RETRATO NA CADEIRA (Minha Vida - Lulu Santos)


Uma nuvem caminhando sozinha do lado mais azul do céu, mais uma tarde se fez. Um lírio despencou do talo, feito uma lágrima branca, e era aquela mesma tarde. Uma mãe sentada na cadeira na porta de casa, e mais tarde ainda ficou aquela tarde. Uma que era filha veio vindo. Pediu a benção, beijou-lhe a testa. Sentou noutra cadeira. Acendeu um cigarro, folheou um álbum de fotografias, e sorriu, a tia que estava no retrato, continuava séria. Muito bem disfarçada a cicatriz no supercílio direito que desde muito estava lá. "Tua tia queria ser cantora.Tenho saudade de minha mãe.” Disse a primeira. Olhando pras bandas de onde ficava a terra natal disse isso. Como se o céu pudesse trazer o passado, e ficou triste. Não apenas a que disse, mas tudo em redor ficou triste.

“Quando eu era pequeno
Eu achava a vida chata
Como não devia ser
Os garotos da escola
Só a fim de jogar bola
E eu querendo ir tocar guitarra na tevê”



A igrejinha, os degraus, alvo querubim no alto do portal, a santa no altar. O negro badalo, sisudo, sisudamente atrepado lá em cima. Tudo como estava daquele jeito, trazia pra acolá a casa materna. A buscar tristes recordações, os olhos se enchiam de lágrimas. Lembranças das discussões acirradas de tio Enéas e tio João Doroteu. Um era crente, o outro católico. Se pudesse não ouvia aquela arenga. Vontade dava era de sumir. Tio Manoel ensaiando seus cânticos pros velórios. Cantos tão penosos. Acompanhava-o vô Antônio com sua rabeca “a porca cochicha”, Um riso morno chegou aos lábios, por ternos segundos virou sorriso. Tio Pedro sentado num tamborete perto da janela porque depois duma xícara de café, acendia o cigarro de fumo picado. As baforadas e as cusparadas defenestradas, umas pelas janelas, e outras por cima da folha da porta. O cheiro de pinha vindo da dispensa. Abóboras e pinhas amadurecendo dentro dum balaio, adoçando as ventas dos curiosos. Em cima da mesa uma travessa cheia de goiabas tão amareladas guarida dos mosquitos, fedidas a bufas de bebê. 

“Aí veio a adolescência
E pintou a diferença
foi difícil esquecer
a garota mais bonita
também era a mais rica
me fazia de escravo do seu bel-prazer”



Osvalinda e Aucantina iam pra igreja. Esta de cá carinhosamente Tinô. Tinha por obrigação toda tarde ir as duas pra igreja. Por vezes ia Dália. As três, às três da tarde de joelhos, véu sobre a cabeça, rosário nas mãos, rezavam a ladainha, o terço da Divina Misericórdia. Uma vela acesa penitência encomendada por madrinha Amália.  A bancada em verniz preto, o apoio dos braços marcado de pingos de parafina recrudescidos. O sacrário ladeado de imagens de dois anjos segurando luminárias, as asas subindo suavemente, olhar de quem guarnecia serenamente. A imagem de Cristo o lado transpassado pela lança, ombros esfacelados, joelhos em carne viva, na iminência do sangue gotejar nos alvos panos do altar. Sagrado altar esmeradamente forrado da cor das tapiocas de dona Faustina. Santo Antônio com seu rosto de anjo segurando no colo outro menino. A moeda colocada no cofre da igreja. O trinco da bolsa fazia um barulhinho engraçado quando fechava. Um dia, André filho de dona Mirian foi pra missa, levou um cruzeiro pra por na cesta de coleta. Só que ao invés de colocar o peralta tirou foi mais um. Pra completar o ingresso da sessão de cinema: “Noites Cariocas” com Oscarito, somente naquela noite, no salão do açougue. Andrezinho bronca tão séria levou do padre e bastava ver um menino se aproximar da urna de doações que arregalava os olhos. E de longe, com medo de se aproximar avisava aos berros pra ter cuidado que “A alma de meninos eram  sugadas pelo cofre do padre!” E que a noite ao pé da cama, na hora de rezar, daria pra ouvir o gemido das pobres pedindo pra alguém tirá-las de lá dentro.

