A Vida é Bela


O sol iluminando, e acendendo as cores das coisas. O céu, infinitamente azul, as folhas das árvores esplendorosamente verde, o passarinho cantando docemente, muito além do fio de alta tensão. Pense nossa história como se ouvisse música. Uma bela canção, chamada vida. Como que embalados por uma melodia cotidiana, vamos contar dum tempo, especial. Início dos anos sessenta na cidade de Santana do Ipanema. É preciso que recordemos que à época, estávamos a apenas uma dezena e meia de anos, do término da Segunda Guerra Mundial. O mundo se recuperava fisicamente, dos horrores da guerra. Recuperava-se ainda mais, emocionalmente. Talvez por conta disso, as pessoas estivessem ainda mais sensíveis, mais humanas. Depois duma tragédia. As coisas adquirem novo sentido, novo significado. Santana, era parte desse mundo ressurgido das cinzas. 

Um oceano inteirinho, milhares de quilômetros de espaço aéreo, centenas de quilômetros de estradas de rodagem e outro tanto de pistas asfaltadas, separava os sertões das Alagoas donde ocorreram os fronts de combates, os pelotões em ordem de batalha, as trincheiras, dos combates sangrentos. No entanto tudo isto estava muito presente, em nós. Como nuvem sombria, pairava sobre as mentes, sobre as ações. Ainda que cem décadas se passassem, não seriam suficientes para cicatrizar, as feridas de uma guerra mundial. Ainda mais que vivíamos, a espelho do resto do mundo, sob um sistema totalitário, o regime militar. 

A escola copiava o sistema vigente. A farda, a disciplina, o amor a pátria. Cantar o hino nacional antes de adentrar as aulas. Ter respeito aos símbolos nacionais, a bandeira, o brasão da república. Todo soldado era símbolo de dedicação, honradez e disciplina. Na semana da pátria um militar era convidado a ir ao Grupo  Escolar para instruir os estudantes como deviam se comportar por ocasião do desfile cívico. Nas casas vivia-se o modelo patriarcal de viver. O pai era a figura central da família, a ele se devia todo respeito. A mãe era símbolo de amor, de dedicação a sua prole. A mulher ao se casar, no mais das vezes renunciava de qualquer ideal puramente seu, para dedicar-se exclusivamente a família. 

A vida é bela, se nobres são os ideais. Tecnologia de ponta era máquina de costura Singer, onde em casa,  as mães faziam as roupas. Um rádio receptor anunciando o “Repórter Esso!”. Uma geladeira arredondada nas curvas de puxador engraçado, com um pinguim capitaneando por cima. Televisão em preto e branco era pra poucos. O melhor programa para a tarde, era ir até a casa da vizinha, conversar, falar da saúde dos filhos, de uma receita de bolo, um remédio caseiro, pra tosse, óleo de rícino e mastruz com leite pros vermes, banho de Samba Caitá pra cicatrizar mais rápido as brotoejas e o sarampo. Rever cartas à muito guardadas, amarradas com fita de filó, cheirando a Colônia de Alfazema, a Alma de Flores. A vitrola ABC "a voz de ouro", tocando Dalva de Oliveira. 

“Vê estão voltando as flores
Vê nesta manhã tão linda
Vê o sol iluminando
Vê há esperança ainda”

Sobre a cristaleira a compota com doce de goiaba em calda, semeado de cravos da Índia. Peças de porcelana esmaltada com desenhos que lembravam a aristocrática corte francesa de Luiz XV. Na parede o retrato do pai a cryon. Biscuits na copa e a “Santa Ceia” na cozinha. Um cena bucólica da caça a raposa ao estilo inglês. O álbum de fotografias com capa dura, plastificada, com gravura de um buquê de rosas vermelhas sobre um lenço violeta. Ao ser aberto acabava deixando cair uma foto velha desbotada, em preto e branco, picotada nas bordas, que havia se largado das cantoneiras. Uma bela moça com cabelo em coque olhava sabe Deus pra onde, talvez pro futuro, pois sorria. No verso escrito a lápis grafite: “Cara irmã! Guarde esta lembrança que lhe dou com muito carinho. Daquela que muito te ama! Ass. Maura 12.11.63”. Noutras fotos várias moças pousavam num lugar público, uma praça talvez. Vestido tubinho, um lenço entrelaçado no queixo, óculos de grandes lentes escuras, bolsa de mão a tiracolo, luvas, laquê no cabelo. Lembravam Jacqueline Kennedy, ao fundo um aero willys conversível, rabo de peixe . 

