O ÚLTIMO SÃO JOÃO DE SEU JULIO

Festas juninas, para Zequinha, Bernadete e Salete jamais seriam as mesmas. Depois daquele ano em que Seu Julio e dona Nadir, seus pais, morreram. Ele, no dia de São João, e ela em São Pedro. Trinta anos ficaram pra trás, São João de 82. Voltemos no tempo, pra contar como foi. Naquela época todo mundo acendia fogueira na porta de casa, era uma tradição muito arraigada. Os mais supersticiosos acreditavam que se não acendesse, ao menos um fogareiro na frente da casa, sofreriam algum tipo de sortilégio. Pagariam pela falta, fosse nesse, ou no outro mundo. Os mais velhos brincavam dizendo que o diabo viria mijar na porta de quem não acendesse fogueira. Os meninos se antecipavam a traquinagem do tinhoso, e eles mesmos aplicavam o tal castigo.

Raiada de bandeirolas coloridas, a Rua Professora Josefa Leite, parecia um arraial. Os postes de iluminação ganhavam roupas de palha de coqueiro. As toscas casinhas de Dona Sidone, alugadas a plebe, se enfeitavam de cortinas de alegre xita. A meninada se divertia soltando toda sorte de fogos, traques, beijo de moça, chuvinhas, pirilampos, cobrinhas e diabinhos que teimavam em correr pros pés dos mais velhos, provocando impropérios de irritação. Gatos e cachorros sumiam fugindo dos fogos e dos meninos. A boquinha da noite entre estouro de rojões, as fogueiras eram acesas. O fumaceiro subia ao céu indo se ajuntar as nuvens negras de inverno. A oferenda ao santo subia as alturas, em forma de fumo e fogo. Os móveis amanheceriam cobertos de fuligem, as roupas com cheiro de fumaça. Os idosos teriam agravados seus problemas de bronquite. Os baixios amanheceriam tenros de neblina.

Ao longe o pinicado do triangulo, da zabumba e da sanfona arremedando um baião do velho Luiz Gonzaga. Uma quadrilha desfilava pela rua em carroças de burro, Viva os noivos dizia o tangedor, e todos respondiam: Viva! Meninas trajadas nos seus longos vestidos floridos, chapéu de palha e trancinhas, no rosto, maquiagem espalhafatosa, a demonstrar como as matutas se enfeitavam pra irem às quermesses. Das cozinhas, o cheiro adocicado das iguarias a base de milho, pamonha, cangica, milho cozido, ganhava o mundo e as narinas do povo. À mesa, uma jarra fumegante de quentão, bolo de massa puba, bolo de milho, espigas quentinha de milho verde.

Seu Julio sentado a seu tamborete à porta de casa, fumando um cigarro de fumo picado, permanecia olhando a fogueira. Por hábito mantinha o velho chapéu de massa a cabeça, mesmo já sendo noite. Os vizinhos Tonho e João pintor do lado leste. Loza costureira, Zé do Inhame e Nô soldado do lado oposto. Todos já haviam acendido suas fogueiras, também já adentrados as casas para deleitar-se com o tão farto jantar junino. Seu Julio sem saber direito aonde ia seu pensamento, olhava fixamente pro fogo, talvez pensasse nos seus passarinhos, e o quanto aquela fumaça os incomodava. Crepitava a lenha seca. Estranhou que o fogo permanecia estável, depois de horas, e quase nada havia sido consumido. E de repente ele viu, no meio da labareda alaranjada, uma linda mulher aos poucos foi surgindo. Seria real ou fruto de sua imaginação? Não parecia com ninguém que um dia tivesse conhecido. Quão era bela! Terrivelmente bela! Tinha um longo cabelo preso com um véu a moda cigana. Seu imenso vestido parecia balançar com o movimento do fogo, estava lívida, nenhuma expressão de dor ou aflição se via em seu semblante, o fogo não a corrompia. Seu Julio simplesmente admirado, não entendia porque não tinha medo, nem perturbado o suficiente para qualquer tipo de reação. A mulher saindo do fogo aproximou-se dele.

