A Usina (Segunda Parte)

A rua todinha pintou-se de João de Barro na farda dos operários. O grená sacudia as saias das meninas num dançar e balançar, a volta da escola, rodeando a praça. Os pés de fícus no canteiro arremedavam enormes pirulitos brincando de verde em dois tons. A lacerdinha cintilou os amarelos daqui e dali, e foi até o fim da rua procurando um olho a arder. João Dorotheu permanecia sentado no oitão da usina de algodão de Seu Luiz dos Anjos. Enéas deu-se a lavra de alumiar o amigo sobre como Deus desinventou-se de obrar o mundo.

“No princípio Deus estava
Onde nada existia
Cobriam o abismo as trevas
Na terra disforme e vazia
E o espírito de Deus pairava
Sobre as águas profundas e frias”

“-Foi assim: Deus “tava” sozinho. Pois onde ele “tava” só existia ele mesmo. Bem “acentado” assim num canto. Assim quétinho, só assuntando. Aí pensou, pensou, e “dixe”: -Vou criar o mundo. Entônsse olhou pra cá, olhou pra lá, pra riba e pra baixo. E só via o nada. O nada é escuro, não sabe? Pois é, ele olhou, olhou... Então pegou com as mãos, um pouco desse breu. E começou a amassar. Amassou, amassou até formar uma bola. Eu acho que não levou mais que uma hora de relógio pra fazer isso. Os sete dias que se seguiram ele gastou justamente pra criar as outras coisas que tem em riba do mundo.”

“O espírito de Deus se erguia
Sobre a terra e seu futuro
E Deus disse: Faça-se a Luz
E a claridade surgia
As trevas foi pro o escuro
Deus fez a noite e o dia”

Quando dona Maroquita morreu, o padre teve que contratar três carpideiras pra chorarem no velório. Porque os parentes da finada já tinham morrido todos. As mucamas a detestavam, porque não gostava de preto, ainda mais pobre. Diziam as más línguas, bastava tocar num matuto, corria a lavar as mãos, como se pobreza fosse doença. Já o dinheiro que traziam pra doar a igreja... Ah! Esse sempre seria bem vindo. Nos dias de sábado, dia de feira livre, quando a casa do padre ficava cheia, dona Maroquita se trancava no quarto, e só saía de lá pra ir a cozinha vistoriar o feitio das refeições. Obrigava a criadagem a servi-la nos seus aposentos. Enxotava os que se atreviam a invadir a cozinha. No dia seguinte todos os forros das mesas, cortinas tinham que serem trocados. As velas acesas, até mesmo elas negavam-se a chorar por aquela ex-vivente, mal tremiam a pétala de luz. Acompanhavam quietas amornando as rezas. E os espíritos andantes, um a um, iam se acercando do féretro. Velariam até o fim, mesmo que viesse o sono nos que eram viventes que lhes faziam sentinela. Permaneceriam velando. Daquele jeito lembravam mães, ao lado do berço de seus filhinhos, embalando cantiga de ninar.   
    
“Terceiro dia agora está
Deus juntou águas correntes
Chamou a isso de mar
Pois o elemento terra na frente
Nessa parte fez brotar
Pés de frutas e sementes”

“-Deus fez o mundo pros destros.” Disse sério Seu Antonio Tenório. Estava na feira, comprando abacate. No que foi pagar, o vendilhão saiu com essa: “-Não é por nada não Seu Antonio, mas o senhor me troque o dinheiro de mão!” Porque estava pagando com a esquerda. Lá na roça, já algum tempo havia tirado a limpo a história que plantar jogando a semente com a mão esquerda davam a nascerem pés de milho e feijão mais falhado. Quando ia fazer uma anotação no caderno de registro da fazenda, tinha que ter um cuidado danado pra não borrar tudo que escrevia, a tinta da caneta tinteiro demorava a secar. Ainda menino seu pai queria que ele aprendesse a tocar sanfona. Chegou a tocar viola, mas teve que trocar a posição das cordas. O velho Antonio quis ter um pé de abacate no terreiro de casa. Ensinaram-lhe que tinha que pedir a uma menina moça pra descaroçar o fruto. A semente teria que “dormir” encima do telhado num prato de estanho que não tivesse nenhuma trinca. Bem cedo tinha que retirar sem tocar, pegando com uma colher. E plantar ainda com o orvalho da manhã, dando as costas pra nascente. Tempos depois não entendia a ciência de que o abacateiro só botaria fruto se tivesse “olhando” pra outro pé.