Uma lata de biscoitos lembrança do natal passado, agora continham sucrilhos caprichosamente feito de nata e manteiga, sobre a mesa. Os homens iam ao passeio matinal vestindo calças muito justas, de tecido, camisa tergal e volta-ao-mundo, no cabelo muita brilhantina pra imitar Elvis Presley. Papai ficava na cadeira de palhinha, folheando a revista Seleções de Reader’s Digest, o Almanaque da Fé. A Revista “O Cruzeiro”, sempre lia em alta voz, a coluna do Davi Nasser. As propagandas eram desenhos e mostravam pessoas felizes com suas famílias: Toddy, Arrozina e Maizena, sabonete Phebo Life Buoy, Creme Dental Kolynos, as pílulas da vida do Dr. Scholl, pomada Minâncora e Biotônico Fontoura. E o mundo, do pós-guerra se dividira em dois blocos, o Brasil ficou do lado dos norteamericanos. O presidente John Fitzgerald Kennedy combatia duramente o governo de Fidel Castro, na Ilha de Cuba, porque era comunista. Comunismo chegou pra nós como símbolo de anarquia. Seus simpatizantes eram perseguidos com mão de ferro. Versos considerados subversivos eram recitados às escondidas, nos porões das reuniões secretas dos dissidentes políticos: 

“Cuba sy! Cuba sy!
As fileiras americanas
Fidel Castro é comunista
Até disse que Batista
Matou vinte mil cubanos!”

A casa de Felício era vizinho a Bodega de Seu Ozéias. A gente estudava no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Um dia chamou-nos para mostrar mais um de seus inventos. Pois ele se considerava um cientista. Apelidavam-no cientista maluco. Era apenas um menino. Numa sala escura, fez passar o feixe de luz de uma lanterna através de um orifício numa caixa de sapatos, onde previamente havia inserido uma lâmpada de bulbo, cheia d’água. Interpondo um pedaço de película cinematográfica à luz e ao bulbo, projetou sobre a parede uma imagem gigantesca! Eureca!Felício havia reinventado o cinema. 

Fabio Campos

O Anjo da Cor de Gente

Lembro da primeira vez que o vi. A juventude andava em nossos corpos. Fui à sua casa, resolvido a iniciar namoro com sua irmã. Uma magnífica tarde de sábado havia. Era casa velha, de alpendre, ficava no sítio. Duas caídas d’água, a frente virada pra nascente, uma porta, e uma janelinha tosca, que vivia fechada. Tempos depois de ter declarado que gostava de olhar através de janelas, aos domingos, passaram a deixá-la aberta. Sentado a uma cadeira de palhinha parecia um velho, mas só nos modos. Assim como eu, tinha apenas vinte e poucos anos. Pernas cruzadas, joelho sobre joelho. Fazia um cigarro com fumo picado, numa facilidade medonha. O pequeno retângulo de papel entre os lábios, as mãos ocupadas, desse jeito saudou-me. Iniciamos conversa medindo-nos nos olhares. Astúcia de águia e raposa. Sabíamos que sondávamos um ao outro. Era uma tarde pra ver o amor. Roberto mesmo, diria: “Esta tarde vi Llover”. 

O pai chegou da roça. Chegou trazendo canto e cansaço de carro de boi. E os cheiros acridoce e forte de esterco, e forragem ruminada. Falava do trato com gado, do quanto valia uma tarefa de palma, do ataque de preás ao plantio, do que o céu lhe dizia ultimamente. Todo seu corpo e tudo ali ao seu redor, falava. Uma mão com textura de pedra e areia me foi estendida, carne e ossos apertados. E outro estudo dos gestos, sutileza. Também fez cigarro de fumo picado, só que de pé. Água sorvida com avidez, gosto de suor. E punha a mão na cintura de modo engraçado, encostava o dorso da mão no quadril. As falas eram de um para o outro, mas o olhar estava lá pro horizonte. Havia ali, um homem urbano tendo contato com homens do campo. E tudo que falavam era interessante, e queria entender do que diziam, prestavam atenção a tudo. Aprender a respeitar a terra, respeitar o sertão. Se apropriar das coisas, pois dali por diante, aquele mundo diferente, também seria seu. A namorada apareceu, interrompera as atividades domésticas junto à mãe. Trouxe um olhar, um sorriso maroto, seria esse seu cumprimento, de menina que era. Não tinha palavra pronta, nada pra dizer, apenas doava-se em imagem. Talvez julgasse que não precisasse falar nada, apenas ser, e estar ali. Concordávamos também com isso. Cabelos esvoaçando ao vento. A noite não demorou a chegar. O candeeiro transformou em sombras tudo onde não conseguia chegar a luz. E tudo dançava uma dança de claro escuro. A longa espera por ficar a sós com ela, algo que parecia remoto, distante, e isso, apenas tornava-a ainda mais bonita. E teve que ter um longo namoro, com o pai. 

