A pensão de Dona Maria Sabão, funcionava no pavimento superior, do
velho sobrado que ladeia a Matriz de Senhora Santana. O prédio era uma
construção do final do século XIX. Feita de tijolos massapé, cozidos, dobrados
e maciços. Estruturada em uma sapata de pedras. Pedras tiradas do leito do rio
Ipanema, pelas mãos negras dos escravos. De linhas retilíneas nas eiras e nas
beiras, procurava, se harmonizar com as outras duas construções vizinhas. A matriz de enormes portais ogivais, e o
casarão colonial, em branco e azul, que acessava ao mercado de carne municipal. Os umbrais das janelas eram altos e largos,
como exigiam os Barões do algodão, quando mandavam construir suas edificações.
Imaginando um dia, ter que colocar ou retirar, por ali, um móvel. As más línguas, ouvidavam, que seria pra o
caso de precisarem fugir, dos corsários e revolucionários, os inimigos da
Corte. Por serem glutões e obesos, careciam de bastante espaço pra conseguirem
passar nos vãos das janelas.
O caixeiro viajante, pernambucano
Percival da Costa, uma vez por mês, vinha a Santana do Ipanema. E se hospedava na pensão de D. Maria. A
história de Santana de antigamente, pouco lhe interessava. Pois daquela, pouco
tinha conhecimento. A que lhe importava, era a Santana de então, a dos anos 70.
De como estariam seus clientes. Essa sim, Percival queria saber. Como estaria
Veridiana? A essa altura, já deveria saber, de sua chegada. Pois, uma vez em
Alagoas, e em Santana do Ipanema, seu grande amor, Veridiana, mulher dama,
rapariga do cabaré de Dona Brejão. O carro estacionado, na frente da pensão.
Percival subiu os dois lances da escadaria. E o cumprimento formal aos da
pensão:
-Bom dia, gente! Bom Dia, Dona
Maria, como vai?...
-Bom dia! Percival. Por aqui tudo
bem. Como está a família, bem?
Pegou sua chave. O quarto em que
se hospedava era cativo. Os dias que ele não estava ali, ficava fechado. D.
Maria não o alugava pra ninguém. Por motivos óbvios. Ele deixava alguns
pertences e pagava por essa regalia. Percival desfizera as malas na cama.
Tomara um banho rápido, e rápida também, fizera a primeira refeição. Ansiava
por ganhar o mundo. Queria mesmo era trabalhar. Vender cosméticos,
medicamentos, produtos novos. Convencer pessoas a comprar. Gostava de andar no
comércio de Santana. De rever e cumprimentar as pessoas. Realizar as visitas. Os velhos clientes.
Fazer novas amizades. Enfim sentia-se realizado fazendo o que fazia.
Consultou compromissos de agenda.
Um detalhe, lhe chamou à atenção: a data daquele dia. A data
estava assinalada na agenda. Era um dia especial. Percival o sabia. Logo mais a noite
saberíamos porquê. E o dia logo esmaeceu. E lá estava ele de novo, de volta a pensão e
ao velho quarto do sobrado. Tudo agora
era paz. Já anoitecera. Rangiam as velhas tábuas do assoalho, quando
algum hóspede ia ao banheiro, ou a cozinha tomar água, talvez o único som que
se escutava ali. O dia do lado da sua claridade, havia acabado. Todos já haviam
se recolhido aos seus aposentos. O
viajor não. Algo importante estaria pra acontecer.
Faltava pouco, pra se saber o que era. Percival tinha sobre a cama, vários
livros. Aquela noite era aguardada, a muito tempo. O que estaria para
acontecer? Não sabíamos o que era. Fosse
o que fosse, ia acontecer ali, naquele quarto de pensão, naquela cidade, só
Percival sabia o que era. Ele estudava.
Enquanto aguardava a hora esperada.
Ele era estudante do curso de farmácia, da Universidade Federal de
Pernambuco. Sonhava um dia terminar seu curso e abrir uma farmácia, quem sabe, talvez
em Santana do Ipanema.
O relógio da Matriz de Senhora
Santana, inicia as doze badaladas. Avisando que aquele dia, era findo. Um fato,
Percival já havia observado. E que Santana inteira já sabia. Pra avisar, as horas o sino do relógio batia
de seu campanário. A quantidade de badaladas, de acordo com a quantidade de
horas. Muito embora, a cada meia hora era assinalada com uma badalada
apenas.
Isso significava que depois da meia noite, teríamos três vezes, a hora
sendo assinalada com uma badalada apenas.
Estávamos na virada do dia 13
para o dia 14 de agosto daquele ano, da década de setenta que terminava com
três. Ele abriu um livro de capa preta que sempre trazia no fundo da mala. Dali
por diante passou a consultar seu relógio constantemente. O sino da igreja
matriz, deu, naquele instante, pela primeira vez naquela noite, a única
badalada, anunciando que naquele momento, era doze horas e trinta minutos da
madrugada.
