Uma nuvem caminhando sozinha do
lado mais azul do céu, mais uma tarde se fez. Um lírio despencou do talo, feito
uma lágrima branca, e era aquela mesma tarde. Uma mãe sentada na cadeira na
porta de casa, e mais tarde ainda ficou aquela tarde. Uma que era filha veio vindo. Pediu
a benção, beijou-lhe a testa. Sentou noutra cadeira. Acendeu um cigarro, folheou
um álbum de fotografias, e sorriu, a tia que estava no retrato, continuava séria.
Muito bem disfarçada a cicatriz no supercílio direito que desde muito estava lá. "Tua tia queria ser cantora.Tenho saudade de minha mãe.” Disse a primeira. Olhando pras bandas de onde
ficava a terra natal disse isso. Como se o céu pudesse trazer o passado, e
ficou triste. Não apenas a que disse, mas tudo em redor ficou triste.
Eu achava a vida chata
Como não devia ser
Os garotos da escola
Só a fim de jogar bola
E eu querendo ir tocar guitarra na tevê”
A igrejinha, os degraus, alvo
querubim no alto do portal, a santa no altar. O negro badalo, sisudo, sisudamente
atrepado lá em cima. Tudo como estava daquele jeito, trazia pra acolá a casa
materna. A buscar tristes recordações, os olhos se enchiam de lágrimas.
Lembranças das discussões acirradas de tio Enéas e tio João Doroteu. Um era crente,
o outro católico. Se pudesse não ouvia aquela arenga. Vontade dava era de sumir.
Tio Manoel ensaiando seus cânticos pros velórios. Cantos tão penosos.
Acompanhava-o vô Antônio com sua rabeca “a porca cochicha”, Um riso morno chegou
aos lábios, por ternos segundos virou sorriso. Tio Pedro sentado num tamborete
perto da janela porque depois duma xícara de café, acendia o cigarro de fumo
picado. As baforadas e as cusparadas defenestradas, umas pelas janelas, e
outras por cima da folha da porta. O cheiro de pinha vindo da dispensa. Abóboras
e pinhas amadurecendo dentro dum balaio, adoçando as ventas dos curiosos. Em
cima da mesa uma travessa cheia de goiabas tão amareladas guarida dos
mosquitos, fedidas a bufas de bebê.
E pintou a diferença
foi difícil esquecer
a garota mais bonita
também era a mais rica
me fazia de escravo do seu bel-prazer”
Osvalinda e Aucantina iam pra
igreja. Esta de cá carinhosamente Tinô. Tinha por obrigação toda tarde ir as
duas pra igreja. Por vezes ia Dália. As três, às três da tarde de joelhos, véu
sobre a cabeça, rosário nas mãos, rezavam a ladainha, o terço da Divina
Misericórdia. Uma vela acesa penitência encomendada por madrinha Amália. A bancada em verniz preto, o apoio dos braços
marcado de pingos de parafina recrudescidos. O sacrário ladeado de imagens de dois
anjos segurando luminárias, as asas subindo suavemente, olhar de quem guarnecia
serenamente. A imagem de Cristo o lado transpassado pela lança, ombros esfacelados,
joelhos em carne viva, na iminência do sangue gotejar nos alvos panos do altar.
Sagrado altar esmeradamente forrado da cor das tapiocas de dona Faustina. Santo
Antônio com seu rosto de anjo segurando no colo outro menino. A moeda colocada
no cofre da igreja. O trinco da bolsa fazia um barulhinho engraçado quando
fechava. Um dia, André filho de dona Mirian foi pra missa, levou um cruzeiro
pra por na cesta de coleta. Só que ao invés de colocar o peralta tirou foi mais
um. Pra completar o ingresso da sessão de cinema: “Noites Cariocas” com
Oscarito, somente naquela noite, no salão do açougue. Andrezinho bronca tão
séria levou do padre e bastava ver um menino se aproximar da urna de doações
que arregalava os olhos. E de longe, com medo de se aproximar avisava aos
berros pra ter cuidado que “A alma de meninos eram sugadas pelo cofre do padre!” E que a noite ao
pé da cama, na hora de rezar, daria pra ouvir o gemido das pobres pedindo pra
alguém tirá-las de lá dentro.
