Era uma vez uma menina chamada
Isabel, nem vamos inventar nome fictício. Pra quê? Melhor que todos saibam quem
é. Mora em Santana do Ipanema, na Rua das Pedrinhas. Faz dezoito anos esse ano.
Já disse pras amigas que está louca que chegue esse dia. Não que esteja
programando fazer uma grande festa, o máximo que vai acontecer é reunir os
amigos e comemorar, tudo bem simples. Acha que a data será marcante. Acredita numa
nova fase de sua vida se iniciando a partir daí, quem sabe pelo fato de todos
relacionarem este evento a emancipação. Mas de qual liberdade precisa? Se
sempre fez tudo que lhe deu na telha. Foi criada só pela mãe, que sempre a
deixava fazer o que tinha vontade, muitas vezes sem saber.
Expedita sua mãe, é uma
professora aposentada do ensino público. Fez o que pode pra que a filha tivesse
desde a infância, vida simples, sem aparatos, mas também sem privações. Sempre
procurou dar tudo que ela mesma nunca tivera, pois fora criada na roça. A
menina cedo conheceu uma realidade cruel, viu gente ser morta, meninos se
drogando, crianças roubando colegas sua, na volta da escola, tudo em plena luz
do dia, bem ali no meio da rua. Tantas vezes viu chegar viaturas da polícia,
realizar batidas, prender e bater em pessoas. Fosse quem fosse, inocentes ou
culpados. O fato é que aquilo muito marcou sua vida. Aprendeu que existe na
periferia a lei da selva, lei do mais forte. Sabe quem é seu pai, mas não o conhece.
Há muitos anos foi embora pra São Paulo, era ainda criança. Filha única, fruto
de relacionamento amoroso. Seu pai casado com outra e sua mãe não era a matriz.
Maria Isabel gosta de ficar em
seu quarto, pra ela é o lugar mais aconchegante do mundo, é pequeno, apertado,
mas é seu paraíso. Um pequeno armário onde guarda suas roupas, uma cama, um
espelho grande e fotos de seus ídolos nas paredes: Nirvana, Pink Floyd, Barão
Vermelho, Cazuza, Sepultura, Raul Seixas. Uma mesinha de cabeceira, um
microsistem, o melhor presente que ganhou quando fez quinze. Num canto livros,
cadernos, DVDs, CDs espalhados. Alguns no chão, junto aos seus calçados e
tênis, meias, sutiens e calcinhas. Na cabeceira da cama uma mesinha com estojo
de maquiagem, escova de cabelo, vidros de esmaltes, perfumes, tesouras, pinças
e absorventes. Dentro de uma caixa de papelão, os brinquedos de infância,
muitas bonecas, todas com suas roupinhas e adereços ainda intactos. Conservadas,
devido as insistentes recomendações da mãe, que cobrava dela esse cuidado. Numa
tentativa última de conservar lembranças de sua infância. Na capa dos cadernos,
muitos adesivos, com motivos macabros: Crânios
perfurados por facas, cobras, escorpiões, dragões. Riscos de caneta, frases e
desenhos. No inverno tudo cheirava a mofo e quando amanhecia um dia estiado sua
mãe colocava tudo quanto era roupa, numas esteiras de palha, no terreiro atrás
de casa pra esquentar ao sol.
-Mãe? Tô indo pra escola...Cadê a
senhora?
-Tô no banheiro! Comeu alguma
coisa?
-Tô sem fome!...Mãe, vou fazer
uma tatuagem viu?!
-Tá louca menina! Eu já lhe disse
que não se invente disso.
-Ô mãe, todo mundo faz...
-Todo mundo não! Quem faz essas
coisas é ladrão e maconheiro! Se você fizer eu arranco de faca...
Isabel estuda a sétima série do fundamental, na
Escola Estadual Maria Laura Chagas de Assis, a sexta repetiu umas três vezes. Matricula-se
e no início frequenta, depois abusa-se e só vai quando quer. Conheceu Zé Carlos
e os dois estavam “ficando”, nem considerava um namoro pra valer. Mas acabou se
entregando e com ele perdeu a virgindade. Teve uma vez que ficou muito
preocupada, atrasou a menstruação, pensou que era uma gravidez. Zeca comprou
uns comprimidos e deu pra ela tomar. Ficou com medo. Algumas amigas falaram que
ela poderia ter uma hemorragia que podia matá-la. Confidenciou a colega de escola:
-Adriana, eu fiquei com medo, mulher!