Noutro dia, tentou fazer-lhe surpresa, chegou no meio de semana. Era uma tarde ensolarada, de quarta-feira. Lá ia ela, andando na vereda, de costas, não o via. Bacia de roupas na cabeça, pra lavar na ribanceira do barreiro. Feliz, ia cantando. Trajava um short, blusa de meia. Cabelo negro, juba esvoaçante ao vento. Ao se encontrarem, sentiu que a desconcertara. Beijaram beijo apaixonado, abraço forte de que tem saudade, de pessoas que se amam. Ainda a apertava entre os braços, sentindo o cheiro do seu cabelo e o viu. Lá estava ele, o seu anjo da guarda, seu irmão, sentado à borda do riacho. Não teria dado pra ver, pois estava camuflado na cor argila do barreiro, com o marrom de sua camisa. Vigiava-a. Agora, vigiava-nos. Ao por do sol, rumavam pra cidade, iam assistir novela na televisão, Roque Santeiro, na casa da irmã mais velha, casada. Lá íamos de carro de boi, eu, ela e sua mãe, o anjo da guarda conduzia o cortejo, o pai ia a cavalo, o irmão mais novo numa bicicleta Monark. Levavam leite e feijão, tomates e abóbora. Um balaio de capim e palma pros coelhos. E tudo era tão roceiro, tão bucólico. Fim de tarde, agricultores voltando do campo. Um outro carro de boi vinha gemendo com o peso da palma, um cachorro magro, ia até lá adiante parava, a língua suando, pingando na terra ainda morna da estrada. Um carcará depois de um vôo rasante sobre nós veio pousar na estaca do cercado. 

Nas férias escolares, fomos pra o sítio Lage Grande, do tio dela, Seu Antonio, Dona Angelita, quanta amabilidade em duas criaturas. O primeiro passeio a cavalo, não gostou, sentia pena de estar ao lombo do animal. Tudo tão incômodo, ainda mais havia a falta do domínio das rédeas, um desastre, todos riram da falta de habilidade do moço da cidade. No barreiro salubre, podiam tomar banho. Todos foram. Corpos molhados revelam detalhes, curvas novas, cabelos molhados desenhavam melhor os rostos. O anjo da guarda riu das pernas finas do namorado da sua irmã. De volta à vida dantes, a rotina, e próximo ao sítio Calango Verde houve uma quermesse. O moço quis estar lá e acabou encontrando os pais da namorada. Perguntou por que ela não viera. Ficara cuidando do irmão mais novo. Deu-lhe vontade de embrenhar-se, abrir um buraco na noite, e bater lá. Mas os pais não o perdiam de vista. Sabiam do que seria capaz. O anjo da guarda com certeza a velava era sua função. Os tocadores de pífanos, a zabumba, o fole suplantavam o tri-li-li dos grilos no torrão noturno. As prendas, rodando no meio do povo na mão do leiloeiro. Procurando quem desse o maior lance. Um peru, um bolo de macaxeira. Depois de várias garrafas de vinho, e muitos grogues de cachaça com o pai, e o convite para ir dormir lá no sítio. Vibrou com a possibilidade de vê-la ainda naquela noite. Já ia a madrugada quando foram engolidos pela vereda cor de carvão. E se quando chegasse lá já estivesse dormindo? Estava. Sua mãe a acordou. Conversaram um pouco sozinhos, depois o pai veio acender um cigarro de palha, olhar a noite e chamou-o pra ir até a beira do riacho. A noite estava linda. 

E veio a grande festa. A festa do Padroeiro. Na semana da festa do feijão, comprou um relógio de pulso pra lhe dar de presente de aniversário. Setembro vinha como vinha Beto Guedes “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos corpos” Colocou um perfume novo, e levou um pouco, num frasco, para colocar quando estivesse quase chegando na sua casa, porque era longe e iria a pé. Outro irmão, que não o anjo da guarda, tinha motocicleta, e foi visitar os pais naquele dia, veio vindo e parou a dar-lhe carona. Não era de muita conversa. O anjo conversava mais. Talvez pra descobrir coisas. Queria saber quando, e se pretendia casar. Tomamos banho juntos, tirando água do barreiro, nos vimos nus, e acabou revelando a irmã do dote sexual do cunhado. 