"E o sexto dia se fez
Deus fez seres exemplares
Criou na terra animais
Como tinha feito nos mares
Disse; Crescei e multiplicai
De acordo com seus pares"

“-Zequinha Abreu dizia que Zé de Zefinha conversava mais que o homem da cobra.” “-Ora! Terezinha! Também não ficava muito pra trás.” “-Vai ver que quando eram criança beberam água de chocalho!” Toda vez que falava em homem da cobra, madrinha Moça lembrava-se dum dia quando estavam na roça. O terreiro tomado por montanhas de vagens de feijão pronto pras batas. O paiol e os alpendres tomado pelo milho, e os carros de bois abarrotados de sacas de algodão. Ô tempo bom meu Deus! Maria de Zé Lagoa, bem acolá, sentada num batente de umburana que servia pra empatar de entrar água da chuva pra dentro de casa. A mais de hora pitava um cachimbo, enchendo o entardecer de fumo. “-Entônsse ela “dixe” “mermo” assim: “-Vixe Maria! Mais é muito cobra!” Acontece que ninguém deu valor aquilo que acabara de dizer. E ela tornou a repetir; “-Minha gente! Mais é muita cobra!” Acabaria despertando a curiosidade dos compadres, que queriam saber do que estava falando. Então se descobriu que ela referia-se a pelo menos umas três jibóias que passeava pelo terreiro, atrás de pegar os franguinhos e as galinhas.

“Nesse dia fez Adão
Moldando barro do piso
Deu sua imagem e semelhança
Discernimento e juízo
Lhe deu alma e temperança
Lhe deu Eva era preciso
Neles pôs sua esperança
E lhes deu o Paraíso”

O açougueiro Zé de Matias mantinha um caso com a mulher do barbeiro. O fuxico corria a boca miúda. Muita gente sabia inclusive o irmão do dito cujo. No sertão o povo tem um dizer que “O corno sempre era o último a saber.” E assim, quando era dia de feira a mulher do Fígaro,  se arrumava toda e ia pra rua. Passava na barbearia, Seu Cornélio dava o cobrinho “móde” fazer a feira. Depois ela ganhava o caminho do Mercado de Carne. Tapeava comprando uma fruta aqui, um legume ou outro ali. Na tarimba de Zé de Matias se demorava. Um piscar de olhos e estava marcado o encontro entre os amantes. O local combinado, o de sempre, lá no poço da pedra. Um lugar bem escondido entre as cachoeiras do rio no finalzinho da tarde. Acontece que naquele dia o irmão do galhudo tomou umas cachaças a mais, e deu com a língua nos dentes. De posse dum facão, provocando grande alarido, partiu Cornélio rumo ao rio. O povaréu foi atrás. Chegando lá, encontraram feito Adão e Eva, os pombinhos. No meio da relva, junto a frutas e legumes. Bramindo o facão resolvido a expulsar os amantes do mundo dos viventes e daquele paraíso. Lá se foi o samurai do sertão, disposto a ensanguentar de mais vermelho, o sol, da terra do sol poente.   

"Ao concluir a Criação
Deus sua obra admirou
Viu que tudo era bom
E ao homem ordenou
Domine o que há na Terra
Nos mares, no ar na Serra
Do mundo seja o senhor
Esse era o Sétimo dia
Agora Tudo existia
E por fim Deus descansou."


Fabio Campos

A Usina (Primeira Parte)

Zefinha era prima de Valdemar, por parte de pai. Valdemar era irmão de Paulo, que era irmão de Manoel, que eram sobrinhos de João Doroteu. E eram primos de Casteado, por parte de mãe, que era sobrinho de Antonio Tenório, que tinha outro irmão, que não recordo o nome agora, mas que era casado com uma irmã de Osvalinda, que era casada com Seu Tibúrcio, que eram compadres de Enéas e Terezinha. E se a gente não der um basta nisso tudo, vai ficar somente dizendo quem era parente de quem, e eticétera e coisa e tal. Mas isso tudo é pra dizer que Zefinha casou com Paulo, e que na verdade eram primos, e tiveram dez filhos. Mas no falar do matuto, só “vingaram” seis. O que queria dizer que apenas seis deles sobreviveram.

