Joaquim e Ana


Santana do Ipanema àquela manhã de sábado alvorecera efusiva. A Praça do Monumento vivia efervescência de festa. Motoqueiros a todo instante chegavam às suas motos possantes. Exibição de potentes máquinas barulhentas. Espetáculo a luz do dia, a céu aberto. Evoluções acrobáticas na via pública para deleite de um público extasiado. Toda sorte de acessórios pras máquinas caríssimas vendiam-se nas barracas. Consortes de corpos tatuados, exibindo parafernália de adereços metálicos. Vestimentas negras. Acessórios extravagantes enfiados na língua, orelhas, nariz, supercílio, ventre e braços. Legião de estranhos cavaleiros do asfalto.

Na Galiléia do tempo de Jesus, também era assim. Vez por outra, da aridez do deserto surgiam nas pequenas aldeias dos cristãos, tropas de soldados do exército de Roma, montados nos seus cavalos negros reluzentes, ostentando suas robustas armaduras impondo respeito, medo e admiração. Aqueles da Praça em Santana, montados em seus cavalos de aço empinavam, e relinchavam, e davam coices, e roncavam, e cuspiam fogo das ventas feito cavalo e cavaleiro do apocalipse.

Pedro e Madalena foram a Praça de Santana, assistir o show. O açougueiro e a professora gostavam de festa. Ele, ainda mais de vaquejadas. Ela verdadeira paixão por MotoCross. Aceitavam, e respeitavam o gosto um do outro. Todo ano, de moto iam a Juazeiro do Norte, em romaria iam ver padrinho Cícero Romão Batista, mas isso era pouco, diante do que pretendiam. Ir um dia ao Oriente Médio. Ela acalentava o sonho de um dia visitar a terra natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Andar nos lugares que Jesus andou. Visitar a gruta da natividade. Subir no monte Horebe. Sentar-se numa pedra, naquela montanha, onde Cristo pregou o Sermão da Bem-Aventurança. Caminhar pela Via Dolorosa, subir ao Golgotá. Madalena dizia que se um dia fosse, levaria consigo dois vidrinhos vazios. Um pra trazer um punhado da terra, do chão do Getsemâni o Jardim das oliveiras. No outro colocaria um pouco da água do rio Jordão.

Tinha quase certeza que mesmo estando lá, se sentiria como se estivesse aqui. Achava tudo tão parecido. O calor do deserto semelhante ao clima da nossa caatinga, do nosso sertão, Nossa Senhora pra uma longa jornada, ia sempre, no lombo de um jumento. Igualzinho aos jegues que tanto aquele casal conhecia. Ambos nasceram e foram criados a um sítio da região sertaneja. Jesus gostara tanto desse povo, que os daria a viver, num ambiente semelhante ao que ele viveu, enquanto esteve entre nós. De sua avó o nome pra denominar nosso lugar, Sant’Anna. Alarido das vibrantes caixas de som, dos diversos carros estacionados, competia com o som, vindo de um palanque montado, onde um locutor muito exaltado tentava através de sua narração, traduzir pra o público presente, as emoções provocadas pelas evoluções acrobáticas dos motoqueiros. Barulho ensurdecedor.

Apesar do estado eufórico das pessoas que os cercavam, Pedro tinha olhar fixo no nada. Parecia sempre pensativo. Preocupado com algo indecifrável, na iminência de acontecer. Algo que apenas ele sabia o que era. Talvez não. O semblante serrado, por nada franzia a testa. Como se angustiado. Um sofrimento muito pesado, além de suas forças, parecia haver desbotado sua alma. Não dava pra dizer de que cor eram seus olhos. Seu estado de espírito confundia o corpo. Ainda jovem, gostava de folhear a Bíblia. Seu aspecto era de alguém sempre na iminência de choro. Choro que não saía. Ar de preocupado, sorumbático. Como se tivesse aguardando a vinda do anjo que ia anunciar o fim do mundo. Naquele momento sem saber o porquê Pedro lembrava-se de Felipe apóstolo. No dia que àquele perguntou a Jesus. -Mestre! Quando acontecerá a consumação dos tempos? E Jesus, respondera: -Nem mesmo àquele sentado à direita do pai, lá na Corte Celeste, lhe é dado conhecer. E agora, Pedro de Madalena. Estava ali, a refletir a resposta que Jesus lhe dera, naquele dia, lá no mar da Galiléia. Prometeria que guardaria segredo, não era de falar muito, ficaria fácil guardar. Só assim acabava com aquela angústia.