“Quando eu saí de casa
Minha mãe me disse: Baby
Você vai se arrepender



E lá iam às duas irmãs, sem pressa, pela estrada seguindo. Acima de tudo felizes. Os vestidos alvos caçoavam das nuvens, acenavam ao vento. No rosto, diáfano pó de arroz, no penteado belo broche, um chapéu gracioso. Tudo que era dito, um dia teria sido realmente. A mãe se segurando pra não chorar. Chorava porem as palavras. E era como uma cortina feita de polissílabos que no eco plasmavam flutuantes. Talvez fosse mais fácil dizer silêncio. O mundo porem teimava em ser repleto de azul. Cheio de saudade. Estupidamente caduco de lembranças que instigavam os sentidos, a flor da pele. Causando um frio que casaco nenhum conseguiria aplacar. E as coisas todas como se estivesse esperando os relógios envelhecessem as horas, e era como se toda dor que não devia ter sobrevivido voltasse, irremediavelmente. O amarelo das goiabas querendo adultamente ser laranja; o lilás detestando ser roxo; o púrpura despudoradamente sendo violeta fruto do mandacaru.  O colo esperando um rosto amigo pra repousar, mas quem sabe, jamais viria. A iminência de coisas muito sérias novamente voltando a acontecer, coisas que tiveram gosto de faca cortando, lânguido igual babão da jaca mole, o liga do leite de labirinto. Cheiro velho, de ninho de passarinho. Gosto de água de pote na boca. Os homens um dia se foram, e caminhavam sem olhar pra trás, muito sérios iam. Só Deus sabe tão sérios aonde queriam chegar. A vila inteira, os feirantes, os meninos, o açougueiro, o tabelião, o delegado, a professora. Dentro de um azul triscado de preto, em câmara lenta seguiam, procissão dos iludidos. Menos o padre Bulhões que tinha ido pro sítio Gameleiro encomendar uma alma, e o farmacêutico Moreninho, fora até a fazenda de Zé Roque aplicar uma injeção contra Cornage, um mal de cavalo que fazia assobiar forte ao respirar. Compromisso nenhum do que foi dito, tinha com a história que ainda estava pra acontecer. Talvez o esperado nunca fosse realmente contado.

Pois o mundo lá fora
Num segundo te devora
Dito e feito
Mas eu não dei o braço a torcer”



Padrinho Pizeca tinha uma tosse crônica que piorava com o cair de tarde, tão fria quanto àquela. Lá do quintal dava pra ouvir a pulmoneira que começava pouquinha e acabava em crise. Dona Amélia fazia um chá de hortelã com mastruz que aliviava, só não podia tomar muito, pois era muito forte. Enéas mais Seu Esaú foram cubar uma terra de Seu Tonico Ambrósio que seria repartida em herança, parte seria vendida pelos filhos, a Seu Pedro Vieira. Tinha uma semana pra mandar destocar quando viriam as chuvas de inverno atrasado. As chuvas arrastaria o barro e tudo ficaria nuzinho, os tocos queimados ponteariam sobre a terra. O imbuá caminhando, a tanajura zumbindo na cumieira da serra. A sementeira quietinha dormindo, aguardava esperando o momento certo depois de covar, desarcordar debaixo do chão. Negro Bongo dera pra andar com Casteado. pense duas peças lorde! Boa coisa os dois não andavam aprontando no oitão do mundo. Pegaram uma encrenca com dona Terezinha por conta duma gamela. Foram dar comida pros porcos, o jumento pisou dentro do cocho que se partiu em dois pedaços. Pense no fuzuê que a mulher fez. Botou os dois pra correr debaixo de chicote.

“Hoje eu vendo sonhos
Ilusões de romance
Te toco minha vida
Por um troco qualquer”


Anacleto filho de dona Ciça todo dia ia pegar passarinho nos cafundós dos Judas. Os cafundós das redondezas eram as propriedades de Seu Arnóbio e Seu Canuto. Dona Ciça desde cedo, metia o pau a gritar pelos meninos “Anacleto! Diógenes!” Pra irem apartar os bezerros das vacas no curral. Os pestes se largavam no oco do mundo. Dona Ciça coitada, sozinha ia fazer o serviço levando Benezinho o mais novo, arreganhado na cintura. Comadre Dorinha encomendou um braço de milho seco a Seu Tobias. O homem achou de mandar justo nêgo Bongo pra quebrar esse milho que ainda estava na roça. Era pras galinhas poedeiras de tio Doroteu. Quando alguma estava choca botava pra deitar atrás da porta da dispensa. Toda vez que tinha que ia buscar uma cuia de feijão, era zoada doida. Zé Candinho tinha uma queda danada pelas modernidades. No meio da feira comprou um peste dum rádio. Ligava numa bateria velha e tinha um monte de arame que ia pra debaixo do chão por cima da casa. Sintonizava a rádio clube de Pernambuco, que tocava música de Inezita Barroso e "Irmãs Galvão" que as filhas de dona Amália imitavam tão bem. Os meninos tinha uma história de ir tomar banho no açude de Seu João Lola que queria ver o cão, mas menino lá dentro nem ver. Mas se um dia é da guariba o outro é do caçador. Aí o can-cão piou! Munido duma “soca-tempêro” o velho mandou chumbo. O tiro cobriu e foi menino correndo pra todo lado. Sóstenes, Maurílio desembestaram pelas capoeiras. Fernando, “Titico” e Dorival sumiram na catingueira. Era nêgo se ralando nos rasga-beiço, nas urtigas, as roupas e os chinelos deixando pra trás. Temístocles pegou a vereda, não viu o colchete lascou-se em cima dos fios de arame foi um rasgão que uma orelha pendurou, quase aparta da cabeça. Cléster outro que levou azar subiu num pé de jaqueira tinha um enxame de abelhas, levou ferroadas na cabeça, rosto e pescoço, teve febre, frio e dor de cabeça. Por um bom tempo os pássaros e bichos daquelas bandas teve sossego.

