Dava pra ver claramente vários meninos brincando. Dava pra ver, uma
seara verde cana-de-açúcar, ou seria capim elefante? Havia um menino, sentado a
porta de casa. Melhor vendo, dois meninos estavam lá. O segundo se havia no
batente da janela. Era velha a casa.
Igualmente velha ia a história, com seus mais de cinquenta anos. A mãe,
também já velha, doente, passava o dia, deitada numa cama. Com a voz fraca
chamava um dos meninos. Mas o menino não ia. Apelava pro outro, e chamava. O
outro também fingia que não escutava. Os dias andavam quentes, abafados. As
noites eram tristonhas, amedrontava com suas garras de trevas. Muito queria
dizer e dizia. Poucos porém
eram os que entendiam.
I can see clearly now the rain is gone
I can see all obstacles is my wayGone are the dark clouds that had me blind
It’s gonna be a bright (bright)
bright (bright) sunshine day
It’s gonna be a bright (bright)
bright (bright) sunshine day
Here is the rainbow l’ve been praying for
It’s gonna be a bright (bright)
Bright (bright) sunshine day
Real, real, real bright (bright) bright (bright)
Sunshine day
Yeah, hey, it’s gonna be a bright (bright) bright (bright)
Sunshine day
It’s gonna be a bright (bright)
bright (bright) sunshine day
“Posso ver claramente agora que a chuva se foi/consigo ver todos os obstáculos em meu caminho/as nuvens negras que me cegavam foram embora/será um brilhante dia de sol/brilhante dia de sol/será um brilhante dia de sol/brilhante dia de sol.” Abdias era como se chamava o primeiro menino. Ele queria, um dia, ser jogador de futebol profissional e, ganhar muito dinheiro. Azarias, o nome do outro, não queria ser nada. Os meninos da turma, todos tinham apelido. “”Zé Gago” e “Orelha de Abano” eram os apelidos deles. Abdias realmente gaguejava ao falar. Azarias, por conta da pecha ficava brabo e brigava com qualquer um. Eram meninos negros. E sorriam com dentes alvos e perfeitos, herança magnífica de sua mãe. Era o que de mais belo tinham. Aqueles dentes diziam quanto dona Flora, na juventude, teria sido uma negra muito bonita. O pai era um homem mau, os meninos nunca conheceram, fora embora quando tinham: Azarias, meses, e Abdias uns três anos. Bebia, todos os dias, e ficava agressivo com dona Flora, ainda bem que um belo dia amanhecera e não anoitecera, até aquela data. Aquele foi um dia bom. Sozinha dona Flora teve que criar os filhos. Lavava roupa de ganho, no hotel Santanense. Era camareira, somente nos fins de semana, quando o movimento aumentava. Em casa deixava os meninos sozinhos. O que eles não sabiam era que sua mãe ainda jovem tivera duas filhas mulher, gêmeas. As crianças foram dadas pra adoção. A um casal de funcionários do Banco do Brasil que fora embora. fazia tempo, adotaram. As meninas deviam estar agora por volta dos seus quinze anos.
Oh yes, I can make it now the pain is gone
All of the bad feelings have disappearedHere is the rainbow l’ve been praying for
It’s gonna be a bright (bright)
Bright (bright) sunshine day
“Agora sim, a dor foi embora/todos os sentimentos ruins desapareceram/aqui está
o arco íris pelo qual tenho rezado/será um brilhante dia de sol/brilhante dia
de sol.” Quando eram pequenas Morgana e Magna, juntas brincavam e nas bonecas faziam
trancinhas. Sem jamais imaginarem que tivessem irmãos pobres, que passavam todo
tipo de necessidades, que não tinham quarto forrado de gesso, pintado de cores
pastéis, tapete fofinho ao pé da cama, par de pantufas, guarda-roupas cheios de
ursinho de pelúcia, cama limpinha, quentinha pras noites de inverno, com
travesseiros perfumados, forros de cama com personagens de Disney. Abajur com
caixinha de música. Toucador com xampu, condicionador, sabonete líquido e talco
Pom-pom. Aos domingos vestiam vestidos iguais, e todos admiravam a dupla de
negrinhas filhas da madame Mirian. Também na ida a escola as lancheiras iguais.