Minha mãe me disse: Baby
Você vai se arrepender
E lá iam às duas irmãs, sem pressa, pela estrada
seguindo. Acima de tudo felizes. Os vestidos alvos caçoavam das nuvens, acenavam
ao vento. No rosto, diáfano pó de arroz, no penteado belo broche, um chapéu
gracioso. Tudo que era dito, um dia teria sido realmente. A mãe se segurando pra
não chorar. Chorava porem as palavras. E era como uma cortina feita de polissílabos
que no eco plasmavam flutuantes. Talvez fosse mais fácil dizer silêncio. O
mundo porem teimava em ser repleto de azul. Cheio de saudade. Estupidamente
caduco de lembranças que instigavam os sentidos, a flor da pele. Causando um
frio que casaco nenhum conseguiria aplacar. E as coisas todas como se estivesse
esperando os relógios envelhecessem as horas, e era como se toda dor que não
devia ter sobrevivido voltasse, irremediavelmente. O amarelo das goiabas querendo
adultamente ser laranja; o lilás detestando ser roxo; o púrpura despudoradamente
sendo violeta fruto do mandacaru. O colo
esperando um rosto amigo pra repousar, mas quem sabe, jamais viria. A iminência
de coisas muito sérias novamente voltando a acontecer, coisas que tiveram gosto
de faca cortando, lânguido igual babão da jaca mole, o liga do leite de
labirinto. Cheiro velho, de ninho de passarinho. Gosto de água de pote na
boca. Os homens um dia se foram, e caminhavam sem olhar pra trás, muito sérios
iam. Só Deus sabe tão sérios aonde queriam chegar. A vila inteira, os
feirantes, os meninos, o açougueiro, o tabelião, o delegado, a professora.
Dentro de um azul triscado de preto, em câmara lenta seguiam, procissão dos iludidos. Menos
o padre Bulhões que tinha ido pro sítio Gameleiro encomendar uma alma, e o
farmacêutico Moreninho, fora até a fazenda de Zé Roque aplicar uma injeção
contra Cornage, um mal de cavalo que fazia assobiar forte ao respirar. Compromisso
nenhum do que foi dito, tinha com a história que ainda estava pra acontecer. Talvez
o esperado nunca fosse realmente contado.
Pois o mundo lá fora
Num segundo te devoraDito e feito
Mas eu não dei o braço a torcer”
Padrinho Pizeca tinha uma tosse crônica que piorava
com o cair de tarde, tão fria quanto àquela. Lá do quintal dava pra ouvir a
pulmoneira que começava pouquinha e acabava em crise. Dona Amélia fazia um chá
de hortelã com mastruz que aliviava, só não podia tomar muito, pois era muito
forte. Enéas mais Seu Esaú foram cubar uma terra de Seu Tonico Ambrósio que
seria repartida em herança, parte seria vendida pelos filhos, a Seu Pedro
Vieira. Tinha uma semana pra mandar destocar quando viriam as chuvas de inverno
atrasado. As chuvas arrastaria o barro e tudo ficaria nuzinho, os tocos
queimados ponteariam sobre a terra. O imbuá caminhando, a tanajura zumbindo na
cumieira da serra. A sementeira quietinha dormindo, aguardava esperando o
momento certo depois de covar, desarcordar debaixo do chão. Negro Bongo dera
pra andar com Casteado. pense duas peças lorde! Boa coisa os dois não andavam aprontando
no oitão do mundo. Pegaram uma encrenca com dona Terezinha por conta duma
gamela. Foram dar comida pros porcos, o jumento pisou dentro do cocho que se
partiu em dois pedaços. Pense no fuzuê que a mulher fez. Botou os dois pra
correr debaixo de chicote.