Sentou-se na calçada ao seu lado. Cumprimentou-o chamando pelo nome. Ela o conhecia, mais que ele próprio. Disse-lhe: Sou a morte Seu Julio. Chegou o seu dia. Perguntou se tinha algo a perguntar. Ele tinha, queria saber, o porquê, tinha só setenta e dois anos, um menino ainda. E logo agora, que Nadir completara sessenta anos e também se aposentara. Agora que os filhos estavam criados. A morte disse-lhe que não havia explicação para o dia, nem a hora que devemos morrer. Simplesmente chegara o dia e pronto. E disse mais, que somente para os homens bons como ele, se apresentava com aquela forma de linda mulher, era uma espécie de recompensa. Para os homens maus, vinha em forma de caveira. com capuz e foice, como na carta de tarô.

E continuou: Eu não existia, Deus me criou porque o primeiro homem foi desobediente. Deus expulsou Adão e Eva do jardim do Éden e pôs um anjo com uma espada para guardar a entrada, era eu. Desde então estou no mundo: No fogo, na terra, na água e no ar. Mato por incineração, por degeneração (sois do pó da terra, e a ela tornarás) por afogamento, por asfixia. Os que morrem por assassinato e suicídio que não deixa de ser uma forma de assassínio, ou de acidente, não são mortes dignas, nesses casos, uma legião de demônios vive no mundo ceifando vidas em meu lugar. As almas dssas pessoas ficam vagando no limbo, um lugar muito pior que aqui na terra dos vivos. Ficarão lá até chegar o dia em que deviam ter morrido. O fogo no mundo dos mortais sou eu a morte, lembra de Sodoma e Gomorra? Já no mundo espiritual represento vida. Lembra da sarsa ardente no deserto vista por Moisés? E de pentecostes, a vinda do espírito santo sobre os apóstolos? O fogo é sagrado Seu Julio, todos os povos o veneram. Na mãe África, os bárbaros europeus e entre os nativos ameríndios.

Seu Julio viu seu velho corpo levantar-se do banquinho, meio grogue, apoiou-se na parede, em seguida entrou para casa, foi até o seu quarto e deitou-se na cama. De mãos dadas com a morte caminhou para dentro do fogo, que não mais o feria, se foram. Dona Nadir desde aquele dia ficou muito triste. Na noite de São Pedro, de luto fechado foi pra novena dedicada ao santo. Na solidão da cozinha, chorou muito cabisbaixa sobre a mesa, nem percebeu um bonito rapaz surgido do nada, de pé, sereno semblante, chamou-lhe: Dona Nadir! Seu dia é chegado! Ela arribou a cabeça sorrindo-lhe.


Fabio Campos

SEBASTIÃO SÃO JOÃO

Seu Sebastião morava na Rua Delmiro Gouveia, no lado das casas altas. Era barbeiro, de profissão. O pequeno salão ficava no porão, que ele dividia com outro barbeiro chamado, Salomão. Além das iniciais dos nomes, outras coincidências, cada um tivera três filhos. Seu Sebastião, Lúcia, Leda e Leonia. Salomão, Diógenes, Davi e Dionel. E eis que seus filhos se deram em casamento. A um dos netos, Seu Sebastião pediu que a filha batizasse pelo nome de Mário. Pequeno Mário seria criado, educado e evangelizado pelo avô.

Católico fervoroso, Seu Sebastião, todo domingo ia à missa matutina, e levava o pequeno Mário, que na época, só oito anos tinha. Isso lá pelos idos de 1968. Esta história são as impressões de Mário, da época em que Santana do Ipanema contava com pouco mais de duzentos fogos. Assim era designado o número de casas de um município nos anais do Instituto de Estatística, de pelo menos trinta anos antes. É de bom alvitre esclarecer donde vem o termo fogos, para designar casas ou moradias. Isso porque a contagem se procedia com o cair da noite, e a cada ponto de luz que se via no breu noturno, tinha-se a certeza de se ter uma habitação.