À festa ficamos os três à mesa na discoteca. Bebemos muito, o anjo acabou dando-lhe um beijo na boca. Pegou-nos de surpresa. Estupefatos ficamos. Disse pra não ter ciúme, se amavam, sempre se amaram. Muitos anos se passaram, os enamorados se casaram. E o anjo também casou, o tempo passou e o anjo adoeceu, e não tinha melhora e morreu. Internado no Sanatório em Maceió morreu. Era madrugada e veio acordar-me pra dizer que cuidasse dela. Chorando acordei, acordei-a e contei a ela. 

Ainda agora sinto a sua presença. Enquanto escrevo, e mesmo quando realizo alguma tarefa em casa, lá estar ele. Não tenho mais receio, a gente se acostumou um com o outro. O vulto que passa de um cômodo pra outro, o halo frio, as vezes morno que sopra sobre meu ombro, no meu ouvido, sei que é ele, o anjo dela. Não tem aura de luz, não é nada do outro mundo. Apenas anjo do jeito, da cor de gente. 

Fabio Campos

O Quinto Dia

“...Deus criou os monstros do mar, e todas espécies de seres vivos que em grande quantidade se movem nas águas, e criou também todas espécies de aves que voam no céu. A noite passou e veio a manhã. Esse foi o quinto dia. Gênesis 20-22” 

Essa é uma história bem antiga. O que vamos contar se sucedeu há trezentos mil anos atrás. Sobrevoando iremos por toda a extensão do vale do Caiçara, por ali vamos. De cima dava pra ver bem, o delta do rio Ipanema, deitado eternamente em berço fulgurante. Dantes, coberto por esplêndida vegetação. Aonde um dia, surgiria o município de Santana do Ipanema. Uma floresta tão densa que não dava pra ver o solo da primitiva pátria mãe. E a flora era dum colorido fantástico, reluzente. Como se briófitas e liquens emitissem raios de luz, produzindo um efeito etéreo, mágico. Como se lá no meio da mata escura, cogumelos luzidios alumiassem aldeias, algumas imaginárias. Não fazia muito tempo, e estávamos na Era do Gelo. 
Imagine que o céu, se apresentava em duas tonalidades, no horizonte uma nuance violácea, no firmamento um azul de um céu profundo, se tornando cada vez mais escuro à medida que afastava da estratosfera do recém criado, novo mundo. Deus, por essa época, se ocupava, experimentando a Criação. Os planetas, já Ele os havia feito, porém ficaram muito próximos da Terra, de modo que ao observar o céu, dava perfeitamente pra vê-los, sem necessidade de aparelho algum. Saturno com seus anéis, multicoloridos, alternando camadas de pequenos meteoros, e nuvens de gás neon. Plutão, imenso, misterioso, como se a qualquer momento fosse sair de lá dentro, da sua superfície gasosa, um ser mitológico, alado, dotado de três cabeças com potentes chifres, a boca demasiadamente aberta com presas ofídicas, uma couraça revestindo seu corpo, e a ponta da calda terminando em seta. Ameaçava atacar a Terra, porém passava, rente, de modo que se alguém escalasse uma montanha e estirasse o braço seria capaz de tocá-lo. Mas o dragão seguia seu caminho. Ia pela via láctea espalhando as estrelas, deixando um rastro de poeira cósmica. 

O sol, uma gema em fogo, mais parecia uma lua vermelho-alaranjada. A quentura mal chegava a terra, E sua luz parecia iluminar somente a ele próprio. A lua ao seu lado, ainda maior do que se apresenta hoje, parecia soprar sobre a terra, uma brisa cor de prata, gélida, que tornava o ar rarefeito, metálico. Deus havia feito tudo isso. Ele o fez. E todas essas coisas estavam muito próximo da terra. De modo que ao longo de muitos milênios lentamente iria se expandir, indo ocupar o lugar, onde se encontram hoje. Essa proximidade de todos os astros e estrelas com o nosso planeta, acabaria por tornar a gravidade da Terra inconstante, de modo que imensas porções de terra e pedras flutuavam na atmosfera. Olhando o horizonte, via-se ilhas de blocos de terra e pedras, como que navegando feito balões. E eram habitadas por gigantescas aves de penas, bico e garras, mas havia também aves com características de répteis, que ao voar emitiam um canto, um longo silvo estridente, como se comunicassem com outros da mesma espécie. Dentre todos eles o mais temido era um que tinha cabeça semelhante ao cavalo, e que lhe cairia bem o nome de Pegassus bucefalus. Dotado de patas que permitia cavalgar, e asas que atacava outras espécies em pleno vôo. 