“É o que chama de destino
E eu não vou lutar com isso
Que seja assim enquanto é”


Dona Zefinha ria pra se acabar das doidices de Emília. Falava de tudo, achava extravagante quem comprava muita roupa. E Dália entendia tudo, punha Francisco no braço e ia embora. Mal criada Emília um dia levantou a mão pra bater em dona Neném. O filho não gostou nada disso. Seu Antônio fumava cachimbo no alpendre. Depois dos setenta teve catarata e glaucoma ficou cego. Otacílio a tarde aparecia na casa de Abdon pra contar histórias do tempo de Lampião. Os dois lembravam da seca de 32. E começavam uma discussão sobre qual tinha sido o ano realmente, se 32 ou 36. Lembrou que era o povo caindo pelas calçadas pedindo alguma coisa pra comer. Cena parecida com a peste negra que assolou a Europa. O povo se trancava dentro de casa com medo da fome. A seca de 70 essa ninguém nem sonhava que um dia estaria marcada pra vir.
“Hoje eu vendo sonhos
Ilusões de romance
E troco a minha vida
Por um troco qualquer”


Dália se lembrou do dia de seu casamento. O noivo contratou um sanfoneiro que começou a tocar duas da tarde, e puxou pro meio dia do dia seguinte. Lembrou que ficou sentada na cama, o pai lá na cozinha chorou. O noivo chegou pra dar um beijo, não permitiu, teve vergonha. Quis que o casamento fosse em casa. Pois soube que a igreja estava cheia de curiosos só pra ver como ficariam os noivos. No dia seguinte vieram pra Santana no carro de Seu Dota chofer contratado especialmente para aquela ocasião. O Panema estava em toda largura teve que atravessar de canoa, empreitada nada fácil. Quando Francisco nasceu dona Amália veio passar os dias do resguardo com a filha. Voltando pra infância lembrou que teve asma quando e Seu Moreninho receitou três injeções tomaria duas, e ficaria boa. Moreninho perguntou se a menina guardava mágoa por conta do fuzuê que fizera quando levou um capão pro padrinho Pizeca na semana santa. Não ficara. A irmã na foto, o cabelo derramado pelas espáduas cobertas pela blusa de manga bufante. Tão bonita, tão séria. Para sempre no álbum de fotografias ficaria. A cicatriz no rosto, um corte de caco de pires de quando criança tomava café. Irrequieta derrubou a xícara e caiu. Dona Amália tratou da ferida. Seu Doroteu todo dia. Longe, muito longe ia buscar um pote d’água, saía madrugada e só chegava altas horas da noite. 
“Mãe me dá um tostão? A senhora tem tanto dinheiro..." "Pra que quer um tostão menina?" "Eu queria tanto tirar um retrato.”


Fabio Campos 26 de Agosto de 2015

UMA VEZ QUATRO (Tempos Modernos - Lulu Santos)


“Eu vejo a vida melhor no futuro 
Eu vejo isso por cima de um muro 
De hipocrisia que insiste em nos rodear” 

Elemento Água. Era uma vez quatro jovens: Pedro, Moisés, Jonas e Samara. Teve cada um deles em algum momento da vida, um episódio relacionado com água. E se a gente associá-los a personagens bíblicos de igual prenome, aí tudo parecerá ainda mais claro. Disse Pedro “Se és tu, manda-me ir ao teu encontro por sobre as águas. Venha. Respondeu ele. Então Pedro saiu do barco, andou sobre as águas e foi na direção de Jesus. Mas quando reparou no vento, ficou com medo e, começou a afundar, gritou: Senhor! Salva-me! Imediatamente Jesus estendeu a mão e o segurou. E disse: Homem de pouca fé, por que você duvidou? Quando entraram no barco o vento cessou. Mt 14-29,32”; “Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em seco e as águas foram partidas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em seco; e as águas foram-lhes como muro à sua direita e à sua esquerda. Êxodo 14-22,27” “E levantaram a Jonas, e o lançaram ao mar, e cessou o mar de sua fúria. Temeram, pois, estes homens ao Senhor com grande temor; e ofereceram sacrifício ao Senhor, e fizeram. Preparou, pois, o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas; e esteve Jonas três dias e três noites nas entranhas do peixe. Jonas 1- 15,17”; “Veio uma mulher de Samaria tirar água. Disse-lhe Jesus; Dá-me de beber. Disse-lhe, pois a mulher samaritana; Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (porque os judeus não se comunicavam com os samaritanos) Jesus respondeu: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Jo 4-7,9” Porém era tarde e lá estavam os quatro na beira do “Panema”. Pedro munido de vara, anzol e uma lata cheia de gogo, pescava piaba. Dali a pouco estaria na porta do mercado, tentando vender seu pescado porque era quarta-feira. Jonas tomava banho, pra tirar o barro que grudara no corpo, enquanto o seu carrinho de mão na beira do rio aguardava o dono que breve voltaria pras ruas pros fretes na feira. Moisés saiu da Companhia de Beneficiamento de Algodão da família Silva onde trabalhava de balconista, já ai perto do meio dia, a encontrar-se com Samara a namorada, que acabara de sair do Ginásio Santana. Ganharam o caminho da ponte dos canos.