Depois da missa dominical. Ainda com os primeiros raios de sol lançando-se sobre Santana, o pequeno Mário e vovô Sebastião, tomavam o caminho do rio, e iam pro arruado Santa Luzia, que ficava na barranca do Ipanema, na margem direita, depois do Poço dos homens. Era tradição do sábado de Aleluia, alguns dedicados senhores da igreja de Cristo, receber em missão, o dom de catequizar. Teve um ano que Seu Sebastião, e mais onze homens de Deus, recebeu do cônego Luiz Cirilo o título de “Amigos da Bíblia”. O cônego outorgava o sacramento da catequese, aos homens de fé. Às margens do rio indígena naquela comunidade de remanescentes dos nativos, adultos ouviam o evangelho e as crianças aprendiam a fazer o sinal da cruz. No começo fazia-se a pregação dentro do casebre de dona Maria da Feira. Tempos mais tarde não comportando mais os crentes num espaço tão acanhado, passaram a fazer as santas missões, do lado de fora. Debaixo dum pé de craibeira, no terreiro ao lado da casa. Uma mesinha forrada com um pano branquinho, uma vela acesa, ao lado dum crucifixo. A bíblia, e uma pequena imagem de Santa Luzia. Rezava-se o terço e a ladainha a Nossa Senhora. 
Oh! Mater em cristo
Meu santo varão
Livrai-nos da peste 
meu São Sebastião
A maioria de nós aprendeu a associar a tradição de acender fogueira, a São João. Poucos sabem que verdadeiramente devia se creditar o hábito do acendimento da fogueira a São Sebastião. Em Santana do Ipanema, pelo menos, a ele, está ligada a origem da fogueira. As missões que Seu Sebastião barbeiro iniciara nas manhãs de domingo, com o decorrer do tempo passaram a ser à noite. Desde então, uma fogueira seria acendida, para alumiar o terreiro, também para as pessoas se aquecerem, pois as novenas aconteciam no mês de março, quando eram comum as pancadas de chuvas, dando a preludiar o inverno.
Salve o cristo puro
Estrela luzente
Prodígio das graças
do onipotente
Elisabethe, apelidada carinhosamente de Isabel, esposa do sacerdote Zacarias vivia na Judéia. Já em idade avançada havia concebido. Avisada em sonho, pelo anjo Gabriel, Maria, da descendência de Davi, futura esposa de José, o carpinteiro, foi ter com ela. Para avisar Maria sobre o nascimento de São João Batista e assim ter seu auxílio após o parto, Elisabethe teria acendido uma fogueira sobre um monte. A fogueira de São João passaria a ser o traço comum que unia todas as festas pagãs, na verdade a celebração do solstício de verão.

Oh! Mater em cristo
Meu santo varão
Livrai-nos da peste
meu São Sebastião

O pai de Seu Sebastião antes de se casar, teria sido um homem muito doente. Ainda rapaz teve sérias complicações pulmonar que quase o levou a morte. Diante disso, teria feito uma promessa. Se tivesse um filho varão, dar-lhe-ia o nome de Sebastião e defronte a matriz de nossa Senhora Santana ergueria uma capela a seu santo de devoção.


Fabio Campos

O LIVRO DA CAPA PRETA

Ladeira da Rua Rotary, em Santana do Ipanema, acesso obrigatório de quem ia da Praça do Monumento pro cabaré de Dona Brejão. A certa altura da ladeira, a um cubículo, três por quarto, ficava a oficina de Seu Satiro flandeleiro. Engraçados, nome e profissão, do remendador de bules, baldes, panelas e calhas de zinco. Passado já havia metade da década de sessenta, desde o que passamos a contar foi sucedido. 

Andar claudicante, sequelas de uma paralisia infantil, Seu Satiro era figura alta, esguia. Filho de pais pobre, negros, desde pequeno teve que trabalhar. Viviam da roça. Aos sábados vendiam frutas e legumes na feira. Homem feito aprendeu a arte de funileiro. Constituiu família grande, muitos filhos. Seu Satiro nunca fora a escola, nem aprendera a ler. Ainda criança invejava os outros meninos que iam à escola de Dona Josefa Leite. Bem ali perto, vizinho a bodega de Seu Zé Santana. 

Seu Satiro se iniciou na comprar de livros velhos, pra revender por quilo. Os fundos da oficina acabaram virando uma biblioteca. Mesmo sem saber ler, sentia-se fascinado por tudo quanto era impresso. Passou a colecionar livros, revistas e jornais. Grandes clássicos da literatura mundial, amontoados sem muita preocupação com a arrumação ou conservação. Otelo, A Megera Indomada, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, A Divina Comédia, de Dante. Livros de capa dura se sobrepunham aos didáticos e antológicos, de páginas rotas e amareladas. Junto a tanto outros de escritores brasileiros, Dom Casmurro, Machado de Assis. O Quinze, Rachel de Queiroz. Lucíola, A Pata da Gazela, de José de Alencar, raríssimos, nas suas primeiras edições. O Cortiço, de Aluisio de Azevedo. O Ateneu de Raul Pompéia. Livretos de bolso, de faroeste e espionagem, em caprichosas gravuras da capa. 

