A Árvore

Três árvores se faziam plantadas no meio de uma floresta. Mas era uma floresta de mentirinha. Bem como irreais as três árvores. Possuidoras seriam, das vontades humanas. Sendo tudo, parte de uma fábula. Dizia que a primeira árvore queria ser uma arca. Precioso baú cravejado de brilhantes, que encerrasse importante tesouro. A segunda gostaria, de quando crescesse, seu tronco servisse para construir uma bela caravela. Pra que nela, pudesse navegar importante monarca. Por fim a terceira, um imponente mastro queria ser, para figurar em lugar alto, e que todos a admirasse. Tempos depois, eis que seriam, as três árvores cortadas. E os troncos, tomariam cada um, destinos diferentes. O primeiro, transformado em manjedoura, justamente aquela que abrigaria o menino Deus, em Belém. O segundo viraria a canoa que o rei dos reis usaria pra atravessar o lago Tiberíades, na Galiléia. O terceiro tronco, pelas mãos de um carpinteiro acabou virando a cruz, na qual seria pregado o filho de Deus.

Cícero, acabara de ler a mensagem na tela de seu computador. Era como que adormecesse pra um sonho, ou talvez acordasse dele. Não sabia bem explicar, só sabia que depois de lê-la, voltou muitos anos no tempo. Ali, sentado do jeito que se encontrava, olhando pro visor da máquina. Adentraria à um túnel. Àquela luz intensa lhe transportaria, pra época em que ainda era menino. Morando ali mesmo, em Santana do Ipanema, sua terra natal. Estudava no Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Depois das aulas, a prainha, nas areias do rio Ipanema, o campinho de futebol. No cair de uma tarde como aquela, na companhia de outros dois amigos, Miguel e Daniel. Olhavam os três, pro serrote da microondas. E ponderou:

-Êi?! Vamos escalar a Serra da Microondas?... Só que tem um detalhe, não será pelo caminho que todos sobem...Vamos pelo lado da frente, pelo meio da mata. Topam?
-Eu topo, desde que não seja mais hoje, já está tarde...
-Eu também topo, outro dia...Que tal sexta-feira?

No dia marcado, lá estavam os três, às seis horas da manhã. A caminho de escalar a Serra da Microondas. Exatamente às nove horas atingiriam o cume. Fariam o reconhecimento do local. Fotos ao lado da estátua do Cristo redentor, incrustada na enorme pedra. Ao contemplarem a figura divina, retratada toscamente no concreto, de branco caiada, se lembrariam de fazer uma oração. E rezaram o Pai Nosso. Cícero localizou as ruínas do que seria um dia, uma casa de máquinas. Abrigaram-se do sol ali. Quando bateu a fome lancharam, pois haviam levado suprimento de água, frutas e biscoitos. Miguel ponderou:

-Sabem que dia é hoje?
-Claro! Sexta-feira.

-Eu me refiro a data de hoje! Oito de agosto de 1980. Vamos gravar nossos nomes e essa data, em algum lugar. Algum tempo, quando qualquer um de nós voltar aqui, verá se ainda se encontra. Que tal?
-Pensando melhor – disse Daniel – vamos decidir desde já, uma data, pra voltarmos os três novamente aqui. Que tal daqui a trinta anos?!

-Bacana! - Disse Cícero – E se cada um de nós, procurasse uma pequena planta para replantá-la aqui em frente. Quando  voltarmos daqui a trinta anos, veremos, quais conseguirão crescer e vingar até lá.
E assim o fizeram. Cícero encontrou um pé de Pião Roxo. Daniel uma muda de Cássia e Miguel uma algarobeira. Os três meninos, amigos inseparáveis de terna infância, depois de cumprirem solene acordo, passariam todo aquele dia brincando, no entorno do cume do maciço. Encontraram colméia de abelhas, uma cobra livrando-se da velha pele. E um ninho de urubus, num instinto de defesa, os filhotes da ave regurgitavam, causando nos meninos a impressão que se enojavam deles. E quando o sol despencou pros lados do serrote do Cruzeiro, o bosque de verde exuberante se fez esmorecido. O céu se fez tinto nos capuchos de nuvens e alaranjado tornou-se o firmamento. Entregues a brincadeira de atirarem flechas de pegas-pinto uns nos outros. Os três se puseram a fazer o caminho de volta. E como brinquedo esquecido, já nem se lembravam do acordo firmado lá no alto, coisa de menino.

Trinta anos havia se passado. Ali estava Cícero. Depois de ler aquela fábula, retornou no tempo, e relembrou o pacto dos amigos de infância, lá no alto da serra. Ainda não era agosto, estávamos em abril de 2010, pouco importava se alguns meses faltavam para se completar o tempo, precisava retornar lá no alto. Mas o acordo dizia, os três deviam subir! Não ele sozinho. Aonde estariam os outros amigos agora? Em que a vida os haveria de tê-los transformado? Bem sabia em que, ele mesmo, havia se tornado. Um professor de história. Plágio do Cícero orador de Roma. Onde estariam o arcanjo, e o profeta bíblico, seus amigos?

O Orador
Depois daquela infância, vivida de forma tão intensa, Cícero teve que encarar uma idade adulta. Forçosamente teve que abdicar da juventude, perderia o pai aos quinze anos. Cedo à responsabilidade de homem. Caíra o esteio da casa, assim diziam os mais velhos. Aos filhos que ainda permaneciam dentro de casa, agora o jugo da manutenção da casa. A ele, e seus irmãos menores a obrigação de garantir o sustento deles próprios. Viúva e órfãos sofriam, acostumados que estavam com o provimento garantido pela figura paterna, agora ausente.  Foi tudo tão difícil. Pra ganhar algum, entregaria jornais, venderia revistas em quadrinhos e livros no meio da feira. Muitas outras coisas faria, pra conseguir alguns poucos trocados, tinha que ajudar no sustento da casa. O tempo, senhor da razão, passou voando e Cícero conseguiu, a duras penas, terminar o curso de magistério, se tornaria um professor. Um orador eis o que era. Graças a sua eloquência não foi difícil desposar a uma jovem, chamada Maria. Sairia da casa materna, e de Santana do Ipanema. Foi-se, deu de iniciar, a construção de seu próprio lar, ao lado de sua amada. O orador, mal se apercebeu as três décadas passando, num misto de moinho e carrossel, em sua vida. Pintando-lhe de branco, os cabelos. Os três filhos nascendo e crescendo em seu derredor. Quinze anos de sua vida conjugal passaria longe de sua terra natal. Mas um dia voltaria. E agora lá estava. Diante do computador com uma missão que completaria dali a quatro meses, bodas de pérola. Não estava disposto a esperar, tempo demais já havia se passado.