“Eu vejo a vida mais clara e farta 
Repleta de toda satisfação 
Que se tem direito do firmamento ao chão

Eu quero crer no amor numa boa 
Que isso valha pra qualquer pessoa 
Que realizar a força que tem uma paixão Eu vejo um novo começo de era 
De gente fina, elegante e sincera 
Com habilidade 
Pra dizer mais sim do que não, não, não” 

Elemento Terra. Era uma vez quatro crianças: Dália, Epifânia, João e Leônidas. Entre eles muitas coisas haviam em comum . Estudavam no Grupo Escolar Santo Antônio de Pádua que ficava na encruzilhada do caminho do Caititu com a estrada do Barro Velho. Do jeito que ia, somente alguns prometiam conseguir passar de ano. Porque pros estudos, deles que não estava nem aí. Gostar gostava mesmo era de jogar bola, no campinho, que ficava logo ali atrás. A escola, não tinha muro nem nada. Teve um dia que a professora falou: “Amanhã é dia que se comemora a libertação dos escravos, dia que a princesa Isabel assinou a lei Áurea. Na aula de amanhã, vamos falar sobre os negros.” Olhar de desprezo volveu Epifânia pra menina Dália. A professora percebeu a tentativa de humilhar a colega, embora não fosse a outra negra, apenas de pele mais escura dentre a turma. Encolerizou-se a mestra com o gesto de discriminação. Tacou a régua no birô que se partiu em dois pedaços, ao tempo que dizia: “Epifânia! Sobre negros iremos falar!” No fim da tarde, depois do futebol os meninos assentavam pra contar história. João “Pintado” o que tinha o rosto cheio de sardas. O que lhe dava ares ainda mais de sapeca, contou uma história de arrepiar. Dizia que no terreno ao lado da escola, no passado, tempo dos seus bisavós, tinha sido ali um cemitério. E que um homem que morava sozinho um dia teve sua casa invadida por um ladrão, que entre outras atrocidades acabaria enterrando-o vivo. Três dias depois de enterrado o homem conseguiu sair do buraco. Morrendo de medo veio a tarde caindo em cima dos meninos. O canto gutural de uma coruja, uma rajada de vento, o sentir de uma mão saindo de debaixo da terra. Qualquer vivente sairia correndo. Não percebesse, claro, uma folha seca do pé de castanhola se enroscando. Se foram os quatro meninos rua abaixo, numa desembestada carreira.

“Hoje o tempo voa, amor 
Escorre pelas mãos 
Mesmo sem se sentir 
Não há tempo que volte, amor
amos viver tudo que há pra viver 
Vamos nos permitir

Eu quero crer no amor numa boa 
Que isso valha pra qualquer pessoa 
Que realizar a força que tem uma paixão” 

Elemento Fogo. Era uma vez quatro homens: Júpiter, Wiliam, Virgulino e Carlinhos “O índio”. Mas, o que em comum poderia existir entre, um nativo da tribo dos Jiripancós; um cangaceiro. Não um cangaceiro qualquer, mas o próprio “Rei do Canganço”; um homem com nome de planeta. Outro ainda com nome de escritor inglês famoso, pela trágica peça “Romeu e Juleita”? O cinema era o que de comum havia entre eles. Não o fato de todos terem ido parar nas telas, mas na própria casa de projeção, respeitosamente chamada de “Cine Alvorada”. Naquela suntuosa sala de espetáculos, erguida na encosta do rio Ipanema, em tantas tardes de matinês e noites de suirês lotou de gente. Da peble e da nobreza o povo misturava-se para assistir a tantas tragicomédias, venturosas tramas de heróis fictícios e surreais. Por excelência, aquela da intriga entre os Montecchios e os Capuletos. Em que seus filhos Romeu e Julieta que deviam se repulsar, acabaram se apaixonando. E o “Capitão” Virgulino Ferreira “O Lampião” que se apaixonaria por Maria “Bonita”, batizada Maria Gomes de Oliveira, apelidada de Maria Deia, em homenagem a sua mãe Joaquina Deia. Virgulino também era o nome de um estivador daquela cidade, que certa vez bêbado se envolveu na maior briga com o índio, na porta do cinema a vida imitando a arte; Quando o rio estava cheio, o índio Carlinhos da tribo dos Jeripacós como que saído da tela, feito Tarzan, pulava de cima da ponte duma altura de mais de cinquenta metros, pra deleite dos estupefatos curiosos. Espetaculares saltos mortais, para dentro das revoltas águas, cor de café com leite, que dançava a dança da morte. Sobre o homem com nome de planeta o que temos a dizer é que era o porteiro do afamado cine Alvorada. Foi o primeiro a perceber o fogo! Isso mesmo! Teve um dia que em plena sessão da tarde, a galeria começou a pegar fogo. Uma das enormes máquinas de projeção tanto esquentou as bobinas que a película incendiou: "Socorro! O cine Alvorada está queimando!" Foi um Deus nos acuda! Em pouco tempo o fogo se alastrou pelas bancadas, o povo corria para se salvar. Nesse dia nêgo Wiliam o lanterninha se fez de herói, salvou uma criança, de cuja mãe se perdera no alvoroço. Felizmente vítimas fatais não houvera. Apenas que pena, perdeu-se o filme, e ninguém viu o fim da história.