Isso porque o matuto tem um jeito de dizer as coisas, que só eles entendem. E tem uns cabras que apesar de ser matuto, sabe cantar umas coisas bonitas por aí. Mas quem é que não acha bonito? Quando o peste diz que pro cabra nascer homem de verdade tem que nascer no sertão. “Mãe Dedé” a parteira quando aparava um cabra macho, não dizia “É menino!” dizia “É homem!” Isso pro cabra já ir se acostumando. E danava um sopro nas ventas pra desentupir o resto de parto. E mandava que o pai fosse enterrar o umbigo, na frente duma igreja ou duma escola: Que era “pra móde” aquele vivente se tornar um bom cristão ou quem sabe um doutor! Só não podia era deixar o gato comer, senão virava ladrão! E o matuto ficava era doidinho! Pábo de orgulho quando nascia um “bacurinho” macho! Assim que começou a gravidez do sexto filho de Zefinha, Paulo foi até a casa de Seu Esaú e pediu pra ele cevar, lá debaixo do alpendre na parte do lado do sul, um cortiço, pra fazer um “Cachimbo”: Uma garrafada de aguardente de cana e mel de Uruçu. Recomendou a Ciço Mouco e Zé Torreiro que engordasse um porco. A dona Tereza, lá de Santana, que morava na Rua da Cadeia. A ela, pelo mascate Zé Costa, enviaria um bilhete dizendo que ajuntasse uns dez cágados, no dia aprazado ia pegar. Perus, guinés e galinhas, não precisaria encomendar, isso o ano todo, todos tinham no terreiro de casa. Porém tinha um detalhe: só compraria a quem criasse preso, porque galinha solta come merda, lacraia, barata, tudo quanto é porcaria! Tudo era providenciado com antecedência pro dia do batizado. Iria chamar Enéas e Terezinha pra serem padrinhos de vela. E o senhor doutor João Yoyô ilustríssimo juiz de Direito daquela comarca com sua digníssima esposa convidaria pra serem os padrinhos de apresentar! Com certeza não podia faltar o farmacêutico “doutor” Hermidio. Ô homem bom de gogó! Depois de beber umas, o homem cantava umas modas de viola que era uma beleza. “-Ô de casa!? Com licença! Já tô entrando... Ôxente! Cadê o povo dessa casa? Já sei foram tudo catar algodão! E deixaram o rádio ligado coitado, ficou aí cantando sozinho.

“Prepare seu coração para as coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino e tudo, a morte, o destino e tudo
Estava fora de lugar, eu vivo pra consertar”

Êita! Que ano cego era aquele! Valha-me Deus! A última cuia de farinha, Zefinha catou no fundo do bornal, pôs um pouco de sal, molhou com água, até virar uma papa, e deu pros meninos comerem. O mais novo já estava com três anos. Por sugestão do padre Bulhões, botaram-lhe o nome de Sebastião, pois no dia do batizado, era dia daquele santo.  E era tanta a desolação de “Tiãozinho” e seus irmãos  por aqueles dias, que nem tinham ânimo pra brincar. Coragem se quer pra correr pelo terreiro, catar uma vagem de algaroba, travar no dente e sentir seu rústico sabor adocicado. Zefinha fez um chá, e o cheiro de capim Santo tomou conta. Trançou um cigarro de palha, pôs-se a fumar. E se já se anuviava as vistas pelas águas dos olhos, a fraqueza, a fumaça azulina mais ainda anuviava.E ia se enfiando no cabelo negro, Anum. A sensação efêmera de serotomia, desencadeada pela nicotina, fluindo sobre a pele morena, ressecada. Um semi estado de dormência.A testa lavrada de temperança, as unhas enegrecidas de carências. Sendo a afetiva a maior delas. O cercado tremia - tristeza. O pé de serra tremia - solidão. A vela acesa, alumiando o quarto tremia - oração. Desmanchou o có-có do longo cabelo. Pôs-se a pentear-se. O cabelo solto lhe fazia um pouco mais nova. De vez em quando “bisóiava” o canto de parede. Corria o rabo do olho pras imagens de “meu” padrinho Cícero, e padrinho frei Damião. Padrinho com a cabecinha branquinha, assim meio abaixada. “-Enh!enh! Meu Deus! E não era que eles estavam  tudinho ali! Bem no cantinho do primeiro vão da minha taperinha, de taipa! O tempo todo!” De repente  dum salto ficou de pé, foi até o quarto e voltou com um objeto envolto num pedaço de linho velho desbotado. Novamente sentou-se a porta para aproveitar o clarão do dia e pôs-se a desenrolar sobre as pernas o que tinha embaixo do pano.