O Profeta
Daniel depois daqueles dias pueris, tomaria um destino quase semelhante ao de Cícero, com o atenuante de não ter que pra isso, perder o pai. Pouco quis saber dos estudos, depois do primário no Padre Francisco Correia. Daria preferência ganhar dinheiro, à conhecimentos contidos nos livros. Se fossem aqueles amigos, os três porquinhos, Daniel com certeza seria o Prático. Se descobriria em diversas profissões, à medida que ia deixando pra trás a infância. Em algumas delas, simplesmente pra manter-se empregado e remunerado, outras porque gostava, porque tinha vocação. Seria ajudante de pedreiro, auxiliar de marceneiro, mecânico de moto, estudante, e ao mesmo tempo desistente, de um curso de eletrotécnico. Seria ainda vigilante de supermercado e frentista. Cícero por algumas poucas vezes ainda o veria. Teve pena ao ver, aquele alegre menino de um dia, transformado num velho senhor cheio de preocupação e seriedade. Tornou-se fumante, rugas marcavam-lhe a fronte. Por certo nunca mais o veria dando aqueles dribles, que só ele sabia dar, nos moleques, no campinho da prainha. Sabia que já fora embora de Santana várias vezes. Por fim procurou saber, através de alguns contatos telefônicos, e descobriria que naquele exato momento Daniel se encontrava em Natal, no Rio Grande do Norte, novamente casado e feliz. Sua primeira esposa continuava em Santana, criando três filhos deles. Talvez conversaria com os filhos dele. Desistiu eram só três crianças.

O Arcanjo
Dos três amigos, Cícero sabia que, um, não adiantaria mais ir procurar. Pra refazerem juntos, o caminho, a serra microondas três décadas depois, era Miguel. No tempo que morava em Maceió, ficou sabendo, através de um dos irmãos, o trágico e prematuro fim que tivera. Miguel ainda na juventude, amorosamente se envolveria com uma garota, de nome Lúcia. Nesse tempo, ambos estudavam no Colégio Estadual Mileno Ferreira, a menina, apenas treze anos tinha. E engravidara do nosso amigo, que passaria a ficar preocupado com essa situação. Não teve a aprovação da família pra o que acontecera, a menina também não. Miguel assim como Daniel, gostava de jogar bola. Toda a sua meteórica existência dedicaria a isso, pois somente praticando aquele esporte, se sentia realizado. Nunca mais o veria, dobrando-se em maravilhosas gargalhadas, ao ver os meninos se enfurecendo por suas jogadas de craque.  As cobranças dos familiares eram muito fortes, achavam que jogador de futebol nunca lhes acenaria futuro promissor. Um dia, seu pai, um policial reformado, chegou à casa. Tirou a camisa, colocou-a no descanso da cadeira. A carteira, os óculos, o crucifixo, o revólver.  Todos os pertences, à mesa. Foi tomar um banho. Miguel chegou da rua, vinha do campinho, estava todo suado. Passou direto pro quarto. Sua mãe olhando pra mesa observou: E o revólver, não estava lá, ainda à pouco? Naquele instante, ouviu-se o estampido. Miguel cometera o suicídio.

Cícero escolheu, a manhã daquela sexta-feira santa pra subir a serra. 

Subiu sozinho. Lá no alto, tudo tão diferente. Vestígio nenhum de onde haviam colocado seus nomes e a data. No local onde tinham cultivado as plantinhas, muitos arbustos. No entanto um caule meio retorcido, com alguns galhos quase sem folhagem, lhes indicaria haver ali, um pé de algaroba. Seria a mesma que Miguel plantou? Sentir-se-ia como aquele tronco, triste, sozinho, silencioso. Seus dois amigos também acabariam como aquela árvore, Miguel como arcanjo que era, saíra voando, feito folhas ao sabor do vento. Daniel, descido a cova dos leões, fez-se mártir de si mesmo. Sentia que ele estava ali, feito raiz sobre a terra, nutrindo-se, vivo, pois sabia que um dia os três se encontrariam ali. E Cícero acabaria lembrando-se da frase com que o autor encerrava a fábula, a moral da história: “Nossos planos, nem sempre são aqueles que Deus tem para nós, Embora Ele na sua infinita sabedoria, escreve certo por linhas tortas.” Deu por encerrada sua missão ali. Antes de descer a serra, olhou mais uma vez pra árvore, pro Cristo ali de braços aberto. Sabia que o verdadeiro, lá do alto, o espreitava.  

Fabio Campos           

O Colecionador


Santana do Ipanema de antigamente refletia uma paz nas ruas de passos de pedra. Nas casas subindo e descendo ladeiras. Casas perfiladas, enfileiradas, feito guardas de palácio imperial. E eram como se apontassem dizendo aos desavisados estrangeiros: Olhem aqui passa um rio! Casas simples de Santana, algumas de eiras, algumas de beiras. Muitas outras, sem eira nem beira. Cores do casario, pintadas como se à lápis de cor. Nas calçadas, um aqui, outro lá, postes de madeira. Unidos por fiação pendurada, preguiçosa - encimados por lamparinas - de ferro, desenhado com esmero. Carregadas de poesia.