“Eu vejo um novo começo de era 
De gente fina, elegante e sincera 
Com habilidade 
Pra dizer mais sim do que não, não, não 
Hoje o tempo voa, amor 
Escorre pelas mãos

Mesmo sem se sentir 
Não há tempo que volte, amor 
Vamos viver tudo que há pra viver 
Vamos nos permitir” 

Elemento Ar. Era uma vez quatro mulheres: Armelinda, Adélia, Armeríndia, e Maria Antônia. Além de serem todas bravas mulheres sertanejas. Outra particularidade comum, entre elas, era que todas tinham apelido. Dona Armelinda esposa de Seu Terêncio, lá do pé da serra do Gavião. Dia de feira tinham por obrigação passar na loja de tecido dos compadres Domingos e dona Irinéia. O carinhoso apelido de “Merindinha” era forma afetiva de cumprimentá-la. Dona Adélia a mãe do mundo todo. Sorriso farto, a benção distribuída indistintamente, a gente e bicho. Bastava que cruzasse seu caminho. Um galho de arruda atrás da orelha pra fazer reza no povo. Recomendava meizinhas pra todo tipo de mal, era parteira daí pegou o apelido de “Mãe Dedé”. Armelínda era sobrinha de Amélia que era esposa de Pizeca que tinha uma pensão onde o farmacêutico Moreninho, o padeiro João e o cabo Matias faziam refeições. O apelido odiado por que fazia, como ninguém, uma iguaria apreciada pelos cachaceiros: “Maria Torreiro”. Virava um siri numa lata. Seu Tibúrcio e Seu Tomaz eram barbeiros, o salão da dupla de fígaros um quartinho espremido entre a casa de dona Amália e Terezinha. Maria Antônia era prostituta, depois de velha virou alcoólatra. Tantas as vezes que a flagraram fazendo sexo dentro duma garagem, ganhou o apelido de “Maria Garagem”. No finalzinho da feira, iam encontrá-la caída debaixo das bancas dos mascates. Como não usava calcinha, os meninos se ajuntavam a levantarem sua saia, expondo seu sexo a galhofas, e apreciação pública. Madrinha Moça apelido carinhoso de Rubenita. Agora pra ver uma pessoa descontrolada, capaz de matar um, era só chamar a amiga de Julieta “pé troncho” de “Maria de Quatro Cabelo”. a mulher pegava ar. Pense na besta fera, em vida.

E não há tempo que volte, amor 
Vamos viver tudo que há pra viver 
Vamos nos permitir 

Fabio Campos 20 de agosto de 2015

TROPEIRO (Meu Pitiguari)


A mata. Labirinto de puro mistério. Um calafrio a percorrer o corpo toda vez que ia por lá. Por que aquele medo toda vez que passava ali? A mula avançando pelo caminho. As casas. Cadê as casa que não apareciam logo? Desejava avidamente que a vila apontasse no olho da estrada. Por que justo naquela curva tinha que ter mata dos dois lados? Dum lado, subia a serra, do outro despencava abismo abaixo. A estrada serpenteando doida de pedras, e barro. Os olhos atirados lá pra cima, medo de olhar pra baixo. Os caçuás, vuco-vuco, roçando na sela dando ainda mais nos nervos. A burra, o ar dos pulmões entre o esôfago e a traqueia, remedava o roça-roça dos caçuás. Pensamentos de gelo, o frio petrificando os lábios, entristecido os olhos. Vida de tropeiro, vida toda varando o mundo em cima duma mula. Pra que aquele vento gélido não viesse chover daria de pensar num começo de reza. Como sempre entendida ao contrário, e caía torrencial tempestade. Melhor seria não ter inventado reza. Lembrou com ternura do aconchego da bodega. Cheiro de bacalhau pubo, lapada de cachaça, fumo de cachimbo. Seu Pedro dizia que o Sítio Capim e toda aquela redondeza parecia que ficava mais perto do céu, porque nunca viu lugar pra chover tanto. O chapéu encharcado a aba amolecida, pingando e pingando, no bico da venta, congelando a barba dura. A molhação empapando a roupa, penetrando até os ossos. Seu Antônio Tenório tinha uma ciência que chuva fina molhava mais que chuva de trovoada.

“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari 
Voa vai buscar/ Voa vai buscar 
A espera mata/ A espera mata 
Um coração que quer amar

Ansiedade me machuca o peito 
Sem ver a hora de você chegar 
Amor ardente, paixão incontida 
Por toda a vida é o que vou lhe dar 
Meu Pitiguari” 