“Maria Maria, é um dom, uma certa magia
Uma mulher que merece viver e amar Como outra qualquer do planeta.
Mas é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria
mistura a dor e a alegria.”

Maria, a filha mais velha se atreveu a perguntar: “-Mãe? O que a senhora vai fazer com a usina?” José, o irmão do meio, olhou com olhar estranho, não disse nada, mas pensou: não era aquilo uma máquina? A graciosa “Vigorelli“ era uma máquina de costura manual, sem pedestal. Acoplada num pequeno caixote retangular de madeira servindo-lhe de tampo dum compartimento pra guardar atavios. A manivela tinha o cabo de marfim, o corpo da peça todo em preto, e as letras no lombo, ainda conservava um pouco do dourado. Zefinha ia enxugando os pingos de lágrimas que iam caindo sobre o compartimento de apoio. Tantos anos atras comprara a Seu Zezé Fonte dono da usina de corda de caruá. O maquinário era bem parecido com aquele. Desenganou-se da promessa do senador, passou mais de ano pagando, há tanto tempo, era dela. Seu Zé Doceiro fazia caldo de cana, moendo, moendo, de tanto esforço os braços ficaram fortes. Ele moía até o bagaço virar uma bucha seca. Aí, ele dava pra burra comer. “- Seu Zé Doceiro era um engenheiro.”  Matuto era assim mesmo, tinha mania de botar nome de usina, em tudo que era engenhoca.  “-Sendo Seu Zé Doceiro um usineiro. “Entônsse” Seu Leô cego? Aquele que ajeita relógio quebrado era maquinista?”

“Meu Deus, meu Deus
Setembro passou Outubro e novembro
Já tamo em Dezembro Meu Deus que é de nós?
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre do seco Nordeste
Com medo da peste da fome feroz. Ai, ai, ai, ai”

João Dorotheu se estava.  sentado no oitão da usina de algodão de Seu Luiz dos Anjos. Zefinha chegou montada numa burra, apeou esbarrando no meio-fio. Nos caçuás, algodão. Daí a pouco chegou Enéas. Olhou pra cá, depois olhou pra lá. Os outros repetiram o gesto. Acenderam cigarro. O azulão do céu ganhou pelo menos mais três pares de olhos.  “-Não sei não. Mas como foi que Deus se inventou de criar o mundo?” “Não sabe? Pois então eu vou lhe contar.” E um silvo longo soou lúgubre, apito da usina.


Fabio Campos  

Donde Vais Escrevedeira de Garganta Preta?

