Essa é história de pessoas pacatas. De gente ordeira e simples. Dum lugar tão conhecido da gente que achamos até, que é aquele em que um dia vivemos. Aquele singelo lugar que nos viu criança. Mas o mundo deu muita volta. E nas voltas que o mundo deu, muita coisa aconteceu. Coisas que jamais se imaginaria que pudesse acontecer. E quando vem de quem menos esperamos? Pra esse tipo de coisa, Seu Doroteu que não era homem de muita conversa, tinha sempre uma frase pai d’égua: “É assim mesmo. De onde menos se espera é que sai.”
Ô bicho danado mode gostar de magoar coração é o rádio. Lá de dentro dele vinha à voz mansa de Nestor e Nestorzinho, cantando a mais nova moda sertaneja.
“O joão-de-barro
pra ser feliz como eu
Certo dia resolveu
Arranjar uma companheira
No vai e vem com o barro da biquinha
Ele fez uma casinha
Lá no galho da paineira”
Ô bicho danado mode gostar de magoar coração é o rádio. Lá de dentro dele vinha à voz mansa de Nestor e Nestorzinho, cantando a mais nova moda sertaneja.
“O joão-de-barro
pra ser feliz como eu
Certo dia resolveu
Arranjar uma companheira
No vai e vem com o barro da biquinha
Ele fez uma casinha
Lá no galho da paineira”
Melhor mesmo é começar do começo. Se é que se possa chamar de começo, uma tarde de janeiro daqueles bem antigos, que as pessoas vestiam roupas feitas de siroco, organdi e cambraia. E o mundo, e tudo o que os homens já haviam inventado, apesar da cara um tanto ingênua, já andava até bem taludinho pra andar fazendo besteira. O lugar a que nos referimos, ficava bem na garganta semiárida do sertão. Donde soavam trovões cujos estrondos acabavam produzindo um zumbido, quem sabe um sinal de comunicação, que os ouvidos humanos, e as mentes talvez ainda não conseguissem decifrar nem entender o significado. Por puro instinto de sobrevivência os saguis buscariam os ocos dos paus. Os peixes Cará ressuscitavam do lombo dos açudes vindo nervosos futucar as costelas das enchentes. Ameaçavam sair d’água tanta era a tormenta. As tartarugas às profundezas das mornas águas do oceano se sentiam protegidas, nada ouviam. Um polvo gigante emergia toda noite de lua cheia. Sendo que em dias como aquele, jamais apareceria. Diferente dos crustáceos que de tão excitados se vomitavam dos seus refúgios, nos invólucros samurais dando início a um ritual dantesco de acasalamento. Tão distante daquela outra realidade. Tudo isso era tão somente pra dizer que os tempos de trovoadas no sertão e no beiço da praia eram bem distintos.
“Toda manhã o pedreiro da floresta
Cantava fazendo festa
Pra’quela que tanto amava
Mas quando ele ia buscar o raminho
Para construir seu ninho
O seu amor lhe enganava”
Dona Maria e Seu João moravam no cimo da Serra do Gavião. A ave tão presente ali emprestara seu nome àquela elevação rochosa. Toda segunda-feira era dia de ir pra feira livre na grande vila. De manhã bem cedinho, nem tinha ainda clareado nem esquentado o sol. E botava o pé na estrada. Levavam farinha de massa puba e beiju pra vender. Num fogareiro rude feito de barro, num pedaço de zinco polido faziam tapiocas. Quentinha na hora, bem ao agrado da freguesia. A barraca coberta com empanada de saco de açúcar limpinho de fazer gosto, tudo branquinho e cheiroso. Ficava bem próximo a igreja matriz de Santo Antônio. As mulas ficavam amarradas em terreno baldio próximo a barbearia de Seu Doroteu. Na casa de dona Amália iam pra tomar um café de caco, adoçado com tacos de rapadura. Teve um dia que dona Maria acabou perdendo uma colar de ouro. Foi assim, ela deixava seu João vendendo tapioca na barraca e ia procurar um sapateiro por nome Jaime, os dois se encontravam, pra manterem um caso amoroso. Acoitado por Zefinha que pegava os meninos pequenos nos braços e saía de casa, se danava pra feira. Ganhava um tostão pra iscruvitiar e deixar a casa livre pros amantes. Ficava um tempão na cozinha de dona Amália, baforando num cachimbo, que era pra dar tempo do casal de adúlteros se entregarem ao sexo pecaminoso. Acontecesse que quando dona Maria da Tapioca foi passar debaixo do arame o colar, um cordão de ouro que