E tudo parecia conspirar história. Casas e ruas se prestavam a um cenário perfeito de si mesmas. A igreja erguida em imponência de torre, relógio e badalo. Cobrava pra si os olhares dos parcos transeuntes. O casario no paço, em torno da praça do coreto. Uma ciranda de telhado colonial, sob um céu de vivo anil, salpicado de nuvenzinhas brancas. Tão branquinhas, feito chumaços de algodão esvoaçando ao vento! Janelas cerradas olhavam. Janelas escancaradas, mesmo sem gente debruçada, também olhavam. E se alguém passasse no passeio, ainda que sozinho parecesse caminhar, percebido era, pelas janelas que olhavam.

Foi nesse tempo, que a gente costumava chamar de outrora, viveu por aqui um homem. Diferença nenhuma tinha dos outros homens. Não fosse pela mania que tinha de colecionar coisas. Poseidônio adquiriu a mania de ajuntar quinquilharia, ainda na infância. Talvez motivado pelo próprio pai, um velho capitão de polícia. O capitão Guedes, tinha mania de amelhar armas. Iniciou-se a colecionar punhais, espadas e adagas. O reluzente fio platino das lâminas das armas brancas causava-lhe verdadeiro fascínio. Logo estendeu a coleção para armas de fogo. Exibia na parede de sua sala de estar, velhos bacamartes, fuzis com pintas de doirados no cão. E desenhos arrojados nas curvas e empunhaduras.

Há um ditado que diz: Da boca de velhos homens, quando eles resolverem falar, os mais novos procurem ficar bem atentos, porque verdades fatalmente poderão ser pronunciadas. E foi exatamente da boca de um desses caboclos, vivido na lida, do açoite com gado bravio, com mula de carga e com gente do tempo da escravidão, foi de um deles que ouvi. Escorava os ossos num desses tamboretes compridos, dos pés de forquilha. E era uma manhã chuvosa de agosto. Dado ele, a tarefa de fabricar um cigarro de fumo picado num pedaço de folha de milho, sequinha que era uma beleza! Enquanto esperava o café que ia torrado num fogo à lenha, feito no pretume dum caco de argila, adoçado com rapadura. Enchendo o ar de aroma forte e adocicado. Ele disse bem assim:

-Toda arma possui uma alma. E não é bom o espírito que cada uma delas possui. Porque meu irmão! Toda arma, seja ela qual for, tem parte com o Demo!

Interessante como essas pessoas possuem o dom pra pronunciarem esses ditos, e pela forma como colocam as palavras. A entonação, a dramaticidade carregada, embora tentem parecer natural, mas muito proposital, provocam no semblante dos interlocutores uma espécie de aura, de mistério. Se põem a colocar uma boa pitada de profecia no que dão de pronunciar. É não sei se seria preciso dizer que o Demo mencionado pelo caboclo, nada tem com a origem grega da democracia, refere-se ao coisa ruim, o capeta, o diabo mesmo!

Um dia aconteceu. Capitão Guedes estava a cumprir um ritual sagrado: no momento da cesta, punha-se a limpar uma de suas peças de coleção. Iniciava-se numa sequência tal, que ao cabo de um mês parte do seu acervo passava pela faxina bélica. Foi justamente num dia em que limpava uma Lunger, uma malza de fabricação Alemã, da fase final, da Segunda Guerra Mundial. A filha do capitão estava brincando, se balançando numa rede de renda do Cariri. Havia uma bala na agulha esquecida pelo militar que também praticava tiro ao alvo com suas relíquias. Fazia isso para que não perdessem, nem ele nem a arma, a habilidade da qual eram capazes. E um disparo se ouviu naquela tarde, a menina fora baleada. O projétil foi alojar-se na sua nuca. E a menina Cecília, de apenas treze anos, a filha primogênita do capitão Guedes ficou cega e paraplégica.

Seu irmão Poseidônio foi o que mais se apegou a Cecília, tentando amenizar todo o mal causado pela fatalidade, tinha ele dezesseis anos na época do infausto acontecimento. Era em tudo, realmente o mais próximo dela. No passeio matinal, passou a ser seus olhos. Lia pra Cecília, livros de romance, de contos e poesias. Passaram a ter uma cumplicidade de sentimentos muito forte. Relatava pra ela o que via, ou o que se encontrava a sua frente. Fosse um quadro pintado, um filme, um entardecer, de por de sol ou dum amanhecer. E acabaram criando uma linguagem própria de comunicação. Procurava através de artifícios através da voz e do contato, suprir suas limitações de visão e de locomoção. Se uma linda borboleta amarela esvoaçasse sobre as flores do jardim, procurava-lhe a melhor forma de relatar, era todo ele sensibilidade. Abusava na pormenorização de detalhes pra que ela se apossasse do momento mágico. A impressão que se tinha era como se ela pudesse novamente enxergar e se pusesse a correr, feito criança no encalço da insecta bailarina. Levava-a para que tomasse banho no rio. Punha em contato com os mais inusitados elementos da natureza, musgos, cascalhos, e a ouvir os mais variados sons de pássaros. Juntava pra irmã conchinhas e caramujos.

É dessa época que Poseidônio se iniciou na arte de colecionar. Sentia necessidade de guardar as experiências fascinantes que procurava proporcionar a Cecília. E junto às bolas de gude, figurinhas e revistas em quadrinhos, times de botões, passou a colecionar também borboletas. E por conta da raridade, do fascínio que sentia, iniciou uma coleção de perfumes, pois eles despertavam em Cecília emoções muito vivas. Comparava e catalogava fragrâncias a depender de cada momento marcante. Um recital era marcado por um aroma floral ou almíscar, tudo dependia das emoções afloradas. O tato aguçado em ambos, o toque dos lábios, beijos e carinhos. Se amavam tal que se sentiam dois, uma só pessoa. Passou também a colecionar vinhos, degustá-los também, traziam lembranças boas ou aludiam a novas outras. Estendeu-se a colecionar moedas e cédulas antigas para exercitar a sensibilidade a textura. Nela Cecília rememorava lembranças da primeira infância. A coleção de livros, por uma obviedade, neles e deles trazia um mundo de sonhos, e ambos se aventuravam em viagens fantásticas. Reviviam personagens de histórias que protagonizavam. Possuíam instrumentos musicais e neles praticavam, ela ao piano, ele ao saxofone. Tinham coleção de selos por conta da quantidade de correspondências trocadas com os amigos que Cecília fazia através de revista e amigos distantes. Deram de iniciar juntos, uma coleção de momentos bons, e pra cada um, uma pedra preciosa simbolizaria. Cada emoção vivida entre eles, uma pedra, um valor: topázios, ametistas ou esmeraldas. E Poseidônio passou a pintar quadros e sua irmã era seu modelo preferido. Lindos nus artísticos produzira a partir de Cecília. Quando a menina completou dezoito anos, deu de aparecer uma febre muito forte que minou sua parca saúde. E Cecília veio a falecer.

