quem pertenciam.

No bairro Monumento possuía automóvel, o pecuarista Leopoldo Oliveira, uma caminhonete Chevrolet. O promotor de justiça Aderval Wanderley Tenório um Jipe e um Sedan. O empresário Domício Silva, um Candango e uma caminhoneta, os médicos Doutor Jório e Doutor Clodolfo Rodrigues de Melo. Doutora Nícia possuía um Carmanghia, o professor Ernandes Brandão uma Lambreta, Eugênio Teodósio, José Francisco e Milton dos Anjos eram caminhoneiros. Abílio Pereira, Izaías Rêgo, Alberto Agra e Idelzuito Melo eram pecuaristas e comerciantes, também estes possuíam carros. Bem como alguns professores e bancários do Banco do Brasil, Esdras, Elias, Mardônio Brandão, Djalma Carvalho, Zé Pinto entre outros. Santana já dispunha de alguns poucos “carros de praça”, na verdade os americanizados táxis. Entre os taxistas havia o negro Manolo, Zé “V8”, Zé Carlos e Zé Nobre.

A maioria dos filhos de proprietário de veículos, moravam e estudavam em Maceió. No mês de julho - mês das férias escolares - retornavam a Santana do Ipanema pra passar as férias, rever os parentes, e participar da grandiosa festa em louvor da excelsa padroeira da cidade, Senhora Santa Anna. Foi numa fria e aconchegante noite do mês de julho daquele ano, que alguns destes jovens reuniram-se no Tênis Club Santanense para deliberarem sobre como preencher, com uma atividade recreativa, aqueles dias de marasmo naquela cidade provinciana. Entre estes estavam, Nenoi, Marcio e Josa Pinto, Floriano Silva, Jonas Pacífico, Zé Panta, Zequinha Caiçara, Praxedes, Zé “V8”, João Neto entre outros. Influenciados pelo grande sucesso do cinema “Juventude Transviada” vivido pelo ator de Indiana, Estados Unidos, James Dean decidiram que o melhor seria promover uma corrida automobilística.

Tudo foi acertado naquela assembléia noturna. Uma equipe de organizadores foi formada. Primeira Corrida da Juventude, foi o nome escolhido para o evento que seria no dia da juventude. O que aqueles jovens pretendiam, nem era tanto garantir o troféu de primeiro lugar, ou mesmo o rateio da bolsa de apostas que se formou. Ou mesmo, criar entre si o clima de competição, o que queriam de verdade, era impressionar com suas performances, as jovens normalistas. As moças que estudavam na Escola Santo Thomaz de Aquino.

E eis que chegou o grande dia. Nada podia tirar o brilho daquela festividade. Nem mesmo o frio que obrigava os participantes da corrida, e a resumida platéia nas calçadas e na Praça do Monumento, a se agasalharem ou abrigarem-se sob sóbrios guarda-chuvas, capas pretas e galochas. O Largo da igrejinha de Senhora Assunção seria pra toda posteridade, palco do grandioso espetáculo, desde o início. Ponto de partida, e de chegada dizia a faixa esticada sobre a via. Uma bandinha de tocadores de pífano sobre o coreto da Lanchonete “O Pinguim” dava um tom alegre, e o insistente pipocar de foguetes dava um ar de quermesse. Um prazeroso jeito de festa de interior. A fina garoa que teimava em cobrir de orvalho a pintura dos possantes carros que iriam disputar o certame, combinava com as suadas canecas de cerveja nas mãos dos rapazes. Foi dado início a corrida. As autoridades todas ali presentes num palanque improvisado. O padre Fernando Medeiros, o prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, O Juiz de Direito e o promotor. Os professores e os alunos e seus pais. Entusiasmado assistiam a primeira corrida de automóvel que presenciavam em suas vidas. Os carros um a um, deviam ir até o início da Rodovia BR 316 – nas imediações que dava acesso a capital do Estado, Maceió – deveriam contornar a Praça das Coordenadas, e voltar ao ponto de partida que era o de chegada.Vivas! Vivas! E aplausos! À Zé V8 o grande vencedor! O que completou o percurso em menor espaço de tempo.


Fabio Campos