O dia de ontem ainda estava lá. Ficaria
eternamente pregado, nas pedras que subiam o muro de arrimo. Em cima, a sacada,
a praça, as luminárias centenárias. Os bancos de tiras de madeira e ferro
desenhado, o jardim. O vento açoitou as árvores. Acabaram coitadas, perdendo as
unhas, os dedos magros pelados. E iam pelo chão fazendo barulho de chuva, pelas
sarjetas. Chuva sem água. As sobrinhas coloridas dos vendedores de quitutes
espraiaram tons azuis, vermelho e branco na palheta alaranjada, do pintor de
quadros. As vitrinas de salgados e doces, aguçavam sentidos, de muita
variedade. O vendilhão de aguardente oferecia degustação, aca de qualidade.
Àquela hora do dia o álcool tinha fluidez de perfume. O boné branco, o avental
estufado, o volume da barriga que insistia em roçar a mesa de madeira. Luzia
olhou pro alto da ladeira. Olhou pra Deus, quase inconscientemente, pediu que
lhes desse coragem, pra mais uma
escalada. Os sapatos, diziam do quanto de sua vida fora consumida, em tantas
subidas e descidas. Muitas, vidas vividas, naquelas ladeiras. Ladeira da
aflição, ladeira da oração, ladeira da reflexão. Ladeira da preguiça. Ladeira
da coragem, e disposição pra descida. Cosmo e Damião, os irmãos gêmeos, em
carrinhos de rolimã, disputavam quem chegaria primeiro lá embaixo.
O rio, deitado calmamente, estava
lá, quase seco. Agonizante. Com uma
nesga de céu, forrava o sopé da montanha. Aquela casa, do outro lado do rio,
tantos desejaram morar lá. Talvez ninguém tivesse ideia da tristeza que lá, fazia
morada. Um velho, que todos conheciam por vô Antonio, seus últimos dias, vivia
em cima duma cama. Devagar as horas iam, em silêncio de quartos, na penumbra. Remédios
com hora certa pra tomar, esperando no criado mudo. Seu Antonio nem lembrava
mais, da valentia, dos anos de seu vigor. Do tempo de conduzir as boiadas pros
pastos mais próximos da montanha. E ia caçar onça, na mata do Engenho novo. Um
dia Marilusa, a dona do bordel mais famoso da cidade teve o atrevimento de ir cobrar-lhe
uma conta de coito com raparigas e
bebidas. O velho Antonio deu uma surra de chicote na rameira, na porta de casa.
Velho Antonio de nunca levar desaforo pra casa. Antonio de quando o querido
Teodorense F. C. quando tinha que ir jogar fora, sempre o acompanhava. A deixar
dona Gertrudes preocupada porque se o time perdesse, as brigas eram inevitáveis.
Dona Gertrudes dizia que, se não morresse primeiro, cuidaria dele até a morte, assim
disse, assim cumpria. E até aquela data cuidava. Os pombos e pardais saíam em
revoltada, se os homens disparavam seus bacamartes debaixo do trapiazeiro, no
cair da tarde. A preta velha Filomena, empregada doméstica, desde aqueles
tempos, dizia que não tinha mais saúde pra tratar os frutos das caças, de
quando Seu Antonio voltava da mata. Sempre traziam um bicho graúdo, porco do
mato, veado, sariema. No tempo de galinha d’água, nambu e rolinha fogo apagou,
traziam os embornais cheios. E tinha a época do tatus-pebas, dos cágados d’água.
E quando lembravam que peba comia defunto, retrucavam: “Então compadre vamos comê-lo,
antes que nos coma.” E riam das próprias piadas. Mocó, preá, cassáco, e calango
sardão, esses bichos Seu Antonio não gostava de matar, dizia que aquilo não era
caça de homem.
Os saguis toda manhã vinham
saltar pelos pés de manga, goiabeiras e siriguelas, do pomar de dona Lourdes. Vinham
encrencar os passarinhos de Seu Expedito. Doa Lourdes punha bananas descascadas
na sacada e vinham pegar. Seu Expedito ficava brabo, por ele matava todos,
aqueles malditos macacos, mataria tudinho, não deixaria um só. Artur Bernardo,
neto do velho Artur da Mata Fonseca Alves, a segunda família mais influente da
região. Levou um tiro de espingarda que pegou de raspão no pescoço o que o
deixou paraplégico. Morava numa casa avarandada, na margem esquerda do rio. De
onde ficava o dia todo. Dava pra ver a casa do velho Antonio, do outro lado. Dário irmão de Artur, tardes inteiras passava deitado
na rede, no alpendre, do lado oeste do casarão, o que dava-lhes bela visão da
alameda dos Ipês. Naquela época do ano, florido,
enchia o paço de viço e cor. Os galhos da imburana entranharam os fios do telégrafo
e produzia um zumbido. O gato de Seu Irineu indiferente a tudo tomava banho de
sol, na calha de zinco. Inocência viria ao cair da tarde trazendo seus livros
apertando-os ao colo. O corpo esguio, o cabelo castanho, longo, enfeitando suas
espáduas alvas, debaixo do vaporoso tecido de cetim. Rosto de menina, corpo de
mulher. O moço, por instantes eternos, pararia de ler o romance, e seus olhos
saiam voando, lentos, de encontro a gazela, que flutuava na calçada. E os dois,
feito pássaro e caçador se encantavam de se ver. E de ser um para o outro,
fonte de inspiração, de ver, e de viver. Não sabia se um dia pedir-lhe-ia em
casamento, como o casal do romance que lia. E se negasse o pedido? Diferente do
romance. Preferia vê-la morta, a vê-la nos braços de outro.