Poseidônio ficou muito triste, mas a vida continuava. Muito anos se passaram desde então, continuou ele na triste sina de colecionador. Casou-se por três vezes, sem dar certo com nenhuma das mulheres com quem contraiu matrimônio. As ex-esposas dariam-lhes três filhos, dois meninos e uma menina. À filha primogênita o casal decidiu que se chamaria Cecília. Os meninos ficaram com suas mães. Cecília por decisão judicial ficou com o pai. Poseidônio tornara-se militar assim como fora seu pai. Sargento Poseidônio, que nesse ínterim continuava a colecionar toda sorte de objetos. E títulos de honra. Certificados, títulos, medalhas, brasões, diários, troféus de competição balística, etc. Um belo dia, o sargento se encontrava numa feira de relicários, e uma pistola toda trabalhada em ouro e em tons prateados, do tempo do Brasil império, chamou-lhe a atenção. E foi sua mais nova aquisição para mais uma coleção que daria de iniciar dali por diante, a de armas. Cecília sua filha, doze anos tinha agora. E tão lindos olhos, e longo cabelo possuía. E como parecia com sua falecida tia. Ainda agora, enquanto o sargento dava-se ao ato de limpar a velha arma, Cecília brincava e conversava com sua boneca, e balançava-se na rede de renda do Ceará.



Fabio Campos

Davi "O REI DO DVD"

Arrombaram a casa de Davi do Dvd. Davi era considerado o rei da pirataria, o rei da venda de Cds e Dvds, na cidade de Santana do Ipanema.  Alvoroço na Lagoa do Junco. Davi morava sozinho. Na ocasião da fatídica subtração de sua mercadoria,  estava viajando, quando chegou que soube do ocorrido, explodiu de raiva e revolta.

-Gente invejosa! Malditos!

Por que ele? Se perguntava. Logo ele, um cara batalhador. Só queria viver sua vida. Nunca roubou, nunca matou. Ah! Mas alguém iria pagar por isso! Delirava, aos gritos dizia que sabia quem tinha sido o autor. Não sabia, blefava. Iria atrás, alguém ia pagar caro por isso, Alguém ia morrer. Calculava mentalmente as perdas, talvez mais de mil Dvds e Cds tivessem sidos levados! Muitos meses de trabalho. Lembrava do começo de tudo, como fora duro. Muitas viagens pra cidade pernambucana de Caruaru, economizando centavos. No início almoçava sanduíches de pão com salame que ele mesmo fazia, e levava numa sacola. Logo agora que pensava em comprar uma moto. Tantas jornadas iniciadas madrugada à dentro, num ônibus fretado por sacoleiros. De volta, só no outro dia. Muito sacrifício. O medo das blitzes da fiscalização Estadual ou da Polícia Federal. Se fossem pegos perdiam tudo. O outro medo eram as gangues de ladrões, nas estradas dos dois estados.

Naquele instante ele tinha um revólver taurus calibre 38, empunhado numa das mãos. Saiu pelo cortiço. Bateu toda a Lagoa do Junco de arma em punho. Desespero, gente se fechando dentro casa. Apenas conseguiu colocar medo na vizinhança. Nem vestígio dos filmes e Cds roubados. Foi nas casas dos moleques chamados de “ratos”, notadamente assim apelidados porque eram amigos do alheio. Todos com passagem na delegacia. No cárcere ganhavam apelidos próprios. Na casa de “Gato a jato”, fez-lhe perguntas, deu-lhe puxões de orelha na frente dos seus pais e dos irmãos menores. “Gato a jato” chorou disse não ter sido ele. E não fora mesmo. Eles respeitavam Davi, tinham verdadeira admiração pelo “Rei do Dvd”. Foi na casa de “Pachola” não estava em casa. Deixou o recado que assim que ele chegasse o procurasse. Na casa de “Pecó”, a mãe disse que ele estava preso, havia roubado uma bicicleta de um menino, e um telefone celular de uma estudante na entrada da Escola Laura Chagas.  Pensou em ir na delegacia registrar um B.O.  Mas como ir dar parte na polícia! Se o produto roubado era considerado pela polícia um contrabando. Nem nota fiscal tinha de sua mercadoria. Pra polícia seu negócio era ilícito, uma contravenção penal. Mais revolta. Ninguém poderia lhe ajudar, ninguém. Era honesto seu negócio. Precisava se acalmar pra pensar melhor. Voltou pra casa. Na boca de uma só vez, entornou metade de uma latinha de Pitú. Engasgou-se. Chorou. Era choro de revolta. Naquele momento só pensava coisa ruim.   
            
Seu negócio agora era honesto. Rememorava o início. De quando havia começado à três anos antes. Pra levantar uma grana legal, suficiente pra primeira viagem a Caruaru, teve que vender pedras de crack e cigarro de maconha. O crack era adquirido por gente pobre da periferia, a maioria nem era gente criminosa. Consumiam pra ficar em estado de sonolência o dia inteiro, pra não sentir fome. Da maconha tinha clientes seletos, confiáveis, gente fina. Filhinhos de papai. Pais que nem de longe sonhavam que seus filhos e filhas, estudantes das melhores escolas de Santana, fumavam diamba, quando iam pras festas, pras vaquejadas e nos vários shows de rua nos municípios das proximidades. Bastava ter um show de Banda de Forró por perto, e seu telefone celular não parava de tocar. Eram as encomendas, vendas sem riscos. Tudo limpo, garantido.

