Na rua que um dia existiu, meninos
brincavam. Corriam em suas bicicletas. Na praça brincavam, e pressa não tinha.
O céu de nuvens chuvosas, dizendo cinza, e vinham. O que do alto estava
prometido pra vir, decerto viria. E, os sonhos todos dos homens. Muitos deles,
jamais se concretizariam.
Debaixo do calçamento das ruas, nos recônditos dos becos escuros. Alegrias que
um dia alguém sonhou, se escondiam. Brincadeiras de crianças, que bem fundo o
mundo sepultou. Muito abaixo dos paralelepípedos jaziam. Lá aonde as cigarras dormiam
seus sonos letárgicos, a esperarem a outra estação, e só então cantariam.
A Taberna ficava de esquina. Pelo
menos dois séculos de distância separava a aldeia, dos meninos das bicicletas. O
balcão de madeira escura. Com o tempo daquele jeito, ainda mais escura se fazia.
A faca e o queijo branco no prato. Uma taça de vinho tinto, não deixava dúvida,
tudo estava lá. O candelabro pendido do teto. Um par de olhos verdes conseguia
sentir aquele cheiro. O estampido da rolha ao ser tirada do gargalo tinha solene
importância. Pulmões inalando, cérebro incendiando, com a chegada do líquido de
cor púrpura ao estômago. Na primeira porta que dá pra rua, o homem com vestes de
alguém que viera das arábias, se havia. Um turbante escondia a cabeleira
valorizando ainda mais o vasto bigode. Uma adaga na faixa de pano da cintura. Tagor
Fashall tinha um cavalo chamado Pompadour. Havia deixado com um cuidador, no
estaleiro do cais do porto. Olhava fixo. Fosse o que fosse, olhava fixo. Aquele
era olhar, de quem procurava. A aldeia de Étole Chavalier amanhecera com um
habitante vivo, a menos. O pai de Émile Passion o ferreiro da aldeia, tinha
sido morto. Uma semana antes Morion Lucindo recebera a visita de seu sobrinho
Rafael Bertrand, que teria ido buscar um elmo, a muito encomendado. Conversaram
sobre uma herança de família. O jovem com
o tio confabulou sobre os papeis de um lote de terras pertencente a seus pais
já falecidos. Porem não teve resposta a contento. O tio apenas contou-lhe uma
história, na verdade uma fábula. O rapaz teria ido embora, e no outro dia o
ferreiro estava morto. A presença de Tagor na aldeia por ser estrangeiro, levantou suspeita. Ainda mais era provável que tivesse estado na
estribaria de Morion Lucindo.
A fábula que o velho ferrageiro
contou foi esta: “Meu querido sobrinho, de longe tenho acompanhado a vida que
tu tens levado desde nascido até agora. Muito triste fiquei ao saber que ao
adquirir a juventude abandonastes a vida do campo, em que vivia com seus pais,
e teus outros dois irmãos. Fostes habitar um principado onde o luxo, as posses
e a riqueza acima dos valores morais sempre foram colocados. Ali nunca
o valor que um homem realmente tem, nunca se dera. Ainda mais se somente virtudes tivesse por posse.
O que tenho a dizer-te sobre as terras pertencentes a teu pai, é o que um
nômade árabe certo dia contou-me bem aqui sentado nesse banco, disse-me: Um
velho lavrador tinha três filhos. Após ficar gravemente enfermo e sentindo que
iria morrer, chamou os dois filhos que nunca o abandonara a cabeceira de sua
cama, assim lhes falou: -Meus queridos filhos, sinto a morte rondando os meus
dias. Teu irmão vaidoso que um dia partiu, nunca voltou. Jamais mandou notícia
alguma, nem sei do seu paradeiro. Quero dizer que toda fortuna que possuo e que
deixarei por herança a ser repartida em parte iguais, são estas terras, que
herdei dos meus pais, e que, espero continuem a cultivá-las. Quando vocês eram
pequenos, de muito longe, veio a mim, um mago que atendia pelo nome de Tagor
Fashall disse-me que com essas terras teve um sonho. No seu sonho via, a dois pés de profundidade, em algum lugar que
não soube determinar onde, havia um tesouro enterrado. Desde então pus-me a
procurar. Não tive a sorte de encontrá-lo, porem espero que vocês continuem
cultivando-as, porque o tesouro é encantado. E poderá surgir num lugar onde eu
mesmo já devo até ter cavado, sem lograr êxito.”
Tagor Fashall queria muito entender
porque o fato de olhar pra aquela senhora da sombrinha causava-lhe certa
comoção. Talvez muito lhe trouxesse, fortes recordações. Sentia que isso lhes vinha.
Aquela mulher de vestido longo, passeando na praça. Um penteado suntuoso que
lembrava Pompadur. Debaixo duma sobrinha branca de belos bordados, tão graciosa.
Enquanto ia o calendário, andando pelo menos dois séculos para trás. E aquela tarde
que até então parecia desarmada de graça, vindo a moça da sombrinha, mudou tudo.