Façamos aqui uma pausa, para
explicar ao leitor, o que está acontecendo:
Percival estaria testando uma experiência
relatada ali, no seu misterioso livro de capa preta, cheio de versos em um
idioma de longínquo tempo e espaço. Eis o que diz:
“Quando os números de uma data,
coincidirem de dar 1:13, ou seja, um treze, na sua soma. Se exatamente quando
ocorrer, as doze e meia, as treze horas e as treze e meia da madrugada, alguém
recitar esses versos do profeta Vishina, o tempo iria parar literalmente em
torno de que recitasse, num raio de treze milhas, por treze segundos, de uma
hora de tempo, naqueles três momentos. Este fenômeno só iria ocorrer por conta
dos versos recitados, e porque entidades contidas neles serão invocadas. Mas
não em qualquer época. Somente quando acontecesse um rearranjo dos números do
dia, do mês e do ano, especificamente naquela data. Os versos recitados mais a
coincidência da data, possibilitará a criação de uma aura de energia cósmica,
naquele círculo, compreendido entre o ponto central da recitação, até o limite
máximo de treze milhas circunferencial, se estacionará o tempo.” Assim dizia.
Então: o Dia 13 + o mês 08 + o ano 19 + 73 =
113. Ou 1:13 (ou: um treze). E o porquê dos momentos da hora: 12:30h., 13:00h. e
13:30h. Se somarmos todos esses números teremos 17; 1+7=8. O número oito deitado, é o símbolo de
infinito! O infinito que é a simbologia do tempo, se tornará finito por treze
segundos em três espaços de tempo! Tudo vai parar. Tudo que estiver dentro
desse perímetro. Por um período de apenas treze segundos. Em três estágios, de
treze segundos, vai parar o tempo.
Parecia tão pouco. Seria o tempo que durava a recitação. Até parece que
nada de extraordinário poderia acontecer em treze segundos. Segundo o livro,
não.
Voltemos à história:
E naquele exato momento, Percival
recitou os versos, articulando sua voz, de modo que só ele próprio podia ouvir.
Era uma espécie de cântico. Em um idioma desconhecido. E realmente por treze
infinitesimais segundos tudo parou. Percival tinha os olhos postos nos versos
do livro. Não teve como observar o fenômeno. Se pudesse ver. O ponteiro da
Igreja Matriz ficou estático. Assim como os ponteiros do relógio cronológico,
no seu braço. Também o Cuco de D. Maria, pregado na parede da cozinha. As
hélices do ventilador de teto, tesas. As roupas que tremiam no varal, sob a
brisa noturna, retesadas. Um pingo d’água que caía da torneira, como que se
estivesse congelado, ligado por um fio à torneira esperando os segundos
passarem. Os pernilongos e mosquitos como pregados no ar. Com aspectos de
congelados. A vela, que Dona Maria
acendera pra Nossa Senhora da Assunção (depois de amanhã seria seu dia) fizera
promessa de acender três velas, por três dias. A chama ficou dura espetando o
ar. O ronco do hóspede do quarto vizinho, silenciado. A coruja rasga-mortalha, as asas estendidas
pronta pra iniciar o vôo, suspensa no ar. Dura. Como numa foto tridimensional.
O vigia metido no seu capote fazendo a ronda na praça. Virado em estátua. Um
sapo na calçada, no exato instante, em que estendia sua língua descomunal em
busca da presa. Petrificado. Percival pra comprovar se sua experiência dera
certo. Cuidou de empurrar a folha da
janela, no exato momento em que iniciou a recitação. Se não funcionasse a
janela iria fechar naturalmente. Por conta da força do impulso. Se funcionasse,
a folha da porta não avançaria. E confirmou-se a folha da janela estava lá no
mesmo ponto. As doze e trinta, uma badalada apenas. As treze horas, uma outra.
E as treze e trinta minutos mais uma. E repetiu-se o fenômeno do tempo parado,
parando por três vezes. Percival olhou a rua, tudo normal. Foi dormir.
Manhã do dia 14 de agosto.
Percival acordou. Ouviu rumores. Falas exaltadas vinham da cozinha. Gente
comovida. Lamurienta. Ainda meio zonzo de sono, vai ao banheiro. Depois de
recomposto, foi até a sala de refeições do hotel. Havia um clima de comoção ali.
Todos o fitavam a ele muito espantado. Ele queria então se inteirar do que
estava acontecendo. E D. Maria, pelos olhares dos demais, foi a encarregada de
dar-lhe a notícia:
-Percival, ontem de madrugada
ocorreu uma desgraça!
-Como assim?
- Três mortes horríveis! Veridiana, o filho, e o pai dela! Dizem que tudo ocorreu entre meia noite e uma
da madrugada. O pai, você já conhece a história, era um homem doente, internado
à muito tempo no hospital. Vivia ligado nos aparelhos pra respirar. As 12:30h a
máquina parou de funcionar, e ele morreu!
O filho bêbado, numa farra na casa de uns amigos, se enroscou num fio de
energia elétrica, e caiu dentro dum tanque d’água, morreu era exatamente
13:00h. Momento que seu relógio no pulso
parou. E Veridiana, você mesmo sabe, morava no aterro, perto do Bar de Dona
Brejão. Um motorista embriagado perdeu o controle de seu carro. E jogou-se de
aterro a baixo. Bem em cima da casa dela. Pelo modo como o carro estragou o
corpo. Ela ia se levantando da cama. O relógio de parede esmagado, parou marcando
exatamente 13:30h. Coitada! Se tivesse saído dali, pelo menos um minuto antes.
Agora poderia estar viva.
E Percival pensativo -Com um
olhar no nada- Sorumbático, concluiu:
-Um minuto, não. Bastariam treze
segundos...
Ninguém entendeu. Tampouco
perguntou-se mais nada.
Fabio Campos