Briófitas que emitiam luzes de cores variadas que correspondiam e identificavam cada uma das espécies. Colibris e mariposas específicas para fecundar cada espécie. Plantas com sensibilidade ao toque, que se abriam somente em determinados momentos e fechavam-se ora pra facilitar os animais alados que promoviam sua fecundação, ora pra capturar suas presas. Escaravelhos que eram atraídos por feromônios. Essas plantas revestiam o solo sedimentar. E possuíam sensibilidade tanta que se recolhiam ao simples toque de elementos invasores. Pterodófitas se elevavam a muitos metros do chão. Os elementos mais presentes ali era oxigênio e hidrogênio. E em menor quantidade enxofre liberado de algumas fendas que existiam no solo. Angiospermas e gimnospermas rica em flores e frutos, de variadas espécies. Ananás, de nuance vária, que brotava nos cardos e pântanos. Árvore de frutos nodosos e atraentes que muitas vezes escondiam armadilhas biológicas, seivas leitosas, resinas odoríficas. Algumas possuíam glândulas por onde liberavam nuvens de pigmentos e tinturas, caso se sentissem ameaçadas. Enormes tapires, javalis e porcos selvagens habitavam as margens do rio e cavavam tocas onde moravam e se refugiavam de tigres de sabres, jaguares e lobos do gênero Canis lupus. Micos habitavam as copas das árvores, e para se camuflar escolhiam árvores de acordo com a cor de sua pelagem. Azuis, amarelos e vermelhos. 

Mamíferos, de linhagem mais evoluída que os símios habitavam palafitas ao longo do delta do rio Ipanema. Tribos de primatas, homens das cavernas. Havia os que moravam nas grutas, e outros que para se protegerem das feras, moravam em palafitas, assim era. Ao contrário do homem de Neanderthal, nossos ancestrais não possuíam o corpo coberto de pelos, provavelmente por não viverem em terras geladas. Nossos primeiros habitantes tinham o corpo liso, cabelo espesso e duro, eram pardos. O crânio levemente achatado. Olhos fundos, bocarra, e não tinham barba. Tronco e tórax e membros superiores bem desenvolvidos. Eram exímios nadadores. Viviam da caça e da pesca, da extração de frutos e tubérculos. Já moldavam suas armas e utilizavam o fogo. Feições de homens e mulheres eram muito semelhantes, somente as mamas desenvolvidas nelas, os diferenciavam. 

Nesse paraíso viveu Joaracy e Coaracy, um casal de nativos. Nas imediações das terras onde um dia seria o Sítio Laje dos Barbosa. Teve uma ocasião que veio uma tempestade, o rio Ipanema avançou sobre as palafitas, afogando muitos primatas. Joaracy e Coaracy estavam caçando, interromperam a caçada e retornaram a gruta que habitavam. Os afluentes do Ipanema também transbordaram. E as águas soterraram a gruta onde o casal de nativos se abrigava. E o mundo girou, e o tempo avançou. Trezentos mil anos depois, e chegamos a Era Cenozóica da Terra. Período Quaternário, Idade Contemporânea. Lá estava Inácio, professor de história, estudioso de arqueologia, realizando escavações naquele mesmo local. Passou quatro dias escavando, sem nada encontrar, estava pra desistir daquele lugar. E eis que no quinto dia, encontrou. Os corpos fossilizados de nossos heróis, e a ossada de outros monstros que também pereceram na grande tempestade. 

Fabio Campos

Correntes e Acorrentados


Cidade de Santana do Ipanema, de ruas e praças espraiadas no tabuleiro inconstante do rio. As casas, teclado vivo de um órgão descomunal, melodiavam uma melodia diuturnamente, intensa, incansável. Ora suave e relaxante, ora extravagante e profusa. Ainda assim sonoridade semi Vivaldiana. 
Magníficas elevações serranas circundantes lembravam, aos deslumbrados contempladores, ursos hibernantes. E o povo como que em êxtase, dormia um sono acordado, e o mais que sabiam, era ouvir e contar histórias. Reais ou inimagináveis, de sujeitos e pátria desimportantes até. Porém criam. 

