De repente lá estava a vila. Dois cordões de casas,
separados por um tapete de paralelos de pedras. Mosaicados de sol sempiterno.
Esteira bruta, de mãos cascudas brotada. A lápis cinzel e marreta
assimetricamente escrevinhada. Como cri-cri de grilos contumazes, no aço e no
granito forjado. Tudo, tudo, escrito a suor e sangue de um povo bravio, forte,
campesino. Sendo deles mesmos aquela história. Apesar da noite, dava pra ver
tudo, tudo mesmo. Casas, e almas viventes. Estrada de barro, carro de boi. Gradiente
de um tenor ofuscado de luz. Corda, couro, chocalho. Cocão cantador, idílio de
cachorro doido.
O ônibus devagar foi chegando, parando ao lado do portão da Escola. Abraçando
com a luz amarelada de seus faróis os que lá estavam. Estudantes, fardados,
mambembes, brincalhões avançavam. Mochila às costas, guerrilheiros indo pra uma
batalha que travavam contra eles mesmos, dali a pouco. Sempre haveria de ter a
serra. A dizer prefiro que se esqueçam de mim, esqueçam que existo, cuidem das
suas vidas (impossível imaginar a vila sem ela!). Cuidem das vidas das
criaturas que Deus pôs no mundo. A muito, desde a criação. E tanto já se havia
passado que o leito do riacho secou. Ninguém jamais iria pra um lugar tão
desolador apenas pra admirar o por do sol. Da progenia de Adão rebelados. Da filogenia
de Caim expulsos, do paraíso. Expurgados da presença do Senhor. Indo parar ali
eis por que se haviam. Vagaram vagabundos, pelo mundo.
Quando Raquel nasceu dona
mãezinha, a parteira tomou-se de espanto ao ver aquele pingo de gente do cabelinho
cor de ouro. Alvinha! De pele da cor do leite que sugava do peito da mãe, uma
cabocla mestiça. No seio daquela família já cinco irmãs a esperava: Leopoldina,
Isabel, Antonieta, Joaquina, e Tereza Cristina. Um pai chamado Pedro, uma mãe
Maria Francisca. Desde pequena demonstrara ser uma criatura diferente. Com seis
meses já queria dizer palavras, e engatinhava a casa toda. Agarrando-se nas
coisas firmava-se em pé, raramente chorava se levava tombos por mais
contundente fosse. A avó Amélia, por parte de mãe, também vivia naquela casa, e
dizia: “-Você já prestaram atenção? Que essa menina olha por baixo?” Pra velha
senhora aquilo tinha um significado não lá muito bom. Pessoas que serravam os
olhos, e endureciam o sobrolho pra olhar. Pra ela, essas pessoas tinham encosto
o que não era bom. Raquel passou mais de dois anos pra ser batizada. Seu
Benedito do Óleo, um negro velho benzedor, cansou de dar conselhos a comadre
Francisca pra batizá-la, o quanto antes. Porque um atraso de vida era a casa
que abrigava um pagão. As coisas (quando davam certo) vinham com muita
dificuldade. Menino pagão adoecia com uma facilidade medonha. Tinha os peitos
abertos. E as espinhelas caíam de palmo em palmo. Não adiantava reza, galho de
arruda, banho com Samba Caitá, sal grosso, alfazema. Profetizava: “-Que Deus a
livre! Se passar um vento cai de moléstia incurável, morre cedo. (-Pagão não
vai pro céu!) O que aconteceu com o único varão nascido de dona Francisca, devia
ter servido de exemplo.
Foi assim, dona Francisca achou
de ir uma novena no Sítio Vertedouro lá pras banda de Fazenda Nova. O bucho já
estava pela boca. E dona Chica bebeu pinga, muito vinho de jurubeba, fumou
cigarro branco. Na euforia, dançou e dançou. Deu de sentir uns desejos. Desejou
comer xin-xim de galinha, barro de louça e o fruto do mandacaru. Pedro teve que
ir fachear o fruto na caatinga noite à dentro. Encontrou uma caninana que não
tinha mais tamanho, devorando um cururu. Levou uma carreira duma raposa choca.