Mas assim que adquiriu estabilidade no ramo de discos e cópias de mídias gravadas, praticamente parou com a venda de drogas. Sabia o quanto era perigoso. Davi estava revoltado, não teria sossego enquanto não descobrisse quem havia praticado aquele roubo contra ele. Queria de volta o que era seu. Mercadoria conseguida com muito sacrifício. Se não aparecesse, alguém ia pagar por isso!  Na porta da casa de Seu Miranda, uma turma se aglomerava, sempre era assim toda tarde. Reuniam-se pra jogar dominó. Jogavam apostando palitos de fósforo, balas doce,ou dinheiro.                                                                                                                                                       
No dia seguinte ao arrombamento da sua casa, Davi foi ter com Levi, um grande amigo seu. Precisava de sua ajuda pra recuperar a mercadoria roubada, ou pelo menos o que restava dela. Na pior das hipóteses, ao menos descobrir o autor do roubo. Por ironia do destino Levi era um cobrador de impostos. Alto, magro, de barba rala. Olhar astuto. Uns óculos de hastes finas sempre no rosto. Cabelos rebeldes encaracolados. Ouviu atentamente a história do amigo, disse que ia ver o que podia fazer. Levi sabia a quem devia procurar para desvendar o mistério. Ia procurar Glauco, policial militar reformado. Ele conhecia todos os vagabundos da cidade, todas as bocas de fumo, todos os “cheira-colas”, todas as prostitutas, onde ficavam todos os prostíbulos. Sobre as gangues, sabia quem eram os chefes, quem estava no comando. Quem vivia do tráfico. Quem comprava e quem vendia drogas, contrabandos, pirataria. Sabia um por um. Sabia quem eram os comerciantes que compravam roubo de “ratos”. E os chamados “cachorros grandes” que roubavam caminhões e cargas nas estradas. Sabia quem era especialista só em roubo de moto ou quem fazia desmanche de carros. Enfim era um arquivo vivo do submundo do crime em Santana do Ipanema.

Glauco sabia inclusive, quem vivia da pistolagem, de crime por encomenda. Quem eram os políticos que tinha rabo preso com o crime. Coisa pesada. Não gostava dessa fama de olheiro da bandidagem. Não gostava que soubessem que ele sabia. Deter determinados conhecimentos, saber muito coisa perigosa é perigoso. Um perigo pra quem sabe, claro. Não gostava quando lhe procuravam em busca desses tipos de serviço ou de informação. Não era bom. Tornava-se alvo fácil.  Preferia ser respeitado e tido como um bem sucedido empresário no ramo da terceirização de serviços gerais, uma modesta empresa de segurança. Mas prometeu a Levi que ia realizar uma investigação ainda naquele mesmo dia.  Essas coisas, não dá pra deixar o tempo passar. Sob o risco de perder os vestígios, as pistas. E aí não se descobre mais nunca o destino do material roubado. Tinha experiência nisso. Eram muitos anos naquela lida. Não ia ganhar nada com isso, era um favor pro amigo.

Depois de procurado por Levi, e seguindo sua intuição Glauco visitou naquela tarde o cabaré de Verinha na Rua das Pedrinhas. Lá ficou sabendo que um “rato” com o apelido de “Póiva” andava vendendo Cds e Dvds. Todos ali conheciam e sabiam que até bem pouco tempo “Póiva” nada vendia, perambulava pelas ruas, pedia esmolas aos passantes, e se achasse fácil, fosse o que fosse, furtava.  Glauco ligeiro localizou O “rato”. Encontrou-o vendendo discos no campinho ao lado do Ginásio de Esporte Cônego Luiz Cirilo. Nem precisou dar-lhe uns apertos, ele contou ao ex-militar que um rapaz da Lagoa do Junco procurou-o e mais outros dois amigos e repassou aquela mercadoria pra os três venderem nas ruas. Ganhariam comissão. Deveriam prestar conta uma vez por semana. Se vendessem tudo pegavam mais.

-E como é o nome desse rapaz?

Glauco queria saber. “Póiva” não sabia o nome. Ia saindo com o moleque pra dar continuidade às investigações quando o pivete cutucando-lhe o braço, apontando lhe mostrou:

- Ói ele. É aquele ali!

Glauco só teve tempo de ver um rapaz que já percebera o ocorrido e saía em desabalada carreira. O soldado reformado foi em seu encalço. Instintivamente sacou sua arma. Ainda por força do antigo hábito, deu voz de prisão ao fugitivo que ignorou a ordem. Deu um tiro pra cima. Achando que o disparo era em sua direção, o fujão esquivou-se se desequilibrando caiu. Aí foi fácil alcançá-lo. Pego e pressionado identificou-se, era Mateus vizinho e amigo de Davi.  “O Rei” conseguiu recuperar boa parte da mercadoria roubada. Glauco agora não se continha de tanto rir, porque descobrira o porquê do apelido de “Póiva”. Era que as flatulências do moleque fediam a pólvora.

Fabio Campos 

Santana: Rio que vai, Ruas que Vão

Ao Escritor Clerisvaldo B Chagas

RUA DE ZÉ QUIRINO
 Seu Fernando lá ia tangendo o burro carregado com quatro ancoretas, cheias de água do Ipanema. Ao trote do animal a carga balançava, emitindo um som característico, dentro dos cilindros de madeira. Seguiam pela rua de Zé Quirino, deixando para trás um rastro, feito uma sangria desatada que pintava o leito da rua de rio.  O sol se espreguiçando por cima das árvores e dos telhados das casas, enquanto os passarinhos engaiolados de Seu Carlitos, pendurados no pé de amêndoa esticavam as cabeças tentando receber os primeiros raios de quentura da aurora. Dona Zefinha cumprimentava Seu Fernando, mas não é água que aguardava. Esperava à porta, outro homem com outro jumento, que vinha da Maniçoba, o vendedor de leite de Seu Zé Urbano. A buzina estridente anunciava, Seu Pedro, vindo do comércio à guisa de um carrinho de pão.