Ainda na Praça, a consumação dos fatos. Entrou em cena Marta, a jovem garota tivera um caso com Pedro. Chamando-o à parte, teria lhe revelado que o filho, de apenas dois meses de idade, que ela deixara em casa, com sua mãe, enquanto estava à festa, era dele. E que ia reivindicar na justiça uma pensão para que ele a ajudasse a criá-lo. Pedro não gostara de ouvir tal história. Peão era assim mesmo, não gostava de ninguém. Era desses que não têm senso de humor. Não entendem que a vida, a vida é moleque encrenqueiro, cutuca a gente. Faz cócegas. Tira brincadeiras. Jesus Cristo, o mestre, nas suas aulas, cansou de dizer “Se vós, não te tornares igual a um desses pequeninos nem pense que irão alcançar o reino de meu Pai”. Ora, tornar-se igual a um pequenino, era ser como a criança, pura inocente e, claro, brincar. Mas tem gente, como Pedro, que simplesmente não entende. Fecha a cara. Pra vida tornam-se ranzinzas.

Vários dias, talvez alguns meses, depois da festa da Praça se passaram. Pedro teve sua audiência marcada com o Juiz de Direito da Comarca de Santana do Ipanema, para decidir o valor da pensão a ser paga a Marta que não tinha emprego fixo e morava sozinha. Alguns fatos declarados por Pedro relacionados à vida promíscua e de bebedeira que levava, fez com que a moça perdesse a custódia de Joaquim. Marta pelo juiz acabaria sendo considerada incapaz de criar e educar seu filho Joaquim. Pedro não tendo outra opção teve que ficar com o menino. Madalena, porém, não quis aceitar aquele inocente, fruto de um caso de amor de seu esposo, no seio de seu lar conjugal. Mais uma personagem desta feita entraria em cena, dona Ana a mãe de Pedro. Coube a sexagenária viúva, a responsabilidade de cuidar do seu primeiro neto. E por sua avó Ana foi Joaquim criado com carinho, teve educação esmerada e tornou-se um jovem estudante apaixonado por informática, MotoCross e Rapel. Joaquim na escola conheceu uma jovem chamada Maria do Rosário por quem se apaixonou perdidamente. E numa festa de motoqueiros, ao som de muito rock, vestidos à caráter, jaquetas pretas e muita badalação Joaquim e Maria se deram em matrimônio. Prometeram diante do celebrante, se amar e se respeitarem pro resto de suas vidas. Enquanto amigos aceleravam suas máquinas. Enchendo o ar de fumaça, estridente ruído de buzinas e estouros festivos dos canos de escapes das motos.

Fabio Campos

Vida e Carnaval

Raimundo teve consciência de haver acordado. Embora permanecesse, de olhos fechados, mas acordado. O olfato, sentido mais aguçado naquele instante, acusou cheiro forte de éter. Ou formol? Onde estaria? Silêncio. Resolveu finalmente abrir os olhos. “Ambulatório” leu mentalmente a pequena placa branca, em letras vermelhas sobre a porta. Uma lâmpada fluorescente acesa iluminava o ambiente. Um ventilador assoprava dum canto. As janelas tinham persianas cerradas, não dava pra saber se dia ou noite. Teto e paredes brancas, uma barra verdes claro. Estava numa cama de ferro, também branca. Percebeu-se metido numa espécie de bata. A boca seca. Tinha sede. A cabeça, enfaixada. Ao lado da cama o pedestal donde pendia o tubo que gotejava soro numa mangueira fina que ia até seu braço. Quis levantar o braço livre, buscou alcançar uma campainha sobre um criado-mudo de ferro. Vã tentativa, o braço doía. Tentou sentar-se, se apoiando nos cotovelos, sentiu uma fisgada nas costas, desistiu. O único movimento que conseguia sem dor, era mexer a cabeça. Olhou ao longo do seu próprio corpo, viu os pés coberto, tentou meche-los, nada. Um cartaz na parede ao lado da cama mostrava o rosto de uma enfermeira muito bonita, com um dedo sobre os lábios, a frase em letras pretas advertia: “Silêncio! Hospital.” O lençol tinha na barra, a sigla daquela unidade de saúde, H.R.Dr. A.M. (Hospital Regional Dr. Arsênio Moreira). Tentou lembrar-se o que acontecera. Onde estava antes dali?