O tropeiro. Todos os dias, caminho de casa caminho da rua. Caçuás cheios de macaxeira, a vender de porta em porta. Entrou no armazém de Seu Eliezer precisava duns atavios. As coisas ali, de tão cansadas dormiam, como em berço esplêndido. Um silêncio velho, passeando na camada de pó das prateleiras, sem o menor constrangimento por isso. Mercadorias sérias, caladas demais. Tudo ali tão sem assunto que dava agonia. Tão anêmico de tons, apático de cor, raquitismo de luz. Tudo assim tão carente de vida. Ali dentro se sentiu como um resto de piada “...mais perdido que rato em casa de ferragem!” o que acabaria trazendo um pouco de calor humano, conforto pra alma. A mente numa tentativa sobre humana de trazer de volta a alma do desinfeliz que vagava. O consciente ia apresentando um sequencial de tudo de que precisava: uns metros de corda de caruá, pavio de candeeiro, fósforo da marca Matches, sal Cisne, um facão Tramontina, pólvora Sacy, chumbo Guarany. Vários novelos de corda de caruá de diversas bitolas deitados no chão, vasos de grãos de feijão e milho de chapas de zinco apoiados em lastros de madeira encostados na parede, perfilados. O cheiro reinante ali era de querosene da marca Jacaré. Seu Eliezer que era da lei de crente usava camisa de mangas comprida abotoadas nos punhos, e a gola fechada rente ao pescoço. O bigode branco combinando com a alva carapinha. A bíblia de capa preta sobre o balcão sempre ao alcance da mão enorme, mão de dedos nodosos. No interior penumbra, as aberturas das portas como fendas que ameaçavam encher tudo dum imenso deserto de luz de fina cal como um portal que daria acesso a terra da lua. O sol que um dia havia talvez tivesse adquirido uma mancha negra que se estendia formando um magnífico eclipse, e a todo instante provocava explosões espalhando pelo cosmo uma chuva de larva incandescente que acabaria por dizimar toda a vida reptiliana, a única existente sobre a terra de uma época remota. Isso talvez fosse o que se chamaria de caos. E a partir daí daria início a criação.

“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari 
Voa vai buscar/ Voa vai buscar 
A espera mata/ A espera mata 
Um coração que quer amar

Eu lhe dou tudo o que você pedir 
E faço tudo que você gostar 
Dou a paixão que eu sempre tive 
O amor bem livre, com sede de amar 
Meu Pitiguari” 

A Rua. Um pingo de remorso não tinha, de nada se sentia culpada. De quem era pobre, de quem tinha muitas posses, de quem era miserável. A rua não sentia culpa se ‘a’ ou ‘b’, se fulano, sicrano ou beltrano não tendo o que fazer ficava falando da vida alheia pelas esquinas. A rabeca de Seu Antônio em duas notas: "A porquinha ronca e fuça!" gargalhada geral. Desconfiavam que o rapazola que ajudava o padeiro com o forno da padaria tivesse um chamego com De Lourdes empregada de dona Cristina, e daí não era a mulher solteira mesmo. Só que pendia uma asa pro cabo Matias. Depois que vendia a macaxeira, tropeiro ia buscar uma carrada de madeira encomenda de Seu Arlindo da padaria. E se estivesse chovendo não tinha quem fizesse o ajudante ir até a bodega comprar uma garrafa de cana. Considerava o fim da picada, sair na chuva depois de horas a beira do forno, e correr o risco de ter uma constipação, ficar doente. Como aconteceu com finado Zezinho. E olhe que ele tomava umas canas pra aguentar o rojão. O peste era tão viciado que pra conseguir tomar a primeira dose do dia, segurava o copo com as duas mãos. Tremia tanto que derramava quase tudo no rosto no pescoço. O companheiro Mané guarda chegava de madrugada ligava o motor do caminhão Ford fazia a maior zoada. A chuvinha fina bem escondidinha no escuro enganava quem tinha que sair da cama cedo. Se ao menos desse pra ouvir os pingos batendo na telha se negaria a sair tão cedo de debaixo dos cobertores. Naqueles dias de inverno cadê coragem pra tomar banho. O lençol abafa-bufa grosso que só parede de igreja, pegava uma inhaca desgraçada. A mulher pra aguentar a catinga o obrigava a lavar pelo menos os possuídos.

“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari 
Voa vai buscar/ Voa vai buscar 
A espera mata/ A espera mata 
Um coração que quer amar

Meu desejo já não tem sossego 
Buscando o seu todo instante vai 
Por tudo peço não demore não 
Que o meu coração já não aguenta mais 
Meu Pitiguari 

Descambou a folhear um jornal velho, encima do balcão. Tão cheio de tanta letra. Figura que é bom quase nenhuma. Talvez só servisse mesmo pra enrolar prego. E tudo poderia ser muito menos dolorido do que na sua vida sempre fora. Lamentou não ter leitura suficiente pra ler aquele monte de coisa. Quem sabe lesse a crônica de Rubem Braga que falava de borboleta, dum pé de jambo na Rua do Ouvidor. E ficaria a par da recessão que assolava a nação americana. Depressão severa viviam os Estados Unidos, da América, o Canadá tudo por conta da maldita guerra. Muita gente não podendo assumir seus compromissos com o aluguel fora morar em favelas apelidadas de Hoovervilles, uma sátira ao presidente Herbert Hoover. Não tendo dinheiro pra abastecer de combustível seus automóveis muitos passariam a atrelar mulas aos veículos apelidados de Bennett Buggles, carroças Bennet, uma sátira ao primeiro ministro Richard Bennet.