RUA DA CADEIA
Quando o vendedor de leite chegasse Dona Edite ia perguntaria como estava Seu Zé Rosa, vigia do açude do Bode, se melhor de saúde. E iria reclamar do leite, pois, se cozido deixava uma crosta no fundo da panela. Tinha achado estranho também o cheiro, ia querer saber o que as vacas estariam comendo. Dona Carmelita, metida no seu roupão rosado, com suas chinelas fazendo chap-chap na calçada, estava indo até a Mercearia de Seu João Frade, comprar fósforos, ovos e manteiga. Precisava preparar o café da manhã de Seu Otávio, o marido, e dos três filhos que iriam pro seus destinos dali a pouco. Os filhos iriam pra o grupo escolar Padre Francisco Correia, o marido pro mercado. Seu Benigno morava na casa amarela, de batente alto na entrada, a esposa Dona Marcolina acordava as filhas, Vitória, Valéria e Valkíria. Ele trabalhava no setor de Endemias da Secretaria Municipal de Saúde, pouco faltava pra se aposentar. Enquanto não chegava esse dia, cumpria rigorosamente seu ritual, vestido em sua farda cáqui, pondo seu chapéu engraçado, de caçador de borboletas, iria fazer visita às casas, olhar os depósitos d’água. Investigar, checar, recomendar.

RUA NOVA
Interessante como as casas se pareciam com seus donos. Na casa de Dona Cristália, As louças de porcelana, na cristaleira de Dona Cristália. Na casa do Mário Nambu que era caçador, três biscuit na parede da sala, três gansos branquinhos voam pra canto nenhum, parados. Seu Tributino fazia tarrafas feito o apóstolo Pedro. E tinha filho chamado Jesus, a esposa é Maria e as paredes repletas de imagens de santos. Dona Mariquinha mãe de Gilvan quando fosse perto de dez da manhã iria até a farmácia de Seu Aleixo comprar pílulas pra sua enxaqueca.  O rádio, o tempo todo ligado, era escutado pelos seus três gatos angorás. E escutariam até meio-dia. À tarde eles dormiam, quando acordavam tomavam leite desnatado, mesmo assim se tivesse música à vitrola. Os meninos, Dionísio, Paulo e Manoel, filhos de Seu Zé Preto, de volta da escola passavam direto pro Panema. Iam jogar bola no campinho da ponte quebrada, até o sol ficar a pino, e só iriam pra casa quando estivessem com muita fome. Chegariam em casa suarentos e afobados, deixariam roupas largadas por todo canto e Dona Celina a preta velha, em vão reclamariam, como faziam todos os dias. Enquanto os meninos sonhavam um dia ser jogador de futebol.
Quando era dia de feira, a rua ficava ainda mais agitada. Do bebedouro passa em agitado tropel, um menino montado numa mula tangendo umas reses pra intendência e sempre acabavam fazendo a todos entrarem pra suas casas. Maria Lula que vinha do comércio trazendo uma cesta na cabeça teve que entrar na casa de Dona Antonia lavadeira até os bovinos se irem. Foram-se, mas deixaram um trilho de esterco enchendo a rua do cheiro de curral. No final da tarde, mais alvoroço. Suburbanos   bêbados lavados, voltam pra seus quixós, balançando suspensa num dedo o que chamavam de feira, os moleques apupavam.  Uma cachorra vira-lata no cio, passara com seis ou oito cachorros à reboque, um deles conseguira  o coito mas ficaram enganchados. Festa pros meninos, desespero pros cães enlaçados pelo sexo.  

RUA DE SÃO PEDRO
O prédio da Perfuratriz de tão antigo tornou-se triste. Na festa de São Pedro barracas, bandeirolas coloridas e gambiarras de luzes perpassavam suas calçadas e fachadas e nem assim conseguiam alegrá-los. Os festeiros, transeuntes noturnos beneficiados pela escuridão, aproveitavam o ermo dos cantos do velho prédio e aliviavam a bexiga. Meninos atiravam contra suas paredes desbotadas todo tipo de sorte. Bala de atiradeira, roqueira, bomba de cordão, pichação, riscos de carvão e giz, arremedo dos sexos, o do homem, uma tesoura o da mulher um triângulo, mais parecia um remendo costurado. Uma propaganda eleitoral antiga, pinchada por Albertino das tatuagens desafiava o tempo, “vote em Oceano Carleal”, ao lado do dizer, o desenho de uma mão fechada, com o dedo polegar hirto.  Hoje em dia nem existian mais aquele Oceano, nem Carleal, nem Albertino. Só o prédio velho, a parede e a mão dizendo: Bacana! Que nunca se cansava.  Jovens casais sentados nos batentes centenários, enamorados se beijavam, fazendo pouco caso, de que o espaço que ocupavam era parte da história daquela rua. No meio da festa, uma briga.  Dois amigos, Alípio e preto Paulo, um  jogador do time do Ipanema o outro do Ipiranga, embriagados se desentenderam e trocaram sopapos. Falaram que a contenda teria se iniciado, motivada por futebol. Só alguns sabiam a causa verdadeira, era a mulata Albertina (Tina), bonita e namoradeira dera bola pros dois. Os Soldados Martins e “Caçador” acabara levando os dois jogadores, pra passarem a noite na cela da Cadeia Pública no início da rua do sebo.