A cidade com seus mistérios. De
todo dia acordar cedo, e mesmo assim parecia dormir. A torre da igreja
prestando reverência a Deus e toda sua criação. O sino de cabeça baixa, calado.
Talvez, vivesse lembranças do passado. De quando alegre, chamava o povo pra
missa de domingo. Ou pontualíssimo a dizer que hora era do dia. Outras vezes
cerimonioso e triste, anunciava compassadamente que um féretro estaria sendo
conduzido ao cemitério. A calçada alta, a escadaria íngreme, de causar náusea a
dona Minuca. Na hora de descer os degraus, sempre pedia ajuda, ao vendedor de
pão, ao gari, ao pipoqueiro. Ou a quem pudesse ajudar. O calçamento irregular,
de pedras escuras.
A linha do trem enferrujara, a
muito não via comboio. A velha estação ferroviária o dia inteiro olhando pra o
fim da curva. Não perdera ainda a esperança de ver a Maria fumaça de volta,
chegando, fazendo zoada, bufando, estremecendo o ar, intrépida, trazendo
alegria à urbe. O telhado de duas caídas d’água da estação lembrava um relógio
cuco. Naquele quase tarde, de pardais zoadentos. Entre os passageiros, descera
Séba, um rapaz, quase menino ainda. Talvez o único Sebastião cuja parte inicial
do nome era o apelido, geralmente era a parte final, que virava. Menino negro,
pobre, vinha do engenho, do corte da cana. Fora ganhar algum dinheiro pra ajudar
nas despesas de casa. De muitos irmãos pra comer. Seis meses longe de casa. Os
pais eram moradores da fazenda de dr. Nicolau Cansanção Feitosa. Patriarca da
família mais importante do Engenho Novo. Dono de metade das terras daquele
lugar.
Aldo, Almir e Benedito, eram
amigos, pareciam irmãos. Aldo trabalhava na gráfica Fruto de Palma. Almir era
auxiliar de tipografia. Benedito, professor de história. Sempre se encontravam
ao cair da tarde, e iam pro bar de dona Graça, no bairro dos pescadores, zona
portuária. Lugar de encontro da boemia, das prostitutas e estivadores. Ficavam
horas sentados a mesa, na calçada, jogando conversa fora. Olhando a vida
passar. O disco na vitrola tocava uma música, de um cabeludo, de barba negra,
que os rapazes pediam sempre para repetir. A faixa acabou arranhando, após os
versos que dizia:
“Eu conheço bem a fonte
Que desce daquele monte
Ainda que seja de noite”
Os versos seguintes: “Nessa fonte tá
escondida/ O segredo dessa vida” Mas como estava arranhado ficava só repetindo:
“Nessa fonte tá escondida/ tá escondida/ tá escondida...” E os rapazes cantavam
remedando o arranhão, e riam muito. Aldo era casado com Marilda, Benedito com
Olga. Almir solteiro. Marilda, não era muito de reclamar, porque o marido
gostava de ficar horas com os amigos. Olga, no entanto era exatamente o
contrário. A ponto de Benedito muitas vezes, entre os amigos declarar: “Um dia
ainda mato a mulher.” Todos riam do desabafo do colega. Era mesa de bar. Em
mesa de bar, vale tudo. Até contar um crime que prometera cometer, que talvez
jamais se concretizasse.
Na rua onde a professora Maria da
Graça morava, havia uma biblioteca, um artesanato, e a casa de um poeta, que o
governo municipal transformara em museu. Neste de cá, ela sempre parava, e
entrava. Ficava horas, vendo os objetos, que um dia pertencera ao vate. Tinha
extrema admiração pelos poemas que escrevera. E era como se tivesse escrito
exclusivamente pra ela. Mesmo não tendo vivido até sua época. Um tempão, na
sala de música, ficava encarando um óleo. uma pintura enorme que retratava o
poeta, sentado serenamente, de paletó com seus óculos de aros redondos olhava.
Era como se estivesse vivo, só que numa outra dimensão. E via e sentia, tudo
que se passava do lado de cá. Senhorita Graça, sentada na cadeira de vime,
justamente aquela onde o poeta sentara pra fazer a tela. Onde tantas vezes sentaram. Graça por instante, teve a sensação,
de ouvir o poeta declamando um dos poemas dele, dos mais conhecidos, e que ela
muito apreciava:
“Os dias, feito pássaros
As horas, como folhas secas
O vento da tarde, a secar meus olhos
Um dia, todas as canções, um dia
Vão abraçar teus olhos,
Ai meus ossos, minha boca
Se encherão de Graça
A te chamar
E minha mãe, já velha,
Me tomará ao colo
Me embalará cantando
Cantiga de ninar
Como criança velha, um dia
Pro céu me levará
E o rio, pobres rio
Haveria de chorar, eternamente.
Beatriz, irmã de Maria da Graça, fora a capital, visitar no presídio, o
namorado, Miqueias Apolinário. Fora o que atirara em Artur, o rapaz que ficou
paraplégico, trabalhara no banco. Tudo aconteceu durante uma tentativa de
assalto, ao banco Mercantil & CO., da pacata vila do Engenho Novo. A noite
caiu, e a montanha com sua escadaria de luzes, atraiu um objeto voador não
identificável que passava, e acabou pousando, no cume. Uma portinhola se abriu,
e homens, com corpos humanos e cabeça de piranha desceram, e ficaram olhando os
arredores. Pareciam admirados com o que viam. Admiravam a edificação mais
elevada, a torre da igreja. Naquela tarde o sino tocou, tocou fúnebre. Enquanto
um féretro ia, conduzido ao cemitério.
Fabio Campos, 26 de janeiro de 2018.