ela trazia pendurado no pescoço enganchou no arame, se partiu e caiu ali mesmo. Sem que ela percebesse, pois se entreteu se benzendo, botando cuidado pra que ninguém testemunhasse seu ato. Uma menina por nome Dália, todos os dias passava aquele arame bem naquele mesmo lugar. Depois de buscar o leite tirado da vaquinha Mimosa, foi quem acabou achando a joia. Com a pindureza no pescoço chegou em casa, dona Amália deu logo fé e quis saber donde procedia o tal objeto. Prontamente a menina disse direitinho, onde e como havia achado. Zefinha fez de conta que nem ouviu. Como diria Seu Doroteu: “Fez boca de siri. Bico calado, boca piu!” Somente quando chegou em casa dona Maria deu por falta do colar.
"Mas nesse mundo o mal feito é descoberto
João-de-barro viu de perto
Sua esperança perdida
Cego de dor trancou a porta da morada
Deixando lá sua amada
Presa pro resto da vida”
O farmacêutico Moreninho estava sentado na calçada da delegacia conversando com Seu Pita, Jerson, Batista e o delegado Matias. Nisso ia passando um menino com um alçapão cheio de passarinho, pra vender na feira. Seu Pita quis saber que espécies havia na ínfima gaiola. “-Dois Papa-Capim, três galo de campina, um joão-de-barro. O boticário cheio de dó das aves disse que pagava um tostão pro menino soltar tudinho ali mesmo. Não conseguiu obter êxito nesse comércio. Foi-se o menino. Enquanto o charlatão ponderou: “-João-de-barro é passarinho sabido. Faz sua morada mas não trabalha dia de domingo e dia santo. As penas vermelhas na cauda é porque pousou na cruz de Jesus Cristo. Passarinho construtor de fornos é isso o que significa seu nome. Ave trabalhadora e inteligente. Seu canto se assemelha uma leve e espontânea gargalhada. Lá no sul seu canto é tido como sinal de bom tempo que se aproxima Dependendo da região é conhecido também como barreiro, joão-barreiro, maria-barreira, amassa-barro, joaninha-de-barro, sabiazinho, forneiro, pedreiro, oleiro, na Argentina “horneiro”. Mas sua maior marca mesmo e fazer seu ninho com a entrada contrária à vinda da chuva. Se ameaçado por uma cobra lutará para salvar seu ninho.”
“Que semelhança marcando meu calendário
Só que eu fiz o contrário
Do que o joão-de-barro fez
Nosso Senhor me deu calma nessa hora
A ingrata eu pus pra fora
Onde anda eu não sei”
Segunda-feira de manhã, os mascates se organizavam ainda, ocupando aos poucos os espaços das vias públicas pra iniciar a feira, após a missa, antes da benção final, o padre Bulhões avisou da perda do cordão de ouro de dona Maria. E quem encontrasse e devolvesse seria bem gratificado. O colar devia ser levado até a pensão de Seu Pizeca que daria a gratificação de um conto de réis. A peça de estimação era ouro dezoito quilates. Dália estava na igreja com sua mãe e saiu dali direitinho pra pensão de Seu Pizeca. “Coisa ruim nunca vem solteira, vem sempre acompanhada.” Assim disse Seu Doroteu quando soube que o filho de dona Maria Tapioqueira levou uma queda dum cavalo e quebrou uma perna, por um bom tempo ia andar de muletas. E não fazia um mês que Seu João tinha sido roubado numa pareia de boi de arado. Houve quem dissesse que eles tinham mesmo era mau-olhando, olho gordo. Era muita inveja que o povo botava em quem prosperava a olhos vistos. Seu Doroteu era um homem temente a Deus, devoto de padre Ciço do Juazeiro, só se confessava com frei Damião. Um filho pequeno, ou neto deitado no chão, proibia severamente que alguém passasse por cima, pois considerava xingamento. Armar guarda-chuva dentro de casa, nem pensar atrasava o crescimento das crianças. Calçado emborcado? Era escarnecimento pros pais. Xingar o redemoinho era pedir castigo pra lavoura. E dizia “Cumpade mais cumade vira fogo corredor!” “Enquanto o bem retarda, o mal chega a galope!” De Seu Doroteu era também esse predito: “Tudo de ruim que está pra acontecer já está escrito. No livro do cão escrito.” Nas profundas dos infernos. É lá que as coisas ruins são planejadas, na assembleia dos demônios. O tinhoso tinha mesmo, só o trabalho de encontrar, as mãos certas, pra cumprir o que precisava ser feito.