Tive uma briga com mãínha ontem a noite porque cheguei tarde! Aí me deu uma dor
de cabeça. Aí eu fui dormir, sem jantar sem nada. Hoje amanheci menstruada,
nunca desejei tanto que uma menstruação viesse, como essa. Mas graças a Deus veio...
Nos finais de semana Isabel
sempre queria dormir mais do que nos outros dias, mas a mãe não parava de
chamá-la aos gritos, pra que a ajudasse nos afazeres do lar. A pia sempre
amanhecia com um monte de vasilhas e pratos pra lavar. Odiava lavar, principalmente roupas. No sábado
a mãe saía cedo, voltava da feira, por volta das onze horas da manhã. Chegava
afobada, gritando por ela e ia direto pra cozinha preparar o almoço que só
ficava pronto lá pras duas da tarde. No domingo escolhia a casa de uma amiga só
pra passar o dia fora, pois sua mãe recebia um monte de amigos que ela não
gostava muito, eles passavam o dia todo bebendo cerveja e ouvindo músicas
bregas não muito do seu gosto. Quando Isabel voltava já era noite. A mãe já
estava dormindo de porre. O som ligado pra ninguém, repetia alto:
“Sonhar contigo por toda a vida!
Sonhar contigo meu amor minha querida”
Na praça da Bandeira houve uma
festa com apresentações folclóricas, pelo dia do estudante, e depois uma banda de rock da cidade de Batalha ficou
tocando pra garotada. Estava ali no meio do povo uma galera da pesada, da rua
da Praia. Era uma gang rival, dos garotos lá da rua das Pedrinhas. Zé Carlos
fazia parte deste grupo. Houve um tumulto, correria e brigas. A polícia prendeu
Zé Carlos e outros rapazes da rua da Praia. Uma semana depois Isabel foi até a
delegacia tentar fazer uma visita a ele, mas não pode entrar porque não era
parente. Uma tia dele que foi visitá-lo lhe trouxe um bilhete numa folha de caderno
que dizia:
“Isabel. Eu tô bem, quero que procure
R. diga ele que entregue minhas coisas a vc. Guarde até eu sair daki. Beijos ti
amo. Ass. Zeca”
O “R” era Robson, um primo de
Isabel, envolvido com tráfico e consumo de drogas. Ela o encontrou na frente da
escola no outro dia e falou-lhe sobre o bilhete. Uma semana depois ele foi de
moto até sua casa, e no seu quarto entregou-lhe a encomenda solicitada. Era um
quilo de maconha prensada, já aberto num dos cantos do tablete, e um revólver
calibre 38, municiado. Isabel guardou numa mala com cadeado, e colocou numa
gaveta, sua mãe nunca mexia ali. Aliás, raramente entrava no seu quarto, só ia
ali pegar as roupas sujas.
Um dia bateu uma tristeza danada,
uma angústia no peito, que apertava o coração, de Bel, era assim que Zeca lhe
chamava nos momentos de carinho. Aquela música que estava ouvindo de Renato
Russo, bem que contribuiu pra aumentar a dor. Não era bem uma dor física,
dessas que passam com um simples analgésico. Era dor que apertava a alma. Ela ficara
sabendo também que naquela semana Zeca havia sido transferido pra o Baldomero
Cavalcante, uma penitenciária da capital. Estava na sala de aula e ficou ali
com a cabeça encostada à banca. O professor Alberto de Ensino Religioso, veio
até ela e passando-lhe a mão na cabeça puxou conversa:
-Isabel, o nome da prima de Maria,
Nossa Senhora . O que a preocupa tanto menina?
-Ah, professor, nada... Como é mesmo
essa história que o senhor falou aí?
