A Praça é do povo. Não a do poeta Castro Alves, de Salvador. Refiro-me a da Bandeira em Santana do Ipanema. Está tomada pelo povo. A cidade comemorava o sesquicentenário da independência do Brasil. “-Discursarão em instantes, as autoridades: Prefeito Doutor Henaldo Bulhões Barros, Major Estevan, Pastor Bonfim e o Padre Cirilo!” Falava solene o locutor. A maçonaria, rotaryanos e Leoninos, todos à praça. Alunos da Escola Bacurau gagueja um jogral, é uma homenagem.
Uma aluna do grupo Escolar Padre Francisco Correia. Leva um ramalhete de flores. Ela se faz baliza da Banda do Exército. Na frente da Toca parou. Esperando alguém. Ou o momento certo, ensaiado. O povo espera curioso. A quem vai entregar aquele buquê de flores? Isso é daquelas idéias surpresa, concebidas pelas professoras, no momento do recreio. Idéia expulsa do fundo, do âmago das educadoras. Vomitada em meio aos gritos dos meninos e do cheiro nauseante de leite desnatado e da creolina, colocada nos banheiros. São dez da manhã, o sol está quente. Empinando as sombras. A menina continuava lá, estática. Boina na cabeça e luvas brancas. Farda alvíssima, de gravata e saia pregueada, azul, meias três quartos, sapatos preto polido. A banda filarmônica do 20º Batalhão, nesse instante, inicia “Cisne Branco”. A menina desmaiou.
Momentos antes, Seu Zezinho fotógrafo, registrara a cena. A menina desmaiara. Diziam, por insolação. Outros por sede, diziam ainda, fome. Cruenta realidade, vai revelar a dúvida, início da menstruação. Manhã de setembro. Bandeirolas verde-amarela estáticas, preguiçosas. Sem a menor vontade de balouçarem ao vento, não se sentem motivadas. Falta-lhes a brisa altaneira da pátria. Além do que, cheias de reumatismo, por ficar um ano inteiro, dobradas e guardadas num saco fedido a naftalina. Nem mesmo o cadenciado, dobrado da banda, executando “Cisne Branco” as animam. Dias já se passaram desde aquele momento na praça. Olhando a foto agora, a mãe e a menina que desmaiara. Tentam identificar as pessoas captadas no flagrante. A mãe aponta:
- Foi esse homem aqui, minha filha! Quem lhe pegou no colo. Depois que você caiu desmaiada.
A menina observava atentamente ao seu salvador. Não o reconheceu. Engraçado, reconhecera cada pessoa, captadas na fotografia. Mesmo as pessoas com quem nunca mantivera qualquer tipo de aproximação. Mas conhecia como sendo, parte dos atores, dos que fazem o imenso espetáculo, chamado cidade de Santana. Pela primeira vez, a menina apossava-se totalmente dessa idéia que sempre tivera. Num lugar muito especial da sua mente. Quando ela, naqueles momentos, que era pra estudar, os assuntos da escola. Fechava os olhos e ia. Primeiro pensando nos acontecimentos vividos no dia a dia. Os sentimentos por cada um, com quem tivera, tinha, ou teria contato. E quando menos esperava, estava indo por um corredor longo e escuro. No final daquele túnel , sempre havia muitas portas, e tinha uma que era especial. Era essa, que ela abria. E era como sair de um cárcere e encontrar uma floresta. Havia ali um jardim exclusivamente seu. Muito sol, que não incomodava a vista, nem aumentava os batimentos cardíacos, nem fazia desmaiar. Havia ali, uma cachoeira. Era água, vista de longe, ao aproximar-se voando - Porque só dava pra chegar lá voando - Via-se que não era água, eram idéias. Ali, ao alcance da mão, a cascata de suas idéias boas. O tempo todo derramando lá num fundo de um precipício que jamais via o fim. Para onde estavam indo as suas idéias boas? Não sabe. Não importa. O que importa é que foi ali, que ela pegou aquela. A tal idéia, que a cidade de Santana vive uma, para sempre, encenação. Todos são atores.