“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari 
Voa vai buscar/ Voa vai buscar 
A espera mata/ A espera mata 
Um coração que quer amar

Se seu amor é igual ao meu 
Chega de pressa, vem de pressa vem 
Que o meu desejo é lhe matar de beijo 
Depois de saudade eu morrer também”

A casa. Lá estava arribada na encosta do Gravatá. E como fazia frio no mês de agosto, muito frio. Dona Amélia dizia que aquela casa ficou mal-assombrada. Quando estava sozinha no alpendre ouvia alguém abrindo o armário da cozinha. Alpercatas de couro cru rangendo, rastejando no piso. A gaveta dos talheres se abrindo. Tudo em plena luz do dia. Alguém pegando a faca na gaveta. Exatamente como naquele dia. Calmamente indo ao quarto, a filha deitada na cama toda enrolada, nem um pio se ouviu. O sangue morno descendo pelos lençóis empapando o colchão. As grades da cabeceira sujas de sangue, na hora do desespero teria se agarrado ali. Depois das sevícias, sete facadas nos peitos, e colo. Instintivamente olhou pro mato, na direção onde haviam encontrado o corpo. O vestido rasgado, a calcinha bem longe dali, uma tiara e os sapatos. O caderno todo rasgado tinha desenhos, vários corações sublinhavam a frase: Te amo papai.

Fabio Campos 13 de Agosto de 2015

NEGRO LINO

O dia nem bem havia nascido. Mas de certeza em trabalho de parto estava. Vinha vindo, vinha vindo. As entranhas da terra parindo, dando à luz, magnífico ser, sol nascente. A neblina láctea a derramar-se dos seios da montanha amamentado. Dos arroios das quebradas do sertão se nutrindo. Pelo sal da terra batizado. Sob as grinaldas, risonho e límpido, véu de orvalho, suspenso nas teias de aranha. Sertão impávido colosso somente dele (e nele) nasce o dia realmente.
 
“Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor”
 
O que vamos contar vem dum tempo lá de trás. De um daqueles anos que rabiaram a década de trinta Ano entrançado de sucedências ruins, uma atrás da outra. Por essa época perambulava em riba do couro do mundo um preto chamado negro Lino do Pedrão. O negro era assim um amontoado de músculo, encima duma cabeça que de tão feia só podia ter sido moldada pelas mãos do ‘Coisa ruim’. Brabo que não precisava muita coisa pra criar uma arenga. Nas rodas de conversa diziam que o nome Lino vinha de Virgulino. E o peste gostava de ser comparado a Lampião. Seu verdadeiro nome era Rosalino, que odiava e, preferia que chamassem de Nêgo Lino mesmo. Vem desse tempo o costume de se ajuntar o nome das pessoas ao nome do lugar donde vinha. Pedrão era um arruado fincado entre o Sítio Capim e o Gameleiro. Muito comum também agregar ao nome, o nome dos familiares de mais recurso, pra se ter algum reconhecimento, algum valor. Por exemplo, dona Adélia de Seu Canuto, Leônidas, neto de Seu João Lola, Mara Célia irmã da professora Dália. Dona Amália de Seu Doroteu, pais de Domingos, Mara Célia e Dália. E tinha Zé Costa, Enéas, Seu Esaú, e alguns outros mais, estão por aí porque gostam de prosear boa prosa, mas nem garanto que vão entrar na história. Um dia, no meio da feira um repentista vendedor de livreto de cordel tirou uma treta com o negro. Dele tirou estes versos:
 
“Nêgo Lino aqui chegado/ Nêgo Lino aqui chegou/ Receba essa na tela/Tua venta é de esparrela/ Parece duas gamelas/ Brilha mais que Furta-Cor/ Os olhos são duas bolas/ Vão pular da cachola/ Pregaram mais não colou/ Essa coisa que feiúra/ A beiçola ele pendura/ É uma coisa que avessou/ Toda vez que o bicho fala/ Junto com a voz exala/ Dum cassáco o fedor/ De tuim esse cabelo/ As orelhas dois bueiros/ Parece dois armador/ Quando ele ri faz careta/ É a imagem do capeta/ Mais parece um tumor/ As feição é dum macaco/ O mau cheiro do suváco/ Derruba quem já andou/ De parracha sua mão/ A voz rouca dum Barrão/ Cabeça de Cololô/ Os braços são dois cacetes/ Balanga num cacuête/ Parece que se soltou/ Sentado é uma armada/ De cóca uma presepada/ Brinquedo que desmontou/ É o cão chupando manga/ A besta fera de tanga/ Um mamulengo a motor/Dois desse vira uma Túia/ O que cabe numa cuia/ Na certa tem mais valor/ Os peitos são duma porca/ E o bicho quando se invoca/ Vira a Nêga Fulô.”

Gargalhada geral da roda de ouvintes. O negro saiu bufando, na tolda de Tonha Fateira pegou uma garrafa de cana tomou todinha sem tirar a boca do gargalo. Os olhos viraram duas brasas de fogo, assoprou álcool pelas ventas e partiu no encalço do embolador. A raiva que tinha dava pra matar o repentista de mãos limpas. Quando viram a bagaceira sete homens se atracou com o brutamontes. Mas só de olho de machado puseram-no a nocaute.
 
“Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió”
 
Nesse tempo, as coisas do mundo andavam assim tão serenas. Na caatinga do sertão a cor prevalecida era a cor do barro, e o verde das catingueiras. Nos vilarejos não tinha muita vistosidade nas cores. Tudo era como esmorecido. Por conta do material de que tudo era feito, de madeira, ferro, zinco, estanho, porcelana, couro e barro. As pessoas mais influentes da vila Seu Canuto e dona Adélia tinham casa de comércio, muitas terras e gado, ceifavam com aviltamento, algodão, feijão e milho. Tudo a se perder de vista. O único sobrado existente na vila era deles. Não eram poucos os que gostariam de entrar além dos portões daquela casa. Comentava-se como tanta coisa bonita havia pra ver além daqueles muros. O mobiliário era todo de madeira bem trabalhada. Dava gosto ver a cristaleira, uma mesa com um conjunto de cadeiras bem torneadas. Uma espreguiçadeira, um violino repousado sobre a cômoda. Belíssimos quadros, pinturas a óleo de caçadas equestres, nas paredes. Um cabide do tipo pedestal, o acabamento, o verniz, tinha a graça de uma mulher esbelta. Uma bengala de mulungu e cabo de madrepérola. Nas casas mais modestas o cabide era de parede do tipo sanfona. Um baú todo trabalhado no couro. Baú do pobre era chamado de burra. Um camiseiro de jacarandá, um pilão de cedro, uma espingarda “papo-amarelo” por sobre os retratos da família impondo respeito. O caibrado da varanda todo de umburana de cheiro pra não dar cupim. O ferro do portão com duas camadas de tinta. O estilo barroco e arcádico retorcia-se nos corrimões das escadarias. Copiado das sacadas dos camarotes dos teatros da capital. Nos portões suntuosos dos jardins, estatuetas de querubins e ninfas na fonte de água. A cal e o índigo sobrepujavam nas muradas e caixetas, nas eiras e beiras, graciosos lampiões a cada quina. O estanho ia a cozinha e o quarto, nas torneiras, nos urinóis, nas escarradeiras de porcelana. As joias de ouro, os dobrões de prata encerrados nos cofres. As franjas das cortinas os quadros com molduras de carmim.
 
“Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá”
 
Negro Lino contava que tinha umas visões esquisitas. Alguns momentos pra ele nada fazia sentido. Do jeito que se apresentava parecia que tudo estava de cabeça pra baixo. O mar um dia lhe apareceu, lá encima no firmamento. Estupendo mar sereno, revolvendo suas ondas tranquilamente, se comportando como estivesse cá embaixo. Uma gota sequer caía lá de cima. E de repente viu despencar uma chuva de peixes. -Chuva de peixes? Perguntou Casteado. -Isso mesmo? –E caiu onde? -No céu? O céu estava cá embaixo. Tudo incrivelmente incomum de se acreditar. –E a donde ‘vormicê’ apoiava os pés? -Não havia onde... Onde devia estar o chão só havia o nada. Terra firme não havia, inexistia lugar onde pudesse firmar os pés. E afirmou: -Não há nada pior pra uma criatura que tem dois pés, não ter onde sentar a planta deles. Aquela imensidão de tudo era um abismo só. Diante daquela situação, sentia náusea, talvez labirintite, ânsia de vômito. Lembrou que não estava no seu corpo, portanto não tinha estômago. O corpo, massa muscular, sangue bombeado pra o coração adrenalina, sudorese, taxas de triglicerídeos, colesterol alto. Não precisava se preocupar com essas coisas naquele instante. Era sua alma vagando. Só tem uma coisa que o espírito fora do corpo físico não consegue se livrar: do medo.
 
“Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meu”

“-Outro dia eu vinha pela estrada do Caboclo. O sol já ia derreando por acolá, e um cachorro passou por mim, sem tirar o cigarro da boca deu boa tarde, e tossiu uma tosse seca. "–Mas era um cachorro, cachorro mesmo? Desses que late e mija no poste? –Desses aí mesmo, sim senhor! Até um jumento que estava lá no cercado, parou de comer capim olhou pro lado de cá e disse: -Cuidado compadre pra essa tuberculose não virar uma tosse!” Ah! Me desculpe! Mas assim já é demais! –A pois eu juro por essa luz que alumia os meus olhos! –Homem! Tu num diz isso que Deus castiga!"

Quando foi noutro dia, lá vinha Nêgo Lino da feira. Vinha que vinha zonzo pela estrada do Pedrão. Bêbado que só um guará. E não é que foi topar logo com uma ticaca choca! Já era de noite, tudo pardo. Os dois se atracaram, e né que o troço da ticaca lhe estraçalhou a cara, e arrancou um olho fora. Nisso vinha um carro de boi. Ao ver aquela presepada o carreiro meteu a vara de ferrão pra cima e acabou acertando o outro olho de nêgo Lino. Selando assim sua sorte de pedir esmola na porta da igreja. Pedia cantando moda de viola que falava de passarinho sofredor.
 
Fabio Campos 08 de agosto de 2015