Os cadernos tinham que ser diferentes para não se confundirem, estojos de lápis.
Tinha aulas de reforço, inglês e artes marciais. No sábado as aulas de catecismo
que as prepararia para a primeira comunhão. O padrasto bancário, já velho e
cansado tinha diabetes, sofreu um acidente vascular cerebral. Passou alguns dias
internado, acabou não resistindo. Dona Mirian cuidou das meninas até morrer.
Aquele sorriso inconfundível das meninas. Aqueles dentes perfeitos, os
rostinhos idênticos no quadro da parede. Os cabelos, a pele, os olhos, e em
especial, os dentes idênticos aos dos meninos que elas jamais conhecera. As
meninas cresceram. E foram pra Boston nos Estados Unidos, morar com uma tia,
irmã de sua madrasta. Tiveram alguns desentendimentos e a falsa tia acabaria
revelando o que elas já sabiam, que eram adotadas. Magna casou com um
americano ruivo do Alabama, corretor de imóvel, viciado em cerveja e maconha, e
que amava tudo que tivesse alguma relação com música country. "Mississipi" da
banda Pussycat pra ele era como um hino. Morgana foi ser baby sister em Miami, contratada
por um ator famoso, em decadência, que bebia todos os dias, e esbanjava
indiscriminadamente. Com o que ganhou, deu pra comprar no Brasil, um
apartamento, um lote de terra na beira da praia, um carro e uma moto. De moto
ia ao shopping porque o carro demorava muito no transito.
“Ooh… Look all around, there’s nothing but blue skies
Look straight ahead, there’s nothing but blue skies”
Olhe a sua volta...não há nada além do céu
azul/olhe em frente, não há nada além do céu azul.” A água estava ficando cada
vez mais escassa. O olho cego do açude secando, secando. Olhando a lama marrom Abdias
pôs-se a pensar no passado. Lembrou-se de um dia mau, um dia feio que apanhou
bastante da mãe porque deixou a panela de feijão queimar. Era o último
cozinhado que restava. E comeram assim mesmo. Até rasparam a panela. Aquele dia
das lembranças ruins do passado, talvez fosse um ótimo dia pra mãe morrer. O
besouro, a mosca, o latão de querosene cheio d’água na cabeça, tinha um furo e
derramava no rosto. E a carroça por que estava tão longe? O carro de boi, a
bicicleta. A corrente quebrou, a chinela quebrou, o prato quebrou. Realmente
era um dia mau, bom pra dona Flora morrer. E como desgraça na casa de pobre
nunca vem solteira dona Flora, naquele dia, morreu. Jamais esqueceria aquele
dia. O colar do menino nu de lata. Um pingente guardado junto com as bijuterias
da mãe. Julgava perdido, a mãe guardara. O anel de calhambeque. A mãe costumava
guardar coisas sem importância, um catálogo da Hermes, uma página da revista
Cláudia com uma propaganda do Avon, onde uma moça bonita sorria. Um envelope da
Sonora o laboratório que revelava fotografias em Manaus. A foto do pai com uma
bicicleta que no lugar do guidão tinha direção de carro. Dentro da bíblia
encontrou uma embalagem do chiclete Bolete, com a figurinha dos “Tremendões”,
bem engomadinha, cheiro de chiclete não tinha mais. Teve vontade de ler, e leu
bem devagar, tudo que havia naquela página.
“Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu a luz Caim, e
disse: “Possuí um home com a ajuda do Senhor.” E deu em seguida à luz Abel,
irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. Passado algum tempo,
ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel do seu lado ofereceu
dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras deles; e o Senhor com agrado
para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons.
Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido.
O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E porque está abatido teu semblante?
Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes
mal, o pecado estará a tua porta, espreitando-te, mas tu deverás dominá-lo.
Gênesis 1-1,7”
I can see clearly now the rain is gone
I can see all obstacles in my wayReal, real, real bright (bright) bright (bright)
Sunshine day
Yeah, hey, it’s gonna be a bright (bright) bright (bright)
Sunshine day
Fabio Campos, 30 de novembro de
2015