João Baptista, e André Soares constituíam-se amigos. João Baptista morava na Quinta da Vinha. Província de Vieira do Minho, proximidades da cidade de Braga, norte de Portugal. O outro, era brasileiro, nascera no nordeste brasileiro, porem desde muito jovem morava no Rio de Janeiro. O que os unira, o fato de serem ambos naturalistas. Em plena selva amazônica, num congresso sobre fauna e flora tropical, conheceram-se.
Milhares de quilômetros de céu marinho, debaixo de águas oceânicas separavam-nos. Um pequeno obstáculo geográfico, talvez fosse só um detalhe. Não se constituindo jamais empecilho pro amigos. Mantinham portanto constante correspondência. E a cada dia, lá ia o funcionário do correio, vermelho e verde na farda, uma estrada, uma casa de pedras. O frio madrugador se dissipando sob o sol. E os galináceos em sua variada linhagem jamais indiferentes os intempérie da friagem, cumpriam sua missão de acordar o dia. De ciscar o terreiro de além açores, de alçarem vôos até pelo menos dois infinitos. Em todo seu esplendor de luz e calor, de dar vida ao mediterrâneo. 
Enquanto ia o sol predestinado, espreguiçando-se sobre a Europa. De tanto se esticar em luminosidade, acabava vindo esbarrar na América. Só quem via e sentia, sabia o quão era bom, ter a posse de tudo aquilo. De acordar todos os dias, e ter diante de sua existência, montanhas deslumbrantes, recoberta pela plumagem da floresta arbustiva. E o céu de Deus vinha vindo, e descia sobre o céu dos homens, num constante indo e vindo. O rio Ave, a ponte. A ponto de não mais distinguir-se o que era cenário, ou se cenáculo.  Enquanto bovinos lá longe, biscuits estáticos, a gramearem grama verdinha, verdejante somente muito longe. E aquele, tinha o propósito de vir ao Brasil num monomotor, do tempo da segunda guerra mundial.

“E o Senhor me perguntou: “O que você está vendo, Amós?” “Um prumo”, respondi. Então disse o Senhor: “Veja! Estou pondo um prumo no meio de Israel, o meu povo; não vou poupá-lo mais. Amós 7-8”

João Baptista, do vale do Cávado, de origem camponesa. Estudou na Universidade Católica Portuguesa na “cidade da juventude”. O Centro de Cooperação Cultural possuía diversos albergues, o que tinha de velha, vibrava na população universitária tão jovem. Assim era Braga. E no mês de maio tinha a tradicional festa do “Enterro da Gata” por três dias os jovens vivenciavam competições de rua, ralis nas cercanias da cidade, corridas de bicicletas, nas estradas rupestres, pelas ruas, o ponto máximo era a escolha da rainha da festa, a premiação dos competidores campeões. Desde o tempo de ensino médio interessou-se pelo trabalho de Lineu e Darwin, formou-se biólogo. Pretendia um dia fazer o caminho do Beagle, só que uma viagem aérea. Do Brasil iria a Patagônia, a ilha de Fernando de Noronha e Gálapos. Amava o campo e o cultivo agrícola a criação pastoril. Seus avós e pais contavam histórias de como haviam chegado à região, de serem ancestrais provenientes do povo Celta, duma linhagem chamada “Castros” que travaram lutas contra os “Bácaros” do qual originaria o nome da cidade. Num tempo ainda mais antigo que estavam vivendo,quando da fundação do vilarejo, os romanos teriam invadido a província e forçado a população a descer o vale. A sua descendência vinha dali. Daqueles que foram expulsos pros campos. 
     
“Acaso correm os cavalos sobre rochedos? Poderá alguém ará-los com bois? Mas vocês transformaram o direito em veneno, e o fruto da justiça em amargura. Amós 6-12”

Bom mesmo era quando chegava o mês de junho, quando o povo comemorava na frente das igrejas Santa Sé de São Pedro, em Bom Jesus, Sameiro e falperra, santa Maria Madalena e santa Marta das Cortiças, reunidos se confraternizavam. Não havia entre eles a tradição das fogueiras. Armavam-se imensas mesas com muita comida e bebida, vinhos produzidos nas redondezas, todos tinha adegas em casa e pães enormes. Queijos de fabrico artesanal, e vinho muito vinho. Jovens casais executavam a “Dança do Rei Davi”, embora sendo bem mais modesta, lembrava as danças na corte imperial do século iluminista. As lavradeiras faziam em casa velas de parafinas e cera. Ficariam conhecidas como velas votivas de Braga, as camponesas levavam pra missa para serem consagradas, após a celebração eucarística, benzidas. De tanto viver este ritual, virou tradição, os turistas tomando posse da lenda, passariam a comprar pra levarem de lembrança. Maria Ondina de Braga tinha devoção com a alma da irmã Maria Estrela Divina, que dera sua vida na guerra dos mouros e visigodos na tomada da cidade, seu corpo martirizado, fora sepultado na Santa Sé. Quando chegava o mês de junho era costume depositar uma coroa de flores, amarrar diversas fitas coloridas no gradil da igreja e acender pelo menos três velas, para venerar o antepassado. Em junho era verão, e as aves estavam na fase de reprodução, em abril e maio do acasalamento e logo se davam as ninhadas, como nasciam. Escrevedeira de garganta preta multiplicavam de sons e cores os céus lusitanos, as árvores, o outono, as eiras e beiras, as entrâncias e reentrâncias das chaminés das casas da vila de Braga de Portugal.   