Ralou-se todinho numa touceira de facheiro. Pra completar quando rumaram pelo
caminho de casa, um fogo corredor lá na várzea do baixio foi botá-lo no
terreiro de casa. A lua cheia ia pelas alturas e dona Francisca fez uma coisa
que não devia. Com o indicador apontou pra lua. Era coisa que todos sabiam, mulheres grávidas
não podiam apontar pra lua cheia! Se nascesse vivo, o menino corria o risco de
ter seis dedos nas mãos, ou nos pés. Além do que sinha Chica havia pendurado a
chave de casa no pescoço, outra coisa que jamais devia ter feito, o menino
fatalmente nasceria com o lábio fendido, até uma das narinas. Não deu outra, a
criança, um menino nasceu de sete meses. O cordão umbilical preso ao pescoço
selou seu destino. Pedro nem chegou a vê-lo, foi enterrado pelos padrinhos na
cova da família do pai. O último a ser enterrado lá havia sido dona Genoveva, a
mãe de Pedro. As crianças que acompanharam o cortejo jogaram flores e terra até
cobrir o pequeno caixão. Criam que os anjos de Deus, vendo que por mãos de
inocentes fora enterrado viriam buscá-lo. Levariam pro lugar onde tinha um
campo verde, uma relva baixa, onde podia deitar e sonhar e brincar, debaixo dum
céu azul da cor do caixãozinho. Ali ficaria até o dia do julgamento.
Raquel era uma menina diferente,
mesmo crescendo-lhes os peitos e adquirindo pêlos na púbis continuava tomando
banho apenas de calcinha, junto com suas irmãs no riacho assoreado que lhes
cobriam apenas as coxas. Os meninos danavam-se a espiar, de longe se
masturbavam amoitados. Dos fundos da casa de Raquel dava pra ver o cemitério,
lá a margem da estrada invadindo o prado, parecia uma manada de Nelore
pastando. O muro baixo branquinho! Branquinho! Quando as coisas dentro de casa
ficavam muito pesadas, brigas entre seus pais, agressões verbais e físicas. Então
ia até lá. A desfrutar do silêncio, dos malmequeres, das andorinhas, beija-flores
e pardais. Cruzes e flores caladas, datadas e nomeadas. Tristemente mal pintadas,
catacumbas e covas cuscuz. Punha-se a observar as formigas que excursionavam
sobre o túmulo da vó Genoveva. Tinha em conta que (a terra já tivesse consumido
o corpo da vó) Fabiano seu irmão que não vingara, estaria debaixo do chão,
correndo dentro de túneis brincando com os ossos de vó Genoveva. Quando deu por si o dia tinha ido embora. Resolveu voltar, vez em quando olhando pra trás,
como que dando adeus ao irmãozinho. Naquela noite (muito triste se sentia, mesmo assim) foi pra escola.
Sem vontade de assistir as aulas. No banheiro feminino encontrou Rita de Cássia.
Rita percebeu que ela chorava. Perguntou-lhe o que tinha. Disse que estava triste, era seu aniversário
e ninguém na sua casa se lembrou da data. De repente Raquel segurou a amiga pelo rosto e
beijou-lhe na boca. Ar de espanto a menina desvencilhou-se ao tempo que limpava
a boca com as costas da mão. Pediu desculpas, pôs-se de cócoras e chorou.
Uma viatura do Pelotão de choque
na porta da sua casa, ao retornar da escola. As luzes vermelhas piscando sob o
teto. Tingiam de sangue as paredes das fachadas das casinhas acanhadas, a luz rodava
e rodava, transformando a rua num baile macabro e mudo. O qual não fora
convidada, ficou de longe olhando. Um turbilhão de sentimentos a invadir-lhe. Sisudo
o pai surgiu na porta, os pulsos unidos por um par de algemas. Abrindo caminho entre
os curiosos, foi conduzido ao camburão por um policial. Humilhante ver o pai
naquela situação. Queria que fosse um pesadelo do qual pudesse acordar a
qualquer momento. Não era.
Pedro fora preso porque uns
assaltantes de banco, pego pela polícia o denunciaram, pela venda de armas pra
o crime. Enquanto via seu pai sendo conduzido até a viatura, tantas coisas
vieram a mente. Pensou que teriam sido as brigas com sua mãe. Ou o haviam denunciado pelo consumo e venda de drogas, ele fumava maconha. Ou uma de
suas irmãs, pelos abusos sexuais sofrido. Até então só não havia tentado a ela, talvez
a respeitasse. Perdera a conta das vezes que dormira com uma faca debaixo do
travesseiro. Ai dele se inventasse de importuná-la.
Raquel
resolveu ir embora. O ônibus escolar se afastando do povoado. Se ia, levando
uma garota com uma mochila cheia de sonhos, o fone no ouvido a impedia de ouvir
o adeus de Fabiano na porta do cemitério. Seu destino: Maceió, morar na casa
duma tia no Canaã. O ônibus avançando na poeira, deixando pra trás uma mãe, cinco irmãs, uma escola, uma serra, um riacho. Se lançasse um último olhar,
veria uma menina de cabelos loiros segurando uma boneca, acenando da porta de
casa.
Fabio Campos