Três meninos iam andando de bicicleta. Joana Antonieta nascera menina pobre,
num bairro afastado da cidade, perto da igreja de Santo Eustáquio. Vivia-se uma
das maiores crise de recessão, os governos indo a banca rota. Quebrados não viam outra saída a não ser aumentarem os impostos. Os campos rurais enfrentavam uma de
suas maiores crises climáticas, e com isso o desabastecimento. Senhora Luiza Madalena
mãe de Antonieta viuvara. Pra não morrer de fome, fugira do campo indo viver de
bicos na periferia da cidade. A língua da rua falava de sua modesta casa, virada em casa de prostituição. Muitos homens, alguns influentes outros nem tanto,
estariam ligados ao seu nome. O estilo de vida da madame não condizia com a
presença duma criança carecendo de ser criada e educada nos princípios da fé
cristã. E Joana Antonieta foi mandada para um ambiente mais saudável. Foi
enviada para um Internato das Irmãs Ursulinas, a pouco mais de seis quilômetros
da capital, tida e conhecida como “Terra das Águas”.
A menina por toda sua
infância permaneceu lá. Devido a doenças a que tivera na primeira infância. Por não ter sido amamentada sua saúde inspirava cuidados.
Quando completou quinze anos de idade teve uma pneumonia que quase lhe tirou a
vida. Passou seis semanas de cama. Quando se recuperou, por direito, foi
visitar sua mãe. Encantada ao ver em que havia se transformado
sua pequena Antonieta. Uma moça de muito encanto, de beleza incomum para
as moças de sua época. O olhar sagaz, de quem entendia a vida, de
quem já sofrera. Alguém de coragem e ambição. De não se deixar abater com qualquer
derrota, e inteligente o suficiente pra não se deixar enganar facilmente.
Alguém que entendia e encarava o mundo como algo imprevisível, e perigoso.
Três meninos de bonés bufante, em
sóbrias bicicletas negras, pedalavam na praça. Sobre selins de couro,
suplantados em molas. Enormes guidões niquelados, abruptamente arqueados, pneumáticos
de aros enormes. Tagor Fashall noutra dimensão buscava uma propriedade
pertencente a seu tio, na verdade uma ilha. Estivera na vila para adquirir
mantimento, conversar com pessoas, quem sabe fazer amizades. Joane Antonieta sentia sobre si o olhar daquele homem, e indo graciosamente ia. O intendente deu
ordem a um guarda que levou intimação para que o árabe imediatamente
comparecesse a cadeia pública. Depois de interrogatório acabou preso, acusado
de suspeito de matar o ferreiro. Fashall até entendia que o fato de ser
estrangeiro, ainda que só estivesse estado na estrebaria do ferreiro num remoto passado, colocava-o na condição de
suspeito. Não achava justo, no entanto, ser acusado de matar um homem a quem
jamais vira no dia do assassinato, além do que, motivo algum teria para cometer tal crime. Acontece
que Rafael Bertrand teve a ideia dum álibi perfeito, ao perceber o quanto o
forasteiro tinha de semelhança física com ele, algumas pessoas viram quando entrou na estrebaria.
Horas depois, o ferreiro fora encontrado morto. Émile Passion a filha do
ferreiro foi chamada para depor, e no seu depoimento confirmou que seu pai
tinha, no dia do sinistro, recebido a visita de um rapaz com as características
daquele homem. Tudo estava levando para a incriminação do árabe.
Eis que chegou o dia de seu
julgamento. Em praça pública ocorriam julgamentos, e em caso de condenação, execução
na mesma hora, por enforcamento. Nesse dia compareceram o juiz da comarca, o
sacerdote, e o intendente. O algoz com sua carapuça. E os meninos brincavam alheios
aquele acontecimento, mesmo porque nem estavam àquela época. Joane Antonieta pediu a palavra. Inquiriu ao
juiz se ele olhando para a praça conseguia ver três meninos de veste
engraçadas, andando em suas geringonças de ferro. Como resposta ouviu uma
negativa. Acontece que Antonieta sabia que o juiz, assim como todo o público
ali presente, estavam todos tendo uma visão. O magistrado mantinha um caso, com a mulher do
intendente. Os meninos mesmos certa vez, viram quando o juiz entrara pela
janela do jardim na calada da noite. Cuja sacada era guarnecida por um
parreiral. E Joane questionou ao magistrado: -Àqueles meninos a quem o
meritíssimo doutor juiz de Direito, diz não estar enxergando. Podem eles
serem acusados de roubar uvas do parreiral do jardim do intendente? Se alguém
não tiver visto tal crime ser cometido? Todos os presentes ficaram admirados do que
viam e ouviam. O juiz entendeu que acabava de cair numa cilada. E não viu alternativa outra
a não ser inocentar Tagor Fashall.
Fabio Campos 26 de maio de 2015
(Continua, na próxima semana...)