Glauco e Otávio ali se haviam um dia. Num tempo, que a gente jamais esquece. Tempo em que os trovões eram roucos de se ouvir. E o céu de toda manhã se abria como fenda de fogo vivo que aparece. Tempo, em que Deus estava ainda terminando de fazer o mundo. E ao separar as águas do elemento terra, acabou por ficar tão escasso ali. Glauco era homem do campo. Amava o cultivo do solo. Ainda bem cedo, quando os primeiros raios de fogo tocavam-lhe as faces, punha-se de joelhos. E fincando suas duas mãos no solo do sertão, pedia a benção, a mãe terra. Elevando os olhos aos céus, atirava um punhado de pó ao vento, e agradecia a Deus. E nas festas da Padroeira Senhora Santana, não importava se o ano fora seco ou de fartura, não faltaria com a oferenda, ao templo de Jerusalém, remanescente de Israel. Tantas sacas de feijão e milho doaria para o leilão. Pra o compadre Ermíndio, dono da farmácia, certamente não faltaria um peru gordo cevado, no natal. Doutor Cleófanes médico obstetra, ganharia um queijo, uma galinha, um dúzia de ovos de capoeira. O prefeito que atendera seu pedido de limpar o açude seco, planear a estrada, pra ele uma marrã de ovelha, que ele mandaria matar, e com os amigos comeria, regado a bom uísque. 

Otávio, nosso outro personagem, vivia vida de gado, um povo marcado, um povo feliz. Porque gado aquela gente marcava, a ferro e fogo. Mas com gente, não era muito diferente. E o mundo vivia girando sob as patas de seu cavalo. O elemento água também essencial era ali. E Otávio trouxe até sua propriedade um mago. Um homem sábio de lugar longínquo veio. Conhecedor das ciências ocultas, deitava orações para afastar maus-olhados, curava doenças. Livrava da morte certa animais picado por bichos peçonhentos. Pras os confins da terra afastava pragas da palma, enxames de abelha, cupim da madeira, mosca do chifre, maleita, macacoa e sezão. Tudo isso fazia. E tinha outro dom especial, sabia os locais onde havia água no subsolo. De olhos vendados, portando uma forquilha, de um pau que ele sozinho ia buscar no mato, localizou água quase na divisa da propriedade com o vizinho Glauco. Em parceria cavaram um poço, e ambos utilizavam a água. Assim o fizeram. Otávio também doava seu dízimo na festa da padroeira Senhora Santana. Tantas cabeças de gado. E os dois eram como aqueles irmãos, tementes a Deus, narrado no livro sagrado. Suas casas louvavam ao senhor todos os dias. E os filhos pediam a benção, em três momentos no período de um dia: Ao levantar-se, após as refeições, e ao deitar-se. 

Um dia, ao cair da tarde Otávio pastoreava seu rebanho, pitando um cigarro de palha. E eis que foi se encontrar, olhando pras bandas do fim do mundo. Justamente do lado oposto da sua propriedade e de seu amigo, que apontavam rumo ao sol nascente. E caiu em si, numa pergunta. O que haveria pra além do que seus olhos alcançavam? Sem dizer nada a ninguém, quis ele mesmo tirar suas dúvidas. Na manhã seguinte partiria, assim o fez. E Otávio sumiu no oco do mundo. Os seus entes queridos deram-no como morto. Seus filhos e esposa tocaram a vida, como se órfãos e viúva fossem. Porém Otávio morto não estava, e depois de sua longa jornada voltou. Voltou pelo outro lado do mundo. Pois uma volta completa sobre a terra ele dera. E chegou justamente na propriedade do amigo Glauco. Por aquele, teria sido muito bem recebido. Como a um filho pródigo. Recebido com honras e festa, assim o fora. Porém notou que o amigo havia voltado com outro semblante. Os cabelos tornaram-se grisalhos, cultivara uma longa barba igualmente branca. Assemelhava-se a Moisés, depois que descera do monte Horebe. O amigo adquirira sabedoria. E passada a euforia do reencontro, quis o amigo viajante ter uma conversa com o amigo arraigado. Eles que, desde que se entendiam de gente, nunca, jamais haviam deixado suas propriedades. Otávio afinal havia rompido com aquele interdito, imposto por eles mesmo. Deus não tinha participação naquela decisão deles. 