RUA DA PRAIA
Portando balas de barro de louça e atiradeiras, os meninos perseguiam os saguis, bizungas e pardais  do pomar de Seu Abdon Soares e Dona Pretinha. Pomar de belo coqueiral que acenavam pros quintais das casas e os urubus que vinham pousar-lhes nas palhas. Os moleques se arriscavam a roubar goiabas e maturis de caju  no quintal de Lelé pai de Erasmo, Manoel e Tião, tinham um cachorro pastor alemão.  Gritaria na rua, um palhaço encimado numas pernas de pau anunciava:  – Hoje tem espetáculo! A molecada que o acompanhava, respondia: -Tem sim senhor! As oito horas da noite... Foi-se o palhaço, rua em balbúrdia. Os meninos Ciço de Preta, Milton e “Quélo” engendrados na tarefa de desvencilhar umas pipas dos altos galhos de um pé de fícus, defronte a casa de Seu Pinpin, o funcionário da companhia da Luz alertou pra o perigo, mas menino só tem medo de lobisomem e alma penada, de descarga elétrica não. Um dia um cano d’água quebrou no meio da rua, bem na frente da casa de Seu Filemon. Água de festa, brincar de construir, barragens em miniaturas com barro e areia na sarjeta, festa que termina em resfriados, e despesas com xarope na farmácia de Seu Aleixo.  Depois de feito o reparo hidráulico mais serviço pros garis da prefeitura.

A RUA, TRISTEZA E ALEGRIA
O ano inteiro a rua é uma festa. No carnaval, os caretas mascarados, “os bobos” com seus gritos estridentes e os estalos de relho, em perseguição aos meninos medrosos, o mela-mela faz a rua brincar carnaval, faz a rua sorrir, os blocos e as troças emprestam idéia de anarquia, bagunça, uma desordem organizada.  Na quaresma a rua fica triste, macambúzia. Nos dias “grandes” da semana santa, o ápice da melancolia representada nos mendigos que angariam um “jejum” de porta em porta.  Tirante a  algazarra da malhada a “Judas”, a rua só volta a sorrir com a chegada dos festejos juninos, do bom São João, de Santo Antonio e São Pedro, soltar fogos, enfeites folguedos. A rua toda é uma só família. Bandeirinhas, fogueiras, fogos, iguarias de milho, quadrilha.  Na devoção ao dia de Corpus Christi vem a procissão, a rua se preparou pra esse momento. Plantas e oratórios expostos, nas portas das casas, velas acesas e imagens de santos nas janelas abertas de batentes forrados com colchas coloridas. A procissão se vai, a rua fica e dá adeus a procissão, agora só ano que vem. E voltará a se alegrar no dia da pátria. Os meninos do grupo escolar, fardados, orgulhosos desfilam pra seus familiares que acenam das portas.  Vem chegando o fim do ano,a rua vai ficando colorida pouco a pouco. Uma comissão de garis, passa pedindo “as festas”.  Pedro Forte pintou a frente da casa, Mané Guarda, motorista do DNER também. Uma aqui, outra ali, e a rua vai ficando bonita pra o fim de ano.  Zé Rosa morreu, lá vem o féretro pela rua, Quincas sapateiro e Juca Alfaiate, nas alças dianteiras. Consternação a rua para e olha. Toinho das Máquinas à calçada com Seu Sebastião, filosofa: -É o destino de nós todos... 

A RUA E O RIO
E vêm as trovoadas. A rua alagada, o mundo tingido de chumbo, o céu ameaçava desabar sobre a cidade. Nos interiores das casas pouca luz, sobra umidade. As casas frágeis pra os rigores de muita água sucumbem a infiltrações. Sudorese nas paredes e cimentados. Tão bom tomar café dentro de casa, agasalhado, olhando a chuva da tarde pela janela. Desce a enxurrada pela rua em direção ao panema. O rio toma água nas cabeceiras e vem fazendo a festa, arrastando tudo onde antes era rio, mas o povo esqueceu. A cheia enche a rua do cheiro de rio. Cheiro de barro, cheiro de piaba, cheiro de lama. E o rio arrasta mato, leva um cavalo morto, trás muitas cobras, atordoadas, que buscam nova moradia.

O FIM

Noutro dia, a rua amanheceu bonita de céu azul e alvas nuvens.  Vicença foi comprar pão pro café da manhã na bodega de Seu Carlitos. O marido Zé fogueteiro e os três filhos, ficaram fabricando fogos, pra vender pelos festejos juninos. De repente um estrondo balançou a rua. Alarido, correria, Vicença na bodega também queria saber o que houve. Voltou pela mesma calçada. A rua, as casas, tudo igual, tudo no mesmo lugar, menos sua casa, virada numa imensa flor de horror despetalada. Flor de escombros. 