“Quando acabará a lua nova para que vendamos o cereal? E quando terminará o sábado para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida, aumentando o preço(29), enganando com balanças desonestas e comprando o pobre com prata e o necessitado com um par de sandálias vendendo até palha com o trigo?. Amós 8-5,6”

No lado de baixo do equador era verão. O carteiro trajado num camisão cáqui cheio de bolsos, na cabeça um boné bufante, e calças dotadas de suspensórios. Com sua imensa sacola a tiracolo, percorria a Quinta da Boa Vista, bairro de São Cristovão. Buscaria a residência de André Soares. Arvoredos e muito verde entremeados de imponentes construções do período imperial enchia de graça seu espírito. A paz e o encanto proporcionado remetiam ao tempo que a família imperial portuguesa habitou ali. A bela casa da marquesa de Santos, de linhas neoclássicas, a casa do Barão Drummond que depois de uma viagem a França, inspirou-se a construir o Jardim Zoológico. Para arrecadar fundos criou a loteria dos bichos, todos os dias, um animal de médio porte era colocado numa jaula coberta com um pano. Os visitantes mediante o pagamento de uma pequena taxa de entrada no jardim apostavam que bicho estaria dentro da gaiola misteriosa. No fim do dia revelava-se e os acertadores recebiam um espólio do rateio. Estava criado o “jogo do bicho”.    

“Respondeu a Amazias: Eu não sou profeta nem pertenço a nenhum grupo de profetas(26), apenas cuido do gado e faço colheita de figos silvestres. Amós 7-14.”

André Soares acordou por volta das sete horas, seguia pela alameda das sapucaias, respirando ares da nobreza. Imaginava que a qualquer momento fosse encontrar o imperador Pedro segundo, a brincar. Sorriu ao imaginar um menino de longa barba, a correr pelo parque. A poucos metros do Paço Imperial. Ali nascera a princesa Isabel. Eternizada no nome da vila.  Admirava o magnífico projeto do arquiteto francês Glaziou. As aves perpetuadas, trazidas do antigo Campo de Santana, atual Praça da República, palco da proclamação. De repente viu um pequeno pássaro no alto de um oitizeiro, percebeu nele as características duma Escrevedeira de Garganta Preta, ora mas aquela espécie só existia lá no Trás-Montes, terra do amigo João. Sim! Sem dúvida era a ave!

Serelepe buscou um fotógrafo lambe-lambe, tinha que captar aquela imagem. Enquanto isso um teco-teco monomotor sobrevoava a enseada de Botafogo, e o Cristo Redentor, até então taciturno, fez menção de sorrir.


Fabio Campos      

Menino Temporal

Havia ali uma bela praia. Tons, azuis claros afetando a auréola amarelo ouro do sol. Pouco a pouco esmorecendo, a medida que se afastava do soberano. De lá trás do tempo, trazendo de volta, um pouco de um muito, a muito ido. O horizonte, um risco a lápis, verde marinho. Anuviado de muitas incertezas, de destinos traçados, de mistérios, de tempos que se fora e de porvir. E o mais que havia ali, era mar e maresia. Enquanto lá do alto do monte, velava o farol.