Fábulas de Christian Andersen, Esopo e Monteiro Lobato, dividindo o mesmo espaço com Os Sertões, de Euclides da Cunha e Vidas Secas de Graciliano Ramos. Esses últimos Seu Satiro tinham-nos como livros de cabeceira. Mesmo não tendo o dom da leitura, imaginava que histórias estariam contadas ali, pelas gravuras que exibiam, sonhava. Sabia que tinham muito em comum com sua própria vida. Livretos de cordéis, Cancão de Fogo, Pedro Malazarte e Mata-Sete. Seu Satiro sabia de cor e salteado das façanhas dos lendários heróis dos sertões. Não que os livrecos litografados os tivessem contado, mas as conhecia por Seu Cipriano, seu pai, e o velho Zé Rosa, contratado do governo estadual pra cuidar do açude do Bode. Bastava abrir-se a boca da noite, também a boca dos fascinantes contadores de histórias se abria, sentados a um banco chamado de Péla Porco, rodeados de menino e gente, no alpendre do casebre onde moravam na Rua da Maniçoba, a contar causos e histórias de trancoso. 

Certo dia Seu Satiro ao revistar seu acervo literário, um pequeno livro de capa preta aparentemente comum chamou-lhe a atenção, de atrativo nada havia nele, porém praticamente hipinotizado ficou ao percebê-lo. Na capa a seguinte inscrição em letras góticas douradas “Librarum Ciprianus – Crede mihi nihil prater mittendum” Enigmas pra Seu Satiro o português, mormente o latim. Algo muito forte que não conseguia explicar o atraia no livreto negro. Sentiu a necessidade de pegá-lo, tê-lo nas mãos. Foi tomado de uma sensação estranhíssima ao tocá-lo. Uma centelha de energia vinda duma outra dimensão percorreu-lhe todo o corpo provocando-lhe arrepios. E algo inusitado aconteceu, ao abrir o livro, este começou a falar com ele. Seu Satiro passou a ouvir uma voz ecoada como se vinda do além, mas que era como se fosse de dentro do livro, E que só ele conseguia ouvir, esteve a dizer-lhe:

"Numa noite de sexta-feira, caminhava eu por uma rua deserta quando me deparei com quatorze fantasmas. Essas aparições eram bruxas que imploravam ajuda. Chamo-me Cipriano, respondi as aparições. Disse-lhes que estava arrependido da vida de feiticeiro, e que havia me tornado temente a Jesus Cristo. Logo depois caí em sono profundo, e sonhei que se rezasse a oração do Anjo Custódio me livraria daqueles fantasmas. Ao despertar tive uma breve visão do Anjo. Assim, auxiliado pela oração de São Gregório e do Anjo Custódio, esconjurei e livrei as almas atormentadas das bruxas." 

Seu Satiro bruscamente fechou o livro. Estava lívido, suado, parecia ter descido as profundezas do purgatório, sentiu as faces como fogo. Não conseguia entender como aquilo estava acontecendo, o que significava? Um livro falando com ele! Tentou lembrar-se como fora parar na sua oficina. Lembrou-se que no último sábado, veio ter com ele um cigano. Tinha tatuagens nos pulsos, o signo de Áries na destra, e um cinco Salomão, na esquerda. Chegou trazendo uma lanterna para consertar. Por não ter dinheiro para quitar o reparo, deu-lhe o livro em pagamento. Teria lhe dito que assim que arranjasse dinheiro viria resgatar o livro que ficaria de penhora. Não veio. 