Hudson não queria acreditar no que seus olhos viam. Desesperado apenas gritava. Acabara de bater seu carro numa moto. Era noite, estava sozinho. Sob o foco do farol, no meio da pista, gritava feito louco. Como aquela moto surgiu do nada? Sentiu o baque seco. O vidro do pára-brisa se estilhaçando, sangue. Som de ferro retorcendo e ossos se quebrando. Acenava para que outros carros parassem e o ajudasse. O homem estendido na pista era Raimundo. Vários carros paravam, alguns por pura curiosidade, outros pra ajudar. Hudson tentava sem conseguir, a lucidez, organizar os pensamentos. Aquela era uma rodovia federal. Não podia permanecer ali, precisava evadir-se. Os guardas rodoviários iriam perceber seu estado de embriaguês. A polícia chegou depois da viatura dos paramédicos. Raimundo, perdendo sangue, o cheiro de asfalto, tendo já os lábios roxos, trêmulo pela hipotermia, sob a brisa da noite, recebeu os primeiros socorros. Hudson conseguiu a muito custo completar uma ligação telefônica, pelo celular chamou seu irmão mais velho que veio em seu auxílio. As luzes das viaturas, refletindo no rosto das pessoas - ora vermelho, ora amarelo - o vozerio não mais sendo percebido pelos seus ouvidos. Tudo ia ficando cada vez mais longe. Rostos crispados, como num filme em câmara lenta, mudo. Macabro baile de horror. E Hudson foi se afastando, sendo levado. Deixando pra trás um rastro de sangue. Saiu levando consigo um imenso fardo que teria o resto da vida pra carregar, na consciência.

Àquele, tinha tudo pra não ser, um dia como outro qualquer. Pra Raimundo apenas mais um exaustivo dia de trabalho. A noite, véspera de natal, se pronunciava. Ao cair da tarde o agente comunitário de saúde voltava pra casa. Tinha ido à zona rural do município de Santana do Ipanema, auferir medição de pressão em alguns idosos hipertensos, e aplicar vacinas em crianças da comunidade Jaqueira. Voltava pro seio de sua família onde esposa e filha o aguardava para a festa da ceia natalina. Mas o destino colocaria Hudson no seu caminho. Hudson era casado com Fabiana, uma garota que nem bem saíra da puberdade e viu-se obrigada a casar-se com o rapaz. Por terem ficado, e por ela ter com ele perdido a virgindade. Seus pais os obrigariam a se casarem. Hudson vivia brigando com Fabiana, por motivo de ciúme doentio dele brigavam. Por causa de ciúme brigavam. Hudson era representante de vendas de uma conceituada empresa mineira. Realizava revendas em seis municípios, além de Santana do Ipanema. No dia fatídico brigara com a esposa porque ela, cuidando de arrumar-se com manicure e cabeleireira para a festa daquela noite, não fizera almoço. Por conta disso Hudson deixou de realizar visitas a alguns clientes. Foi ao encontro de alguns amigos e iniciou a bebedeira. No meio da farra um comerciante ligou-lhe, pedindo que fosse urgente ao povoado Areia Branca para lhe fazer uma compra, seria uma venda significativa. Mesmo já tendo bebido com os amigos Hudson arriscou-se no empreendimento e acabou se envolvendo no sinistro.

As asas do tempo, sempre elas estarão a farfalhar por sobre os anos. E pra alegria do povo veio mais um carnaval. O agente de saúde Raimundo sempre gostara de festa. Não foram as rugas que lhe sulcariam o rosto, nem os cabelos negros, pintados de prata que tiraria sua vontade de viver. Muito menos a paralisia total dos membros inferiores, por conta do acidente. Nada disso tiraria de Raimundo a vontade de curtir a vida. E mais uma vez lá estava ele na praça do povo, como o céu era do condor, como o céu era do avião. Raimundo girava o mundo sob as rodas de sua cadeira. Sem considerar limitações - a seu modo - se esbaldava no quartel general do frevo. Esposa, filha e amigos faziam-lhe companhia. De repente, Raimundo sentiu dois braços segurando-lhe no colo. Quem o carregava nos braços? Lá iam os dois no meio da multidão. Fantasiado de pierrô, Hudson, triste palhaço, num esforço derradeiro tentava reconciliar-se consigo mesmo. No dia de Carnaval levava um pouco mais de alegria a quem, um dia quase tirou a vida, mas que nunca tiraria a vontade de viver.