E tiveram um diálogo. Disse Otávio: - Glauco! Quero lhe falar do que vi nessa viagem que fiz. Imagine um muro bem alto, separando o mundo de fora, desse nosso mundo. Pra que você entenda melhor, chamarei de caverna. A caverna é o mundo onde só existimos nós, a minha e a sua propriedade, a minha e a sua família. Todos os dias chega um raio de luz, o sol que nasce a cada manhã. Como aqui permanecemos desde que nascemos e crescemos, só conhecemos essa realidade. Apesar de ter uma vida livre, de poder ir e vir por toda extensão de nossas propriedades, vivemos como que acorrentados. Sem poder nos movermos, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna. Não deixa de ser um belo cenário que aprendemos, desde de pequenos, a contemplar, amar e se sentir feliz. Ali no firmamento, todos os dias, vemos projetadas sombras de outros homens que estão para além do muro, separando o fim do mundo. E aqueles mantêm acesa uma fogueira. A luz projeta uma imagem que julgamos real, porém não passa de imagem. A realidade Glauco, está para além do fim do mundo. Ao fazer essa viagem em torno da terra, eu rompi com esse eterno estado de sonho, um mundo fantasioso, não real, em que vivíamos. Acatar tudo que nos é imposto, leis, proibições, governo, religiões. O sistema perverso hierarquizado, saúde, educação para todos, direito a ir e vir, liberdade de expressão. Tudo conversa pra boi dormir, um eterno faz de conta. E nós isolados do resto do mundo achando que assim éramos felizes. 

Otávio, disse que, o que tinha pra dizer já havia dito. E que o amigo agora também passara a conhecer a realidade, cabia a ele continuar aceitando tudo como dantes. As correntes que nos prendem, fomos nós mesmos que a criamos. Ninguém está livre delas, resta-nos pelo menos entendê-las. Somos todos atores, partícipes duma grande encenação.  “E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial, que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social”. 


Fabio Campos

O Menino da Camoxinga

O menino da Camoxinga, ainda mora no meu imaginário. Morar mesmo morava na Camoxinga. A casa ficava além da ponte e do riacho que dividia Santana do Ipanema ao meio. Na ladeira do Cemitério Santa Sofia. Num tempo, tão lá atrás, que nem havia calçamento de paralelepípedo, ladrilhando as ruas, afastadas. E tão pouco era o número de casas, que de cá do Monumento, dava pra ver o alto. E apontando dizia: -A casa que eu moro é aquela, amarela! Tá vendo? Nossos olhos iam pra lá. Um aceno de cabeça pra confirmar. Apenas confirmar, pois era muito provável que nem estivéssemos enxergando a tal casa amarela. E tendo certeza da dúvida, ele fazia questão de descrever como era: -Tem uma área na frente, um portão de ferro, muitas plantas! Com um pouco mais de atenção, talvez desse pra ver, sua mãe, cultivando uma nesga de húmus, que chamava de jardim. E haveria de debulhar um rosário de imprecações, se a bola traquina, dos meninos, fosse esbarrar nas suas plantinhas queridas, velhas amigas com que conversava toda manhã. 

Às vezes fico pensando se tenha existido de verdade, o menino da Camoxinga. Se não teria sido apenas fruto da imaginação. Mas era tudo tão real. Porque meninos são seres de mente muito fértil, capazes de inventar histórias, inverossímeis, inimagináveis. E menino, era o que a gente nunca devia deixar de ser. Mesmo que o tempo se encarregasse de naufragar, lá bem dentro do corpo aumentado, a frívola, a mágica energia dos verdes anos. 

Luiz André era um menino diferente. Jamais entenderei porque, seria necessário gastar quatro decanos de calendários, separando-nos tempo e espaço, pra chegar a tal constatação. Diferentes uns dos outros todos somos. Mas não seria dessa diferença, a que me refiro. Luiz André era um menino azul. Não que trouxesse o anil na tez. Azul cobalto era sua alma, e isso brotava no oceano dos seus olhos. Transparecia no piano do seu sorriso marinho. E mesmo o azul do céu, a brisa vespertina, vinha intrometer-se em seu cabelo liso em desalinho. E de tanto vê-lo trajado no brim da farda do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, ficou assim, um menino Azul Cecília Meireles. E numa daquelas magníficas tardes, em que a gente saía da escola, esteve a contar-me mais uma de suas inúmeras histórias fantásticas, que tanto me fascinavam. 