Fabio Campos  

Quilômetro 184 da BR 316

O endereço aludido ao título dessa história, caro leitor e leitora, fica nas proximidades do sétimo Batalhão da Polícia Militar de Alagoas, companhia de Santana do Ipanema. Justo neste local, vamos nos encontrar neste momento, no leito da pista asfáltica federal. Cuja mão, leva os viajores rumo à capital alagoana, e contra-mão, os devolveria a cidade de Santana. Há um sol, de nove da matina, arestado pro lado leste que vem aquecer o asfalto. Liberando no ar, vapores do betume recém colocado. O céu límpido, azulado, quase desanuviado, denuncia ser dessas, uma manhã setembrina. De onde estamos da pra ver, ao norte, o esverdeado sopé do serrote dos macacos. Um rapaz segue calmamente, guiando uma moto em direção a cidade de Dois Riachos. De repente escuta, vindo de sua retaguarda, o frenético barulho da sirene de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal. Com um sinal de mão, um dos patrulheiros o obriga a parar no acostamento. O que guiava permanece ao volante, e o outro desce para abordar o jovem motociclista:  
-Documento da moto e habilitação, por favor!
O que fora solicitado foi prontamente atendido.
-A fivela da parte inferior do seu capacete não está abotoada. Por quê?
-Dessa vez, por descuido. Mas sempre coloco...
-Não está colocada agora! Isto é uma infração e vai lhe custar uma multa!
-Só por isso?!...
-Depois desta, nunca mais esquecerá de colocar! Além do que isto poderia lhe custar à vida, sabia?
O rapaz, de nome Luiz, morava em Dois Riachos, onde tinha uma oficina de conserto de motos, era o filho primogênito de Dona Carminha, professora aposentada. Havia passado o final de semana na casa de uma tia, em Santana do Ipanema. Ali, namorava uma moça, chamada Bruna. Naquela manhã de segunda-feira retornava pra casa.
De repente uma caminhonete desenvolvendo alta velocidade, surge na curva. O motorista é surpreendido ao ver a blitz, é um rapaz, ele não tem habilitação, sozinho conduzia o carro do pai até o sítio onde moravam ali próximo.  O nervosismo e a velocidade exacerbada, o faz perder o controle do volante. E atira-se implacavelmente contra o acostamento, onde se encontravam o policial e o motociclista. O guarda foi atingido na perna, enquanto que o corpo de Luiz foi arrastado por vários metros junto com sua moto que ficou despedaçada.
Luiz estava morto. Foi tudo tão rápido. Ainda ele, nem se apercebera do que acontecera, e seu corpo ensanguentado, estava lá estendido ao chão. Via a si mesmo, no chão, inerte. Apenas via, nada sentia. Não havia mais respiração, não sentia o peso do seu corpo, o incômodo do calor, a sudorese. Nem a luz do sol nos olhos, nem a boca seca, nada disso mais incomodava. Não entendia o porquê daquela paz indescritível da qual se sentia envolvido. Paz que o ato de estar vivo jamais poderia lhe proporcionar. Nada do que acontecia ali, parecia ter mais interesse algum. Nada daquilo fazia mais parte dele. A leveza do seu ser, noutra dimensão, sem as intempéries do corpo e do espaço físico, fazia-o incrivelmente despreocupado, mesmo diante do que acabara de acontecer. Já muitos carros que passavam haviam parado pra ver o acidente, um aglomerado de gente em torno do sinistro. Alguns, muito aflitos, outros, apenas curiosos. Ninguém o percebia ali em pé. Todos queriam ver, ou fazer algo, pelo seu corpo. O jovem motorista infrator fora preso. O guarda com a perna quebrada socorrido. Quanto ao seu corpo, Luiz o viu seguir na mala da viatura, envolto num cobertor. De repente um homem veio vindo em sua direção. Olhava diretamente pra ele. Aquele sim, teve certeza que lhes via. Era um senhor de mais ou menos setenta anos, moreno de cabelos e bigode grisalho, com calma perguntou-lhe:
-Isso aconteceu com você?
-Sim...
-Comigo foi à muito tempo. Eu vinha da roça com um carro de boi carregado de palma. Era noite, nessa mesma curva, apareceu outro maluco num caminhão...
Apontou o local. Haviam construído, um daqueles santuário em miniatura. Aonde os familiares costumam depositar mortalhas e acendiam velas em dia de finados. Luiz pra lá olhou, e conseguiu ler, o que havia escrito numa cruz de ferro preta, em letras brancas: Antonio Calixto. Uma estrela indicava a data de nascimento, era de 1925; uma cruz assinalava a data do dia fatídico, que estava apagado, só dava pra ver, mês e ano, outubro de 88.
Um garoto de aproximadamente oito anos, do nada, apareceu ali. Olhou pra Luiz e seguiu até onde estava o burburinho. Apenas Seu Antonio e Luiz conseguiam vê-lo. E o velho Calixto que ainda permanecia ao seu lado comentou:
-Tá vendo esse menino? Chama-se Pedrinho era filho de compadre Ismael. Foi atropelado lá adiante, vinha da escola de bicicleta. Era por volta do meio-dia, um caminhoneiro encandeou-se com o sol, passou por cima que nem viu!
Alguns anos se passaram desde então...
Em Santana do Ipanema, Valkíria irmã de Bruna, namorava Roberto, que estudava do Ginásio Santana, filho de Messias, ex-bancário aposentado. Valkíria uma menina ainda, só quinze anos tinha. Acabaria por engravidar do namorado. Por várias vezes pensou em provocar aborto. Tinha medo, da reação de Dona Corina e Seu José de Arimatéia, seus pais que eram feirantes. Tinha medo de que a expulsasse de casa, mas nada disso aconteceu. Faltando pouco mais de duas semanas para o seu filho vir ao mundo  Valkíria, teve complicações, na gravidez de alto risco.
Levada às pressas ao hospital Doutor Arsênio Moreira, foi imediatamente encaminhada pra Maceió. A ambulância que a conduziria tinha acabado de chegar da capital alagoana, e já voltava com a nova paciente. A noite já se fazia. Ao chegar no quilômetro cento e oitenta e quatro, o motor da viatura médica principiou um incêndio. O motorista imediatamente parou o automóvel de socorro. Pobres homens aflitos, o pai de Valkíria e o motorista, a muito custo conseguiram apagar o incêndio iniciado. Arrefeceram o calor do carburador, a origem do problema. Inevitavelmente uma pequena mangueira ficou destruída pelas labaredas que se iniciou no motor. Iriam passar horas ali até que alguém os socorresse. De repente, da escuridão da noite, apareceu um rapaz que se prontificou a ajudar. Disse o mancebo que entendia um pouco de mecânica de carro. Levou o motorista até o acostamento e pediu que pegasse um pedaço de mangueira preta de sua moto que ele havia deixado ali, e o orientou como fazer uma gambiarra pra tirar o veículo da pane. E realmente serviu. A ambulância seguiu viagem, e Valkíria pode salvar-se, e a seu filho. Passado o susto, o médico que a socorrera comentaria que se demorasse um pouco mais, teriam ela e o bebê morrido. De volta a Santana do Ipanema, na porta do hospital, o motorista da ambulância, contaria o sucedido aos colegas. Um dos amigos lhe perguntaria:
-E esse rapaz que lhe ajudou no reparo da ambulância, por acaso você o conhece, sabe seu nome?
-Ah! Isso eu fiz questão de perguntar, onde ele morava e seu nome, pois prometi um dia ir visitá-lo! Mora em Dois Riachos e chamava-se, Luiz.

Fabio Campos 

Nota do autor: Os contos "Liras de Minha Rua"(20.06.13); "O Crime da Rua Tertuliano" (22.02.13)e "Negrão dos Cavalos"(04.05.12) estão com gravuras atualizadas