A rua todinha pintou-se de João de Barro na farda dos operários. O
grená sacudia as saias das meninas num dançar e balançar, a volta da escola, rodeando
a praça. Os pés de fícus no canteiro arremedavam enormes pirulitos brincando de
verde em dois tons. A lacerdinha cintilou os amarelos daqui e dali, e foi até o fim da rua
procurando um olho a arder. João Dorotheu permanecia sentado no oitão da usina
de algodão de Seu Luiz dos Anjos. Enéas deu-se a lavra de alumiar o amigo sobre
como Deus desinventou-se de obrar o mundo.
“No
princípio Deus estava
Onde nada
existia
Cobriam o
abismo as trevas
Na terra
disforme e vazia
E o espírito
de Deus pairava
Sobre as
águas profundas e frias”
“-Foi assim: Deus “tava” sozinho. Pois onde ele “tava” só existia ele
mesmo. Bem “acentado” assim num canto. Assim quétinho, só assuntando. Aí
pensou, pensou, e “dixe”: -Vou criar o mundo. Entônsse olhou pra cá, olhou pra
lá, pra riba e pra baixo. E só via o nada. O nada é escuro, não sabe? Pois é,
ele olhou, olhou... Então pegou com as mãos, um pouco desse breu. E começou a
amassar. Amassou, amassou até formar uma bola. Eu acho que não levou mais que
uma hora de relógio pra fazer isso. Os sete dias que se seguiram ele gastou justamente
pra criar as outras coisas que tem em riba do mundo.”
“O espírito
de Deus se erguia
Sobre a
terra e seu futuro
E Deus
disse: Faça-se a Luz
E a
claridade surgia
As trevas
foi pro o escuro
Deus fez a
noite e o dia”
Quando dona Maroquita morreu, o padre teve que contratar três
carpideiras pra chorarem no velório. Porque os parentes da finada já tinham
morrido todos. As mucamas a detestavam, porque não gostava de preto, ainda mais
pobre. Diziam as más línguas, bastava tocar num matuto, corria a lavar as mãos,
como se pobreza fosse doença. Já o dinheiro que traziam pra doar a igreja...
Ah! Esse sempre seria bem vindo. Nos dias de sábado, dia de feira livre, quando
a casa do padre ficava cheia, dona Maroquita se trancava no quarto, e só saía
de lá pra ir a cozinha vistoriar o feitio das refeições. Obrigava a criadagem a
servi-la nos seus aposentos. Enxotava os que se atreviam a invadir a cozinha.
No dia seguinte todos os forros das mesas, cortinas tinham que serem trocados.
As velas acesas, até mesmo elas negavam-se a chorar por aquela ex-vivente, mal
tremiam a pétala de luz. Acompanhavam quietas amornando as rezas. E os
espíritos andantes, um a um, iam se acercando do féretro. Velariam até o fim,
mesmo que viesse o sono nos que eram viventes que lhes faziam sentinela.
Permaneceriam velando. Daquele jeito lembravam mães, ao lado do berço de seus
filhinhos, embalando cantiga de ninar.
“Terceiro
dia agora está
Deus juntou
águas correntes
Chamou a
isso de mar
Pois o
elemento terra na frente
Nessa parte
fez brotar
Pés de
frutas e sementes”
“-Deus fez o mundo pros destros.” Disse sério Seu Antonio Tenório. Estava
na feira, comprando abacate. No que foi pagar, o vendilhão saiu com essa: “-Não
é por nada não Seu Antonio, mas o senhor me troque o dinheiro de mão!” Porque
estava pagando com a esquerda. Lá na roça, já algum tempo havia tirado a limpo
a história que plantar jogando a semente com a mão esquerda davam a nascerem
pés de milho e feijão mais falhado. Quando ia fazer uma anotação no caderno de
registro da fazenda, tinha que ter um cuidado danado pra não borrar tudo que
escrevia, a tinta da caneta tinteiro demorava a secar. Ainda menino seu pai
queria que ele aprendesse a tocar sanfona. Chegou a tocar viola, mas teve que
trocar a posição das cordas. O velho Antonio quis ter um pé de abacate no terreiro
de casa. Ensinaram-lhe que tinha que pedir a uma menina moça pra descaroçar o
fruto. A semente teria que “dormir” encima do telhado num prato de estanho que
não tivesse nenhuma trinca. Bem cedo tinha que retirar sem tocar, pegando com
uma colher. E plantar ainda com o orvalho da manhã, dando as costas pra nascente.