Outra vez Seu Satiro tornou a abrir o livro, que voltou a falar-lhe. Indicaria uma página para que abrisse e pediu que se concentrasse e repetisse tudo que lhes iria pronunciar: 

“De omni re scibili et quibusdam aliis – Para saber de coisas ocultas” 

Após recitar a oração que havia naquela página, Seu Satiro experimentou a faculdade de decifrar os signos literários. Incrível! Num estalo de dedos aprendera a lê! Seu Satiro estava radiante! Bastou repetir as palavras que o livro lhe indicou e passou a saber lê. Avidamente como um cego que adquirira a capacidade de enxergar, quis devorar o que havia escrito nas outras páginas: 

Oraculum A posteriori mortem – Oração para depois da morte 

Oraculum Animus laedendi – Oração com intenção de prejudicar 

Oraculum Animus necandi – Oração com intenção de matar 

Oraculum In spiritualibus A sacri – Oração para adquirir poder das coisas sagradas 

Oraculum Corpus alienum – Oração para Ocultar-se 

Oraculum Obscurum per obscurius – Oração para o que estivesse oculto que se revelasse 

Oraculum Nihil occultum ipsum – Oração para que nada fique oculto para mim. 

E Seu Satiro passou a dedicar-se a ler tudo o que havia acumulado até então. A começar pela Bíblia Sagrada. E todas as noites a porta de casa a meninada, os vizinhos puxavam cadeiras e mesmo sentados a calçada, vinham apreciar as extraordinárias narrativas de Seu Satiro que acreditava ter sido seu velho pai Cipriano que viera do mundo dos mortos, dotar ao filho, do domínio das letras e da narrativa.

Fabio Campos


O PORTAL

Ao menos duas vezes ao dia, íamos à bodega de Seu Ozéias, comprar pães para o café da manhã e a janta, e outras tantas coisas, que todas as mães do mundo, necessitam para realizar os afazeres domésticos. A taberna ficava logo no início da Avenida Coronel Lucena Maranhão, em Santana do Ipanema. Minha casa ficava no largo do Monumento. Cinquenta anos separam aqueles, dos dias que vivemos pra contar este episódio. Recrudescendo aos fatos recorrentes de infante, vamos nos encontrar realizando tais empreendimentos. E quão agradáveis impressões causavam-nos ir àquela bodega. A ingênua criancice admitisse talvez, que fosse pelo fato de que ali se negociava os mais desejados manjares, os pirulitos em formatos diversos. Claro, ia além disso.

Entrar na bodega de Seu Ozéias era como sair do mundo real. Era como adentrar a um mundo estranho, num lugar longínquo. Uma viagem ao desconhecido. Uma expedição, uma aventura aguardava-nos adiante dos umbrais daquela porta. Balcões de madeira com vitrinas de vidro. Prateleiras toscas, repletas de garrafas. Fardos de charque, latas de sardinha do porto, e de manteiga real, querosene jacaré e sacas de cereais. Era o que os olhos desarmados de um viajante comum conseguiam enxergar. Tudo que viam era que ali não passava de uma reles mercearia. Menino enxergava mais longe. A cada canto um tesouro a se explorado, aguardando ser conquistado. Antigas cédulas, dobrões de prata, a balança Filizolla, o relógio de pêndulo com algarismos romanos. A máquina registradora e sua campainha. Os cartazes, as propagandas de cigarro. Dois objetos pendurados na parede chamavam pra si a atenção, a imagem de São Jorge guerreiro, ao lado de um escudo, um brasão de família.

“Brasão dos Vieiras
Um escudo Vermelho
Com seis vieiras de pra
Disposta Duas a duas
Encimadas por dois bordões
De Santiago cruzados
Enlaçados Por cordão real”

A família Vieira veio do Minho, proveniência minhota, do período imperial português. Rui Vieira fidalgo muito honrado do tempo de Dom Afonso II, Rei de Portugal, e de seu filho Dom Sancho II, viveu pelos anos 1220, senhor da Quinta de Vila Seca, na freguesia de São João, comarca de Vieira, onde morou e morreu. É a pessoa mais recuada que traz o sobrenome Vieira. A ele se referem as inquisições de Dom Dinis, dizem que o concelho de Vieira foi honrado por ele. De Rui Vieira vieram os filhos Pedro Rodrigues Vieira e João Rodrigues Vieira, pai de Afonso Anes Vieira abade de Sousela, que teve por filho a João Afonso Vieira. É desse tronco, dessa árvore genealógica que surge os irmãos Martinhos Vieira. Os irmãos, Pedro Vieira e Martinho Vieira, atravessando o atlântico viriam aportar em terras brasileiras e adentraram os sertões em busca de terras devolutas. Figuram hoje como fundadores da cidade de Santana do Ipanema.