Fabio Campos

Folia de Carnaval

Corredor da folia em Santana do Ipanema. Desde defronte a Associação Atlética Banco do Brasil até a Praça Senador Enéas Araújo, os blocos, as troças dando um colorido bonito à cidade. Alegorias suspensas nos postes. Alegres máscaras de pierrôs, arlequins e colombinas. Saltimbancos, apelidados de bobos e caretas estalando relhos, produziam sons guturais, pondo medo nas crianças. Frívolos foliões desenferrujando as avenidas. Carnaval, festa de sacudir a cidade. Carnaval sempre chegava pondo máscara alegre, no rosto sisudo do burgo. Máscara bufona enchia de frenesi a urbanidade.

Carnaval, festa pra guardar na gaveta, a cara fechada do ano inteiro. Carnaval, moleque brincalhão, chega e afasta a sisudez. Enche de maquilagem e fantasia, a aparente sensatez da plebe. Carnaval ri das formalidades, sátira aos empolados bons costumes. Carnaval debocha dos fricotes das madamas. Carnaval, festa pra se esbaldar, pra deitar e rolar, pra deixar aflorar na pele do homem, o menino que um dia fora. Pular carnaval faz sacudir da alma a crosta do acabrunhamento, da rabugice, do mau humor. Tempo de dar viva a Zé Pereira, viva a Juvenal que inventaram o carnaval.


Carnaval de Infância


Na Praça da Bandeira os meninos se ajuntavam em turmas para guerrear com lanças cheias d’água. A caixa de Maisena ou o pacote de Farinha de Trigo surrupiados da cozinha de casa, pra jogar nos mascarados, nos outros meninos. Havia sim, algumas regras, mas regras são feitas para serem quebradas, dava prazer quebrá-las. Não podia usar água sanitária, nem urina nas lanças. Cinza do fogareiro, óleo queimado, graxa de sapato inutilizava roupas e fantasias. Valia usar, caso fosse, em turmas de outros bairros. Pela manhã começavam os desfiles dos blocos pelas ruas. De casa em casa iam troças e os meninos acompanhavam, aumentando a bagunça permitida. Molhava-se a casa toda. Farinha virava um massapé que dera origem ao nome mela-mela. À tarde alguns blocos desfilavam em carros aberto, pela cidade. As pessoas se concentravam no largo da Praça Senador Enéas Araújo. Mães de família com seus filhos belamente fantasiados, crianças ostentavam fantasias de super-heróis, pierrôs, colombinas e arlequins. Num palanque improvisado com lastro de tábuas, apoiadas encima de tonéis. A orquestra apelidada de “Teimosa”, sob a batuta do saudoso maestro Miguel Bulhões, tocava frevo até anoitecer. O locutor Francisco Soares com um sonoro “Alôôôô maestro!” anunciava o início da folia, ali do “Quartel General do Frevo”. Momentos antes o prefeito Adeildo Nepomuceno Marques passara a chave simbólica da cidade, ao rei Momo, representado pelo bancário José Abdon Malta Marques, o homem mais obeso da cidade. Simbolicamente Santana do Ipanema ficaria sob seu comando durante o tríduo momesco. As crianças se divertiam com a presença de alguns foliões fantasiados. Seu Nozinho o mais antigo folião, tentava, sem conseguir, se disfarçar de palhaço, denunciado pelo seu imenso bifocal, andar claudicante cobrado pela idade. Ao cair da noite o povo ia pra casa jantar, estava encerrado o carnaval das crianças, por aquele dia. Os adultos iam se preparar para o frevo nas dependências do Tênis Club Santanense, que varava a madrugada ao som da Banda Tabajara, tocando frevo e melodiosas marchinhas para deleite dos foliões que viajavam nos braços de Orfeu. Subiam a ladeira do farol, iam pelas ruas de Olinda de Claudionor Germano, mestre Capiba e Edécio Lopes.