E o homem que a socorrera. Quem era? Tornou a dedicar novo, e mais minucioso exame à foto. Inicialmente olhando pra ela própria. Se pudesse voltar no tempo. Desejou por um segundo apenas, isso, e nem foi pelo vexame do desmaio. Seria pra corrigir a posição para o fotógrafo. Pareceu-lhe estar meio torta. E essa sua cara. Pois culpa no sol. O homem. Ele, assim como todos ao fundo a observar ela, a menina do buquê de flores. Ele traz um chapéu branco à cabeça, que lhe lembra os mocinhos dos filmes de faroeste. Isso pra ela que é sonhadora. A outra observadora, sua mãe, pondo comparação ao chapéu, diria que parecia com o homem do carrinho de sorvete, ou o agente de Endemias que visitam as casas. Não, não apenas o chapéu era branco, mas toda a roupa do desconhecido. Sua observação mais atenta, acabou por colocá-la, diante de evidências bem interessantes. Primeiro que aquelas roupas, eram roupas de época. Mas de que época? Não sabia. Só sabia que devia ser tão distante, que se perdera no tempo e na memória. Tanto, que mesmo ele estando tão diferente das demais pessoas ninguém, o dera por percebido. Destacado. A ponto de servir de chacota pelo traje escabroso. Como alguém conseguia passar tão despercebido naqueles trajes? E por que - não conseguia entender por que - só na foto, é que ficou assim tão evidente. Ela própria estava lá, e o homem naquele momento, não provocava nenhum tipo de reação, nem a ela nem a ninguém. Uma pessoa como outra qualquer na multidão. Olhando a foto agora, sua silhueta (a dela) em pé, segurando o ramalhete de flores, mesmo em destaque, passou a ser, segundo plano. O que lhe chama a atenção na foto, não é mais ela, é aquele homem, no meio do povo, todo de branco. Categoricamente, ela sabe que está diante de um mistério. Carecendo de solução. Tinha que começar a investigar. Já! Começaria pela mãe:
-Mãe! A senhora conhece o homem?
-Que homem?
-O da foto!
-Que foto?
-Mãe. O que me socorreu na praça!
-Há! Sim. Quer dizer não... Não conheço. Nunca o vi na vida. Aliás, depois que você recuperou os sentidos. Eu fui procurá-lo pra agradecer. E não o encontrei mais. Ninguém nem sabia de quem se tratava, quando eu perguntava por ele, citando de que jeito estava. As pessoas negavam tê-lo visto. Além, da cara estranha que faziam diante da pergunta. Como se eu estivesse louca. Acho que me entendiam, pelo susto que você me deu - Devia estar delirando- Deve ser isso que pensavam.
-Mãe...Será que nós não fomos vítimas de um delírio coletivo?
-Claro que não. E a foto? É delírio?
-Me ocorreu uma coisa mãe...
-O que é?
-Depois eu digo.
-Deixe de suspense.
Ela, a menina. Foi até a escrivaninha onde sua mãe guardava todos os álbuns de fotos da família. Tirou-os da caixa e derramou no tapete da sala. Dedicou-se a observar fotos. As que lhe interessavam: Eventos registrados em público. E suas suspeitas foram se confirmando. Uma a uma. Nas fotos que aparecia público. Muita gente aglomerada. Lá estava ele. O homem todo de branco com seu chapéu. Não tinha como duvidar que fosse ele. A estatura. Cor da pele. E nunca, a máquina que o fotografava, pegava-o desprevenido, distraído. Ele estava sempre, olhando pra câmara como quem dissesse: -Estou aqui! –E mais nessa! -E nessa outra! A menina estava lívida. O homem aparecia em fotos do século passado, numa procissão de Senhora Santana em 1817. No sepultamento de sua tetravó 1895. Fazendo as contas, ele devia ter perto de duzentos anos. Como isso seria possível. Outra coisa lhe ocorreu. Avançou ávida para os velhos livros de história. E novamente a consulta. E nova confirmação. Lá estava ele. No lançamento do Zepellin, na França. No meio dos Confederados (Ianques) vencedores nos E.U.A. Na construção do Canal de Suez no Panamá. Na inauguração de Brasília próximo a Jucelino. No sepultamento de Getúlio Vargas. E mais uma vez na praça da Bandeira, na velha revista O Cruzeiro. Tentando ver também as cabeças dos cangaceiros ali expostas.
A menina nem se dera conta do tempo. Devia ser, umas três horas da tarde. Alguém bateu à porta. Lá foi a menina ver quem era. Abriu só o postigo da porta. Não viu ninguém. Ia fechar. Percebeu que era um menino pequeno. Viu só, parte de sua cabeça. Teve que abrir a porta toda. O menino segura um buquê de flores.
-O que é menino?
-Um homem mandou entregar aqui.
-Como é ele...Todo de branco?!
-Um Hum!
Fabio Campos
Fabio Campos