Seu Ozéias era figura excêntrica, homem mediano, caucasiano. Usava um pequeno bigode, o cabelo aparado aos modos dos soldados nazistas alemães. Um óculos de armação preta que marcava o rosto. Vivia sempre lendo. Colecionava revistas em quadrinhos. Com os meninos barganhava um doce por um gibi. A bodega de Seu Ozéias poderia ser considerada o refúgio dos super-heróis. Bem ali por traz das sacas de açúcar, no depósito, um menino mais afoito talvez até encontrasse a Liga da Justiça, quem sabe a gruta secreta, a batcaverna do homem Morcego. Numa daquelas estranhas caixas uma pedra de criptonita, o elemento que Lex Lutor tanto procurava pra destruir o Super-Homem. Não duvidasse que a qualquer instante entrasse por uma daquelas portas o destemido Tex vindo do longínquo Arizona. O Fantasma o herói secular com seu cão fiel estaria encrencado com os nativos, em busca de sua amada Diana. Dom Diego de La Vegas o famigerado "Zorro" disfarçado de freguês antes de sorver sua dose de conhaque perguntou a Seu Ozéias, o por quê da devoção a São Jorge.

Dom Nuno Alváres Pereira, Condestável do Reino, considerava São Jorge o responsável pela vitória portuguesa na batalha de Aljubarrota e ali estava a Ermida de São Jorge a testemunhar esse fato. Os Cruzados ingleses ajudaram o Rei Dom Afonso Henriques a conquistar Lisboa, em 1147, teriam sido os primeiros a trazer a devoção a São Jorge para Portugal. No entanto, só no reinado de Dom Afonso IV o uso de “São Jorge!” como grito de batalha se tornou regra, substituindo o anterior “Santiago!”. O Rei Dom João I de Portugal era também, devoto deste santo, em 1387, ordenou que sua imagem a cavalo fosse transportada na procissão de Corpus Christi.




Fabio Campos

O Santo, a Rua e o Rio

Santana do Ipanema tem uma rua chamada São Vicente. É natural que se pense que a denominação esteja relacionada ao Antigo Abrigo para Idosos São Vicente de Paulo, logo na entrada.Fundado pelo Rotary Club, na segunda administração do prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, num tempo a rua nem era rua, propriamente dita. Para contar a versão original do nome daquele logradouro, voltemos no tempo e no espaço. À Grécia antiga, 700 anos antes de Cristo.

A cidade de Alba Longa era governada pelo décimo-segundo rei Numitor que seria deposto por um estratagema de seu irmão Amúlio. Para garantir o trono, Amúlio assassinou todos os descendentes varões de Numitor. Sua única sobrinha, uma linda donzela chamada Reia Sílvia, Amúlio obrigaria a se tornar sacerdotisa, consagrada a deusa Vesta. No entanto a sacerdotisa terminou por engravidar do deus Marte. Desta união foram gerados os irmãos Rômulo e Remo, que nasceram a 2 de março de 771 a.C. Como punição Amúlio mandou prender Reia em um calabouço e mandou jogar seus filhos no rio Tibre. Como por milagre, o cesto onde estavam as crianças, acabou atolado em uma das margens do rio, no sopé dos montes Palatino e Capitolino, em uma região conhecida como Cermalus, Não demoraria e acabariam sendo encontrados por uma loba que os levou, e os amamentou a sombra de um pé da Figueira Ruminal (Ficus Ruminalis), na entrada de uma caverna chamada Lupercal. Tempos depois, um pastor de ovelhas chamado Fáustulo encontrou os gêmeos e levou-os para sua casa onde foram criados por sua mulher Aca Laurência.