Tempos depois não entendia a ciência de que o abacateiro só botaria fruto se
tivesse “olhando” pra outro pé.
"E o sexto dia se fez
Deus fez
seres exemplares
Criou na
terra animais
Como tinha
feito nos mares
Disse;
Crescei e multiplicai
De acordo
com seus pares"
“-Zequinha Abreu dizia que Zé de Zefinha conversava mais que o homem
da cobra.” “-Ora! Terezinha! Também não ficava muito pra trás.” “-Vai ver que
quando eram criança beberam água de chocalho!” Toda vez que falava em homem da
cobra, madrinha Moça lembrava-se dum dia quando estavam na roça. O terreiro
tomado por montanhas de vagens de feijão pronto pras batas. O paiol e os
alpendres tomado pelo milho, e os carros de bois abarrotados de sacas de
algodão. Ô tempo bom meu Deus! Maria de Zé Lagoa, bem acolá, sentada num
batente de umburana que servia pra empatar de entrar água da chuva pra dentro
de casa. A mais de hora pitava um cachimbo, enchendo o entardecer de fumo.
“-Entônsse ela “dixe” “mermo” assim: “-Vixe Maria! Mais é muito cobra!”
Acontece que ninguém deu valor aquilo que acabara de dizer. E ela tornou a
repetir; “-Minha gente! Mais é muita cobra!” Acabaria despertando a curiosidade
dos compadres, que queriam saber do que estava falando. Então se descobriu que
ela referia-se a pelo menos umas três jibóias que passeava pelo terreiro, atrás
de pegar os franguinhos e as galinhas.
“Nesse dia fez Adão
Moldando
barro do piso
Deu sua
imagem e semelhança
Discernimento
e juízo
Lhe deu alma
e temperança
Lhe deu Eva
era preciso
Neles pôs
sua esperança
E lhes deu o
Paraíso”
O açougueiro Zé de Matias mantinha um caso com a mulher do barbeiro. O
fuxico corria a boca miúda. Muita gente sabia inclusive o irmão do dito cujo.
No sertão o povo tem um dizer que “O corno sempre era o último a saber.” E assim,
quando era dia de feira a mulher do Fígaro,
se arrumava toda e ia pra rua. Passava na barbearia, Seu Cornélio dava o
cobrinho “móde” fazer a feira. Depois ela ganhava o caminho do Mercado de Carne.
Tapeava comprando uma fruta aqui, um legume ou outro ali. Na tarimba de Zé de
Matias se demorava. Um piscar de olhos e estava marcado o encontro entre os
amantes. O local combinado, o de sempre, lá no poço da pedra. Um lugar bem
escondido entre as cachoeiras do rio no finalzinho da tarde. Acontece que naquele dia o irmão do galhudo
tomou umas cachaças a mais, e deu com a língua nos dentes. De posse dum facão, provocando
grande alarido, partiu Cornélio rumo ao rio. O povaréu foi atrás. Chegando
lá, encontraram feito Adão e Eva, os pombinhos. No meio da relva, junto a
frutas e legumes. Bramindo o facão resolvido a expulsar os amantes do mundo dos
viventes e daquele paraíso. Lá se foi o samurai do sertão, disposto a ensanguentar
de mais vermelho, o sol, da terra do sol poente.
"Ao concluir
a Criação
Deus sua
obra admirou
Viu que tudo
era bom
E ao homem
ordenou
Domine o que
há na Terra
Nos mares,
no ar na Serra
Do mundo
seja o senhor
Esse era o Sétimo
dia
Agora Tudo
existia
E por fim
Deus descansou."
Fabio Campos