Isso mesmo, seu nome, é o mesmo
da prima da mãe de nosso senhor Jesus Cristo. Em hebraico Elishebath que quer
dizer aquela que foi ungida, consagrada a Deus. Foi aqui na terra a mãe de João
Batista...
-Professor, posso perguntar uma
coisa?
-Claro.
-O senhor já ficou triste, mas
triste mesmo a ponto de querer morrer?
- Olha Isabel se eu lhe dissesse
que não, estaria mentindo. Tem dias que a gente parece que cansou-se de viver. Todos
os dias fazendo as mesmas coisas. Eu mesmo, a mais de vinte anos na mesma
rotina. Acordar às seis da manhã, vir pro Colégio dar aulas até ao meio-dia, a
tarde ia pra outra escola do município fazer a mesma coisa. Sem vislumbrar a
menor possibilidade de acontecer uma mudança nisso. E eu que Já estou na metade
do ano cinquenta de idade. Vão se esvaindo
as esperanças de que ocorra algum tipo de mudança em tudo isso. Os anos vão
passando e nada, nada de diferente acontece. A única coisa que nos motiva e não nos deixa
ser arrebatados pela depressão, é a fé em Deus, o amor aos nossos filhos, e ao
nosso trabalho, claro, senão nada teria sentido. Por outro lado há tantos que
gostariam de levar a vida que vivemos.
Na tarde daquele dia, uma chuva
torrencial caiu. Mais parecia um choro copioso de Deus. Isso fez aumentar ainda
mais a tristeza de Isabel. Ela trancou-se no quarto, e ficou deitada na cama,
ouvindo músicas internacionais com o fone nos ouvidos. Era quase noite e sua
mãe bateu na porta pra dizer que ia sair com um amigo, mas ela nem ouviu. Seu pensamento
vagava, viajando por vários momentos de sua vida. Fez uma espécie de balanço, e
constatou que já vivera instantes muito bons, ao lado das amigas. Muitas nem
são mais sua amiga, outras se tornaram mães, casaram ou foram embora de Santana
do Ipanema. Ela abriu a gaveta do guarda-roupa e tirou da bolsa a encomenda de
Zeca. Colocou ali na sua frente e ficou olhando pra os dois objetos. Analisava-os à luz da praticidade, pra que
serviam? Tanto a erva alucinógena quanto a arma, levavam as pessoas pra outros
mundos. Uma, possibilitava uma viagem
com retorno, a outra viagem sem volta. Resolveu
que experimentaria uma das duas. Talvez as duas. Escreveu uma longa carta pra sua mãe, entre
outras coisas dizia que a amava muito, e que ela a perdoasse pela suas loucuras.
Chorou muito, mas em nenhum momento pensou em desistir do que ia fazer.
Com um
pedaço de folha de caderno fez um pequeno cilindro recheado da planta interdita.
Acendeu e deu tragos profundos. Fitava a capa de um livro ali no chão fechado: Alice no País das Maravilhas. Foi ficando pequenina, e um coelho com a cara
de seu professor de Ciências, inseguro e medroso, chegou correndo. Zeca o gato
risonho, ora aparecia ora sumia. Robson com sua boina engraçada, o chapeleiro
maluco. A gestora da cidade de Santana do Ipanema, apareceu, e com ar
inquisidor pronunciou encolerizada: - Cortem-lhe a cabeça! Um pássaro gigante
veio vindo, talvez um Dodô, tinha os olhos de mau, do namorado de sua mãe.
Avançou para pegá-la com o bico. O revólver,
precisava pegá-lo. Um estampido, e a rainha foi ficando vermelha, tinta de sangue. Sentiu as vistas escurecendo, desmaiou.
Acordou e viu paredes brancas. Uma janela
fechada com persianas serradas. A cama alta, de ferro também branca em brancos
lençóis. Uma sensação de formigamento no braço direito. Olhou e viu nele uma
agulha enfiada na veia, um tubo de soro pendido de uma haste, gotejava. Dois pares de olhos lhe fitavam: Um
resignado, o outro preocupado. Este último reconheceu, era de “dona” Expedita.
-Mãe?... Deixa eu fazer uma
tatuagem.
Fabio Campos