Na Rua São Vicente, habitava humilde moradia, com seus doze filhos, um cidadão que atendia pelo nome de Jasão Vicente Melquisedeque. Seu Jasão viria a ficar viúvo ao nascer-lhe sua única filha mulher, a caçula Maria Aparecida. Por ser homem temente a Deus, fez voto de castidade, e de tantas romarias a Juazeiro do Norte, para se aconselhar espiritualmente com o padre Cícero, terminou por adotar em definitivo o uso do hábito franciscano. Conhecedor dos poderes medicinais de toda espécie de planta da caatinga, Jasão Vicente proporcionava cura, àqueles que o procurava para que os livrassem de mazelas físicas e encosto do outro mundo, sem que nada fosse preciso ser dado em pagamento. Levava aos extremos quanto aos preceitos religiosos, amplamente arraigados no seio de sua parentela. Aos filhos cobrava que pedissem a benção, pelo menos três vezes ao dia, ao acordar, após as refeições e ao deitar-se, bem como deviam recitar oração nessas ocasiões.

Maria Aparecida, depois da maioridade, arranjou um namorado por nome de Paulo, rapaz sério, honesto e trabalhador, tudo com a aprovação de Seu Jasão, porém aos filhos e a filha, sempre alertava, tinham que se casar virgem. Preferia vê-los mortos a desonra da família. E eis que Maria Aparecida engravidou. Escondeu a gravidez até o dia de ter os filhos, eram gêmeos. Teve-os na barranca do Rio Ipanema, no sopé do serrote da micro-ondas. Abandonou-os a sorte embaixo de um pé de fícus. Uma raposa atraída pelo cheiro de sangue encontrou-os e levou-os pra sua toca, uma gruta que ficava no cume da montanha, logo abaixo do grande rochedo onde tempos mais tarde, fixariam uma estátua de Cristo redentor. O canídeo selvagem havia dado cria, e levou os bebês para alimentar seus filhotes, muito embora mal algum fariam pois eram muitos pequenos e apenas mamavam. Pedro Socó um caçador seguindo o choro das crianças, encontrou-as na toca da raposa e depois de enfrentar o bicho, levou-as pra casa no sopé do serrote do Cruzeiro. Os bebês foram criados por sua esposa, como sendo filhos seus, a eles, dera os nomes de Cosme e Damião.

Voltemos outra vez no tempo. Mais precisamente ao século III d.C. na Arábia. No seio de uma família nobre de pais cristãos, nasceu Cosme e Damião. Ainda meninos foram para a Síria. Ali estudaram medicina e depois a exerceram, em Egéia e na Ásia Menor. Por não receberem qualquer pagamento por isso, eram chamados de anargiros, que quer dizer, inimigos do dinheiro. Diziam: "Nós curamos as doenças em nome de Jesus Cristo e pelo seu poder". Sob a acusação de feitiçaria e de serem inimigos dos deuses romanos, foram perseguidos pelo imperador Diocleciano e por ele trucidados. Na primeira tentativa de matá-los, foram afogados, mas salvos por anjos. Na segunda, queimados, mas o fogo não lhes causou dano algum. Apedrejados na terceira vez, mas as pedras voltaram para trás, sem atingi-los. Por fim, morreram degolados, e seus seguidores transportaram seus corpos para Roma. Cosme e Damião martirizados na Síria. Foram sepultados num templo dedicado a eles, feito pelo Papa Félix IV (526-30), na Basílica de Roma. Aos seus sepulcros, se lê as insígnias SS - Cosme e Damião.

No Cachimbo eterno, em Santana do Ipanema, Cosme e Damião, os filhos adotivos de Pedro Socó, o caçador, crianças ainda, tinham o poder de curar doenças. Eram como o avô, lá da Rua São Vicente, que eles nunca conheceriam. Colhiam em segredo folhas de determinadas plantas na beira do rio Ipanema e produziam um óleo santo que tinha entre outras coisas, o poder de dar filhos às mulheres estéreis. Um dia, os dois irmãos estavam às margens do rio Ipanema, a cata das ditas ervas milagrosas, mais precisamente entre as pedras do Poço dos Homens. Uma fatalidade terminaria por acontecer ali, Cosme numa brincadeira mais violenta acabaria por empurrar o irmão pras correntezas do rio. Damião, nos redemoinhos d’água do poço traiçoeiro, morreu afogado. E Deus vendo tal ato ignóbil deu um castigo a Cosme, se tornaria adulto, entretanto não cresceria, ficaria sempre com corpo de criança. E Cosme deu-se em casamento e todos seus filhos Miguel, Gabriel, Rafael, nasceriam com o estigma do castigo do pai não cresciam, eram todos anões.


Fabio Campos