“Samba crioula que vem da Bahia
Pega a criança e joga na Bacia
A bacia é de ouro ariada com Sabão"
Dália com as outras meninas brincava. Dona Maria sempre que a via, lhe sorria, lhe acenava e lhe agradava com doces. Seu Moreninho continuava: “O João-de Barro é uma ave graciosa. Mede entre 18 e 20 centímetros de comprimento. Não passando de 49 gramas de peso. Trás o dorso marrom avermelhado. Sobre os olhos se desenha uma suave sobrancelha, formada por penas mas claras, em leve contraste com o restante da plumagem da cabeça. As penas das asas são anegradas, ainda mais destacada durante o voo. O ventre de coloração clara, sendo o papo e o pescoço branco. A cauda destaca-se pela tonalidade avermelhada ventral e dorsalmente. Não gosta de se afastar muito do local onde mora. Ave dócil se deixando ser observada e mesmo a aproximação de uma pessoa que pode chegar a poucos metros de distância sem que o joão-de-barro voe. Quando não está empoleirada próximo a sua casa, é comum vê-la descer ao solo. Ali passa boa parte de seu tempo caminhando, alternando pequenas corridas com passadas mais devagar.”
“E depois de ariada vai lavar o seu Roupão
Seu roupão é de seda sedinha de Filó
Cada um pegue seu par e vá dar a benção a sua vó
A Benção Vovó! A Benção vovó!”
Jaime e Maria Tapioqueira já a algum tempo, passaram a se encontrar no próprio leito conjugal da amante. A casa de Zefinha tornara-se imprópria para os encontros amorosos. Na croa da serra do Gavião livre dos olhares maldosos se amavam. Pra chegar até lá tinha que se vencer uma subida íngreme. Enfrentar uma mata de caatinga densa e sombria. Uma vez dentro da mata o tempo fechava, parecia sempre que ia chover. Mesmo que lá no aceiro o sol alumiasse o mundo todo com sua potente claridão. No oco da mata era quase breu. De fazer medo aquele silêncio de assovios inquisidores, e olhos selvagens nunca acusadores, mas que só quem via é que sentia.
Um dia de segunda-feira Seu João se ajeitou pra descer pra rua, ajeitou as mulas com farinha pra vir pra feira. Dona Maria ainda estava no quarto se arrumando. Ele saiu e trancou a porta de chave. Ficou um tempão sentado do lado de fora. dona Maria começou a chamar a abrir a porta pra que pudessem ir. E ele lá calado, não batia nem as pestanas. A serra já estava impaciente com a aquela mulher implorando pro homem abrir a porta. E nada. A mata, somente a mata escutava seus pedidos, sua súplica. E caiu a noite. Duma fogueira que havia acendido Seu João tirou um tição. Com a força que somente o ódio pode dar atirou sobre o telhado do casebre. A medida que se afastava mais longe os gritos iam ficando. Cada vez mais longe. Até cessarem, debaixo das cinzas, dos escombros, e do orvalho da madrugada, na serra do gavião.
Fabio Campos 29 de julho de 2015