Carnaval de Juventude

Os anos passaram embalados nos sonhos dos foliões. O empresário da construção civil, senhor Paulo Ferreira de Andrade, subiu, pelas mãos do povo, à administração de Santana do Ipanema. Impulsionou as atividades culturais no município, deu ênfase a sétima arte, o cinema. O carnaval do Rio de Janeiro chegou pela tela panorâmica do Cine Alvorada. E surgiu as Escolas de Samba. Juventude no Ritmo e Unidos do Monumento. Tamanquinho comandava uma, e Joãozinho a outra. Um clima bom de rivalidade saudável existia entre os dois bairros da cidade. Sob a égide de São Cristóvão o bairro Camoxinga, fincado após a margem direita do riacho que lhe emprestou o nome. Bairro Monumento encimado pela margem esquerda do rio Ipanema sob a proteção de Nossa Senhora da Assunção. O Comércio era campo neutro, ali defronte a Matriz de Senhora Sant’Anna, a avó do mundo, velava pelos netinhos santanenses. Povo que foliava, se esbaldavam na festa mais profana da cristandade. A efusão de Blocos e escolas de samba feito tsunami de alegria cotejavam inflamando o largo. Sorrisos nos lábios, camisa aberta no peito. Mãos erguidas num aceno coletivo pra Orquestra, como num apelo para que nunca cessasse o frevo-folia. Profusão de cores incendiando o Paço. Exaltação dos espíritos. O calor do povo, o ululante apupo, longe, longe se ouvia. Retumbar de tambores, resplandecer de clarins, volúpia e vibração da aura que envolve cada um. Musicalidade zunindo pro limbo o acabrunhamento, afastando o comodismo da alma mais tímida que estivesse ao Largo. Um arrebatamento de contente nos semblantes. Confraternização de harmonia. Uma paz brincalhona estendendo suas asas sobre o populacho. Era carnaval.


Pra onde foi a folia de Outrora?

Hoje em dia são outros os carnavais. Facções tomaram lugar dos blocos. Já não deitam pelas ruas a alegria de outrora. Arremedos de troças e bloco de tempos passados, melancolicamente desfilam, misto de bêbados e equilibristas. A maioria prefere, estar encima de um veículo migrando pra outros lugares. A esmo, seguem em busca da alegria. Pra onde foi a alegria dos carnavais de outrora? O que está dentro de si mesmo. Em vão, buscam não sabem onde. Nessa busca vale tudo. Até procurar a frivolidade do carnaval, talvez afogada dentro dos rios. Sequiosos seguem em busca dum espelho do líquido precioso, como se da água conseguissem tirar a energia para brincar o carnaval.


Fabio Campos

Caborés, Jandaias e Falcões

Qualquer um que se inventasse circundar o sopé do Serrote do Pintado, pelo flanco norte, fatalmente ia deparar-se com a fazenda do senhor Abelardo Falcão. A casa grande, uma construção antiga. Coberta de madeira rusticamente aparelhada, arrematada por telhado colonial. Paredes obesas de argamassa e cal, afetadas pelo tempo. Marcas visível ainda com mais nitidez na parte externa. No verão as gigantescas janelas ficavam abertas, para que a brisa do leste, vindo das campinas, pudesse entrar e o a ar circulasse. Vistas pelo lado de fora, as janelas eram como quadros pintados, mostrando, detalhes do interior da casa. Como se cada uma, fosse uma obra em particular, parte de uma obra completa. Rodeado de alpendres, o casarão rememorava com riqueza de detalhes as imensas casas que apareciam nas fitas mexicanas. Redes de punho estendidas, gaiolas de pássaros suspensas nos caibros. Ao lado da casa o curral, donde emanava cheiro adocicado de silagem ruminada e esterco de bovino. Sinfonia de pardais ano inteiro.

Apesar de tudo, de tanta beleza. Um olhar mais acurado, daria pra perceber que havia ali, um quê de tristeza. Um não sei quê de melancolia. Onde estavam as pessoas? Pra onde fora a alegria de outrora? Tão grande casa, abandonada. Ainda que rumores ouvissem pro lado da cozinha, era pouco, pra tão grande casa. Senhor Abelardo e Dona Genaura tiveram doze filhos. O patriarca dos Falcão e sua esposa já haviam desencarnado, embora seus espíritos perambulassem ainda naquela morada. Todas as manhãs - os que ali conviviam – sentiam a presença do Senhor Abelardo, vestido no seu blazer bege, indo pela casa. Andar vacilante, vagaroso, curvado pelo peso dos anos. Sentava-se na sua cadeira de palhinha, ficava na penumbra da sala, contemplando os campos, pelos vão das janelas. Depois sumia pela porta de um dos quartos, ia deitar-se com sua tristeza. Dava pra ouvi-lo tossindo, resquício de tantos e tantos anos de tabagismo. Dona Genaura com leve maquiagem no rosto alvo e gordo. Vestido de estampa colorida inflado de seu corpo. Tiara no cabelo grisalho, sentada à mesa da cozinha, em silêncio, vistoriava os afazeres de Rosalva a velha cozinheira. Os filhos, todos se casaram, se foram, o espírito de sua infância, permanecia ali, vagando sobre os velhos retratos na parede. A algazarra das crianças - ecos de sons longínquos emitidos dentro de um poço - ia indo, em derredor da casa, subindo na goiabeira, nos pés de cajus, tirando maturis, espalhando folhas, brigando pelo balanço de pneu velho. Retratos nas paredes não criam rugas, não embranquecem os cabelos, não se acabrunha diante das moléstias. Apenas as cores esmorecidas, levadas pelas asas do tempo. Daquela ruma de filhos, apenas Clodoaldo permanecera em casa. Fora o escolhido pelos espíritos dos antepassados pra permanecer como guardião do legado dos Falcão.