Menino Vento
As casinhas da vila, sobre as pedras do cais, tudo feito de salubridade e tempo. Como a dizer ao vento, também somos conto. Barcos, um bailado a quebra maré.  Areia de sal, e mar nos pés dos pescadores, subia as pedras do calçamento. Cordas, redes, âncoras recolhidas. Aldo, Micau e Miro atirados aos trabalhos de desembarque, se quer se atinham que eram detalhes da paisagem. Peixes, cheiro, vítreo em negros olhos, efusivos de escama multicor. Nos balaios pro mercado indo, depois desviscerado a secar ao sol, na calçada, desfigurados. A areia da praia, a se entranhar nas vestes dos passantes. Na Praça da Piedade. Lá dentro da igreja, a sacristia, os paramentos do padre, o altar, tudo, tudo granulado, de mar desidratado. O sino no campanário, calado, olhando pro alto-mar. Lá pra de tardinha professora Belmira, de casa em casa, indo chamar as velhinhas, pele alvinha de porcelana, de cabelo algodãozinho, cheirosas a pó de arroz. Indo rezar o santo terço. A casa paroquial, sempre aberta àquela hora, ficava na Rua Joaquim da Hora. E o padre Zezinho, no passeio, distribuía carisma e cumprimentos. A caminho da escola, os meninos cercavam-no pra ganhar uma benção, um afago. No quintal da professora Niedja Café, as mangas inchadas, rubro amareladas, acenavam pros meninos lá no pátio do Grupo Escolar Ciridião Durval, metidos na suas fardas branquinhas com suspensório em shorts azuis. Paulú, magricela, com seus olhinhos de chinês, ao portão recepcionava os infantes. Enquanto dona Lourdes, a merendeira, mexia a panela e enchia de mugunzá as salas de aula. Quão grande algazarra no dia do desfile cívico.

A luz incidental punha tons de carne nas paredes da sala dos professores. A lanterna de puçá e conchinhas de mariscos ajudava. Olavo Bilac estava lá, e olhava pro futuro que um dia lhe perpetuaria “Patrono do Exército brasileiro: “Quero e sempre quis a instrução e a defesa do país, pelos livros e pelas armas. Quero a escola dentro do quartel, e o quartel dentro da escola. A segurança das pátrias, depende da inteligência e da força. O estudo defendendo a civilização, e a disciplina defendendo o estado.” A bandeira brasileira cabisbaixa, desnecessariamente tentaria impor “Ordem”, somente a duros custos conseguindo. O progresso, no entanto, demoraria anos pra vir. Sobre a mesa um buquê de flores esbanjava de cor, o que não tinha de cheiro. O mapa político da América, gratuitamente servindo-nos às ilhas do Caribe. O que ajudava muito a relaxar, ir à praia, fosse da Jamaica ou do outro lado do muro, de onde estava dava pra ouvir a ressaca. Pondo mais tranqüilo o professor de geografia. No seu primeiro dia de aula, conheceu sua turma de colegas. Entre estes a professora Jaciara que quando casasse iria ter um casal de filhos, e lhes poria os nomes de Ataualbe e Tábata. E se lhes nascesse mais um filho, seria por acidente. Se chamaria Isachar caso fosse homem, e Gioconda em homenagem a Leonardo Da Vinci se mulher fosse. E Joelma aluna do 6º ano ficaria a fim do novo professor, que ficaria mesmo a fim de Claudivania uma aluna do 7º que era comprometida, e que em breve iria casar. A Porto Calvo foram em excursão, visitaram a Casa da Cultura, assistiram uma apresentação folclórica, conheceram Calabar. Em Maragogi visitaram o museu, imaginaram-se vivendo naquela época. Estupefatos ao saber como sofreram seus antepassados, tendo a cor de pele que tinham. João estava entre eles. João nascera menino porem nunca, jamais se sentira menino, sempre se sentira menina. Depois da escola, com a molecada ganhava a Rua do Chafariz, por trás da Cadeia Pública na fonte ia banhar-se, e ver o sexo dos outros meninos, excitá-los,  excitar-se, abusarem-se a si mesmos. Uma vez tornado rapaz, teve namorados, conversou com sua mãe. Ela entendeu, não chorou, nem ficou triste. Aceitou-o como era. Amor de mãe era assim mesmo. “Meu menino.”