“Hoje eu vendo sonhos
Ilusões de romanceTe toco minha vida
Por um troco qualquer”
Anacleto filho de dona Ciça todo dia ia pegar
passarinho nos cafundós dos Judas. Os cafundós das redondezas eram as
propriedades de Seu Arnóbio e Seu Canuto. Dona Ciça desde cedo, metia o pau a
gritar pelos meninos “Anacleto! Diógenes!” Pra irem apartar os bezerros das
vacas no curral. Os pestes se largavam no oco do mundo. Dona Ciça coitada,
sozinha ia fazer o serviço levando Benezinho o mais novo, arreganhado na
cintura. Comadre Dorinha encomendou um braço de milho seco a Seu Tobias. O
homem achou de mandar justo nêgo Bongo pra quebrar esse milho que ainda estava
na roça. Era pras galinhas poedeiras de tio Doroteu. Quando alguma estava choca
botava pra deitar atrás da porta da dispensa. Toda vez que tinha que ia buscar
uma cuia de feijão, era zoada doida. Zé Candinho tinha uma queda danada pelas
modernidades. No meio da feira comprou um peste dum rádio. Ligava numa bateria
velha e tinha um monte de arame que ia pra debaixo do chão por cima da casa. Sintonizava
a rádio clube de Pernambuco, que tocava música de Inezita Barroso e "Irmãs Galvão" que as filhas de dona Amália imitavam tão bem. Os meninos tinha uma história de ir tomar banho
no açude de Seu João Lola que queria ver o cão, mas menino lá dentro nem ver. Mas
se um dia é da guariba o outro é do caçador. Aí o can-cão piou! Munido duma
“soca-tempêro” o velho mandou chumbo. O tiro cobriu e foi menino correndo pra
todo lado. Sóstenes, Maurílio desembestaram pelas capoeiras. Fernando, “Titico”
e Dorival sumiram na catingueira. Era nêgo se ralando nos rasga-beiço, nas
urtigas, as roupas e os chinelos deixando pra trás. Temístocles pegou a vereda,
não viu o colchete lascou-se em cima dos fios de arame foi um rasgão que uma
orelha pendurou, quase aparta da cabeça. Cléster outro que levou azar subiu num
pé de jaqueira tinha um enxame de abelhas, levou ferroadas na cabeça, rosto e
pescoço, teve febre, frio e dor de cabeça. Por um bom tempo os pássaros e bichos
daquelas bandas teve sossego.
“É o que chama de destino
E eu não vou lutar com issoQue seja assim enquanto é”
Dona Zefinha ria pra se acabar
das doidices de Emília. Falava de tudo, achava extravagante quem comprava muita
roupa. E Dália entendia tudo, punha Francisco no braço e ia embora. Mal criada
Emília um dia levantou a mão pra bater em dona Neném. O filho não gostou nada disso.
Seu Antônio fumava cachimbo no alpendre. Depois dos setenta teve catarata e
glaucoma ficou cego. Otacílio a tarde aparecia na casa de Abdon pra contar
histórias do tempo de Lampião. Os dois lembravam da seca de 32. E começavam uma
discussão sobre qual tinha sido o ano realmente, se 32 ou 36. Lembrou que era o
povo caindo pelas calçadas pedindo alguma coisa pra comer. Cena parecida com a
peste negra que assolou a Europa. O povo se trancava dentro de casa com medo da
fome. A seca de 70 essa ninguém nem sonhava que um dia estaria marcada pra vir.
“Hoje eu vendo sonhos
Ilusões de romanceE troco a minha vida
Por um troco qualquer”
Dália se lembrou do dia de seu
casamento. O noivo contratou um sanfoneiro que começou a tocar duas da tarde, e
puxou pro meio dia do dia seguinte. Lembrou que ficou sentada na cama, o pai lá
na cozinha chorou. O noivo chegou pra dar um beijo, não permitiu, teve
vergonha. Quis que o casamento fosse em casa. Pois soube que a igreja estava
cheia de curiosos só pra ver como ficariam os noivos. No dia seguinte vieram
pra Santana no carro de Seu Dota chofer contratado especialmente para aquela
ocasião. O Panema estava em toda largura teve que atravessar de canoa,
empreitada nada fácil. Quando Francisco nasceu dona Amália veio passar os dias
do resguardo com a filha. Voltando pra infância lembrou que teve asma quando e Seu
Moreninho receitou três injeções tomaria duas, e ficaria boa. Moreninho
perguntou se a menina guardava mágoa por conta do fuzuê que fizera quando levou
um capão pro padrinho Pizeca na semana santa. Não ficara. A irmã na foto, o
cabelo derramado pelas espáduas cobertas pela blusa de manga bufante. Tão
bonita, tão séria. Para sempre no álbum de fotografias ficaria. A cicatriz no
rosto, um corte de caco de pires de quando criança tomava café. Irrequieta
derrubou a xícara e caiu. Dona Amália tratou da ferida. Seu Doroteu todo dia. Longe,
muito longe ia buscar um pote d’água, saía madrugada e só chegava altas horas
da noite.
“Mãe me dá um tostão? A senhora tem tanto dinheiro..." "Pra que quer um
tostão menina?" "Eu queria tanto tirar um retrato.”
Fabio Campos 26 de Agosto de 2015