Naquela família veneração pelas aves era algo que não se restringia apenas ao nome de parentela. A fazenda era um verdadeiro santuário ecológico. Pavões, nambus, rolas e pombas ornavam o terreiro e arredor da casa. Num imenso Grajau mantinha-se um reino de aves canoras: Jandaias, araras, piriquitos, cardeais, maracanãs e toda sorte de aves exóticas. Alguns nem era preciso manter presa, sabiás-laranjeira, Asas-Brancas, João de Barro viviam ali refugiados dos caçadores. Num baixio, um pequeno lago reduto de cisnes, avestruzes, sariemas, garças, patos, gansos, marrecos e outras espécies de aves aquáticas e pernaltas. Algumas espécies devido ao perigo de se tornarem presas fáceis ou agredidas, umas pelas outras, Clodoaldo as criava em cativeiros especiais. Galos de briga criados pra competições em torneios e rinhas. Um mavioso rouxinol, uma tagarela catatua. Canários-do-reino e pitiguaris anunciavam o raiar do dia. O falcão ave símbolo da família bem como Urubus-reis, carcarás, condor e águia de rapina havia ali. Habitando uma gruta de pedra na encosta da montanha espécies que complementavam a cadeia alimentar, morcegos, corujas, bacuraus e caborés.

Caboré foi o apelido que colocaram num negrinho, filho da lavadeira Júlia, que vivia na fazenda. Era encarregado de colocar ração e água pras aves, bem como, fazer a limpeza dos excrementos nas gaiolas. Isso depois de auxiliar o vaqueiro Salviano, no manejo com o gado bovino, pinicar palma nos balaios, dar banho nos cavalos, transportar o leite ordenhado até a cidade, levar a comida dos trabalhadores no roçado. Apesar de seus doze anos de idade, o moleque trabalhava feito gente grande. Um dia, o pretinho esqueceu a gaiola de uma Calopsita no banho de sol, não suportando a ave morreu. Era uma sexta-feira. Dia em que Clodoaldo chegava tarde, pois ia à rua, receber o dinheiro da venda do leite, sempre voltava bêbado. Quando chegou que soube do ocorrido. Pegou o negrinho. Amarrou-o suspenso pelos braços ao esteio do galpão. Deu-lhe uma surra de relho de couro cru. Parando de bater somente depois que o pobre tinha as costas, filetes de sangue. Trancou-o e deu ordem pra ninguém ir lá, até o amanhecer.

Manhã de sábado. Matriz de Senhora Santana repleta de gente. Dia de feira livre sempre fora assim. De mãos postas, olhos fechados, de joelhos, o povo rezava. Gente se encontrando, por entre as bancadas conversavam. Dentro e fora do templo vozerio, admoestando o silêncio do lugar de orações. Tinha os que iam até o altar, atiravam à fronte um Sinal da Cruz - depositavam beijos na barra do forro do altar - rápida genuflexão, e o giro nos calcanhares. Moeda tilintando na caixinha de coleta. Devotas senhoras, zeladoras do Sagrado Coração de Jesus, vestidas de azul marinho, fitas vermelhas ao colo, lenço sobre a cabeça, debulhavam o terço enquanto aguardavam na fila do confessionário. Os que atravessavam o corredor central, em direção a sacristia, iam levando algo nas mãos. Uma galinha, uma dúzia de ovos, um queijo de coalho pro padre Cirilo. Negro major, zelador da igreja, cuidava para que as pessoas não retirassem as flores que ornavam as imagens. Pagadores de promessas, de joelhos, iam desde a porta até o altar. Acendiam velas. Sentada a uma banca Dona Júlia lavadeira, nas mãos um pequeno embrulho, envolto num paninho branco, um passarinho inerte. Olhar fixo na imagem de Senhora Santana, Dona Júlia. Esperava dois milagres.


Fabio Campos