Menino Ventania
Chegaria intrépido, o carnaval dos coqueiros. Enfeitados, caiados, vestidos de cal pro festival do coqueiral. Frenéticas bandeirolas coloridas, estremecidas de luz, estupidamente azul. És verde, ando, esverdeando, tudo de mar. Entre acordes de trompetes, saxofones e tubas e percussionistas de bombos, caixas e taróis. E o violão, que aquela altura, era o que menos falava, se entregou. Ébrio, não tinha forças e garganta pra acompanhar os outros. Entre pó, maisena, cinzas e cerveja. De cansaço na calçada da ventania, desmaiaria ao lado córrego da água da Serra. E vinha depois de rodear o muro das casas de Seu Robinho, de Chama mãe de Nunes e Ademir, e da professora Belmira. Mas só depois de atravessar a rua, passar comportado no quintal da casa de Susana do velho Berto eletricista, das irmãs Eliúde, Sílvia e Sonia. Lá adiante o barro vermelho subindo a calçada na porta de Silvany, vizinha de Neide da Farmácia. Ainoã irmã de Aminadabe, menina boneca, olhar angélica, evangélica, na janela de pura poesia. A última parada havia sido no bar de Renê.  Ao abrir os olhos vislumbraria um céu desengomado, de nuvens de tanta alvura desidratadas, com cara de quaresma e jejum. De dentro do capim, batendo na cara, cheiro de oceano entrando pelas narinas. Se tivesse coragem de levantar a cabeça, veria o mar, àquela hora, ora sorumbático, bravio. A maré estava subindo, dali a pouco, por volta das seis da tarde, estaria arrotando bravura. Arrogância a desafiar baronesa, de ameaçar reinados de camarões, de siris Nemas, de siris moles, de caranguejos guaiamuns que andariam foram das tocas, para tanto bastaria trovejar.

E o menino ventania, não era apenas um, eram dois. Erick e Eduardo, filhos do Major Eurico e da professora Niedja Café.  Quando não tinha o que fazer, procuravam, e sempre encontravam. Escalavam os muros da casa das freiras pra pegar cajarana amarelinha, docinha de dar gosto. Fruta pão no alto do morro na propriedade de Seu Belinho, ex-prefeito. Jenipapo no quintal de Seu Gertulino. Carambola no pomar de Seu Givaldo. Jepeto, o pastor alemão do servidor público já os conhecia nem mais corria atrás. Outro dia inventaram uma brincadeira desavergonhada, de subirem no ônibus, junto com o menino vendedor de amendoim na hora que chegava de Maceió, na entrada da vila, no curtume. Pra irem até o fim da rua no bairro Salinas. Daí, cuspiam nos moleques que viam nas calçadas. Um dia chegaram ao cúmulo de colocar seus sexos pro lado de fora da janela do coletivo. No carnaval do coqueiral, outras diabruras, urinavam em copos descartáveis. Quando algum freguês ia banheiro, em surdina, substituíam na mesa, das barracas. E ficavam de longe se divertindo do fruto de suas traquinagens. 
     
Menino Vendaval
Naquele ano de eleição municipal, Isaias ganhou pra vereador. A prole longamente duplicada regozijou-se. Vislumbraram dias melhores. Dona Dulce costurava pra fora, pra melhorar a renda. Entre tantos filhos, mais de doze, tinha Ednaldo. Era um menino muito calado. Interessou-se pelos estudos, formou-se pro magistério. Professor Ednaldo sempre levava seus alunos para passear na praia. Ficavam horas olhando o movimento dos barcos, dos pescadores, às vezes com a bíblia na mão. Adquiriu os vícios do tabagismo e de álcool. Teve crises sérias, devido aos abusos. Um dia disse assim. “–Vejo pessoas que já morreram. Desencarnados me aparecem. Nada posso fazer para evitar. Isso vai além das minhas posses. Não entendo o que isso significa, nem quero entender. Falam comigo, acompanham-me pra todo lado aonde vou. Pedem-me conselhos, pedem pra resolver coisas do outro mundo das quais não tenho domínio nem noção de como resolver. Sofrem e fazem-me sofrer.” Um dia o professor largou tudo, se embrenhou na mata atlântica. Dias sem ninguém saber dele. Meses depois apareceu, outro homem, totalmente diferente, largara os vícios. Conhecera e casara com uma sertaneja. Sobre os espíritos que o perturbavam apenas disse que eles preferiam centros urbanos. Lá no sítio havia paz. Ia não ia apareciam continuavam vindo porem lá, era tão menos, e tão mais humildes. Menino vendaval virou roceiro, só vindo à vila pra pedir a benção a mãe, e matar a saudade do mar.

Fabio Campos