Sentados a um dos bancos da praça, remexendo no que restara dos nossos lanches do recreio. A sua lancheira azul, em alto relevo trazia o desenho do capitão América. A minha, o Homem de Ferro. Observando outros meninos fazendo estripulias nos brinquedos do parque da praça, calmamente disse: -A minha casa é mal-assombrada. Estávamos no final de outubro daquele ano, e remendou: -Por esses dias fica ainda mais mal-assombrada! –Como assim? Quis saber. Com a proximidade do dia de finados, o Cemitério Santa Sofia ficava muito movimentado, o povo ia limpar e ornamentar as catacumbas. As almas dos defuntos, que não tinham ido pro céu, ou pra lugar algum, surtavam. Incomodadas com a presença de tanta gente barulhenta, acabavam por vagar pelas redondezas. Iam perturbar a vizinhança. Derrubavam panelas na cozinha, quebravam pratos na pia. À noite acendiam as luzes dos quartos. Abriam torneiras da pia do tanquinho, do chuveiro. Ligavam ventiladores e o liquidificador. Espalhavam discos pelo chão, punha a vitrola pra tocar. O gato coitado, eles conseguem ver esses espíritos desencarnados, era o primeiro a desaparecer naqueles dias, pois não o deixava em paz. Também o cachorro lá no quintal, latia freneticamente e uivava de modo sombrio. Era como se chorando dissesse: –Socorram-me! Eles estão me perturbando! O próprio André presenciara, numa das vezes que fora acalmar o cão, de lá do breu do quintal, atiraram-lhe uma manga verde, sem que houvesse possibilidade alguma dum ser vivente ter feito aquilo. E os galhos da mangueira balançaram violentamente, ainda que não houvesse o menor resquício de ventania, na noite quente abafada. 

Teve uma vez que estava dormindo, e acordou com alguém lhe chamando, pelo nome. Era voz de um menino. Procurou embaixo da cama, não estava. Revistou os cantos, nada. Abriu o guarda-roupas, encontrou. Um menino bem afeiçoado, bonito. De cócoras todo molhado, a roupa colada ao corpo, tremia de frio. Os cabelos castanhos, lisos, molhados, escorridos na testa. Os olhos grandes, de longos cílios, pareciam ainda maiores, arregalados. Disse que tinha medo. Medo de um homem muito mal que queria lhe fazer algo muito ruim. Disposto a ouvi-lo, sentou-se ao seu lado. Ouviu-o contar que o homem mal era seu tio, que havia perdido os pais, num acidente de carro. Por isso foi morar no sítio, com o irmão de seu pai, mas a esposa dele odiava-o, lhe batia, chamava-o de afeminado. Um dia o tio, que era alcoólatra, encontrou-o a buscar água no açude, arrastou-o pro mato, e abusou sexualmente dele. Pra ter certeza que não contaria a sua esposa, afogou-o. Também pra parecer que tinha sido ele mesmo que se afogara. André e Augusto ficaram amigos, e combinaram uma vez por ano se encontrarem. Dia de finados, seria o dia. 

Muitas outras histórias seriam compartilhadas, bem como, muitos outros momentos bons. Nos banhos do rio Ipanema. Tantas foram as vezes que juntos a uma tropa de meninos, na maior algazarra, ia, rumo pra além da Maniçoba. A um lugar chamado “Escondidinho”. Chegavam ao início da manhã. Escalavam rochedos pra se atirar perigosamente no turbilhão das águas bravias. Desafiando todas as leis do universo, o mundo era daqueles meninos. E se o gasto energético ocasionava a fome, saiam à cata dos umbuzeiros, tubérculos, frutos e mesmo folhas. Ao aproximar-se a hora de deixar o “velho” amigo ficavam todos nus. Estendiam os calções para enxugar ao sol. E pareciam um bando de índios. E ficavam excitados e masturbavam-se, sem precisar recorrer à visão de uma vulva feminina, só por puro prazer. Uma outra versão da Terra dos Meninos Pelados, nua, crua, sem poesia, longe de Quebrangulo, distante do sonho de Graciliano Ramos. 

André convidava-me a fazer determinadas estripulias que jamais teria coragem de fazer  sozinho. Roubar uvas no pomar de Doutor Clodolfo, desfrutar os mamões do terreno baldio do Grupo Escolar. Tirar tamarindo, escalando o muro do quintal de Dona Marina Marques. Surrupiar amendoim, um pouco de fubá e farinha de mandioca, dos mangaieiros, no meio da feira. Tomar banho no proibido, açude de Seu João Augustinho, ou na piscina da chácara de Doutor Aderval Tenório. Tentar entrar no circo por baixo da lona, sem pagar. Acompanhar o palhaço no meio da rua, anunciando o espetáculo, pra ganhar um ingresso. Tentar entrar no cine Alvorada, num dia de filme impróprio para menores. Teve um dia que compramos uma garrafa de vinho de jurubeba, meio quilo de salame e alguns pães. E fomos pescar pitu no riacho do bode. Cheguei tarde e levei uma sova de meu pai por isso. Acabei aprendendo a usar o menino da Camoxinga como subterfúgio, atribuindo a ele, as coisas erradas que fazia e eram descobertas. Dizia: -Foi o menino da Camoxinga! Um menino que simplesmente nunca passaria de fruto do meu imaginário. 


Fabio Campos