Olhos de Sangue (Eyes Bloody)





Minha mãe se havia sentada à mesa. O dia acordou enfadado. Teve noite atribulada.  Encostado na parede, junto ao relógio escutou, enquanto dizia: hoje é domingo, pé de cachimbo. A xícara de café a fazer afagos nos rostos. Afagos de perfume, de calor do coração, calor humano. Minha mãe disse bem assim: Chame a menina pra tomar café. Que menina? Aquela ali, em pé. De fato, havia uma menina de pé no corredor. Mas somente minha mãe via. Talvez a vida inteira, lá estivera. E ninguém nunca a notara. Somente minha mãe. Talvez, vestisse branco. Os longos cabelos, um pouco desarrumados, desenhavam espáduas ossudas, ganhavam as costas. Sapatilhas gastas. Olhava, como que olhava. Não, claro, um olhar qualquer. Olhava como quem se quer estar. Ser aceita. As mãos escondida às costas. Contorciam-nas, não sei. Leve balançar dos ombros. Os pés, indisfarçadamente irrequietos.

Um homem, de seus oitenta e poucos anos, chegou como quem chega. Puxou uma cadeira, sentou. As pernas afastadas. Pernas de pensar na vida. Fez-se cabisbaixo. A ele minha mãe não via. Trazia coisas de outro mundo, mesmo sem nada ter entre as mãos. Olhava como quem pensava. A cabeça cheia de pensar. Fardos que foram, ao longo dos anos, encurvando-lhe os ombros. E que o acompanharia, pro resto da vida, mesmo depois de ter ido embora. Dedicou-se a um cigarro como quem faz rede de pesca. Como se lesse pensamentos, disse que sabia da história da menina. Ia contar tudo. Alguém, de quem não conseguia lembrar direito, tinha dito que: velhos que viam, o que os outros não viam, próximo estariam de partir. Seis décadas se passara desde então. Próximo, muitas vezes, é palavra camaleônica.  

A menina não era daquela família. A minha mãe sabia disso. O café esfriou na xícara. Friamente olhava, com seu grande olho negro. A menina, com seu olhar triste, de sangue. Era menino, o que morrera com poucos dias de nascido. O pai, quase não foi ao sepultamento. Cinco décadas era muito tempo. A cada lustro, coisas, além de governos, mudavam. As paredes ganhavam tinta nova. O banheiro ganhava pia nova, de um material branco como sapólio. Os azulejos ainda não haviam tornado-se foscos. Um friso com uma lista vermelha no rodapé era moda. Feio, mas moda. Os caibros quadrados, aparelhados, as ripas enxadrezavam dando guarida as telhas, que a tudo assistiram. Ouviram músicas em inglês, nada entenderam, porém marcadas ficaram para sempre. As frestas das telhas desenharam pontos de exclamações gordos na parede contrária. Balões de pensamento de histórias em quadrinhos, engraçados. 

Antes que esquecesse, antes que outras coisas desviassem o foco. Antes que mais embaralhado ficassem as coisas, outra história veio e ficou pairada no ar. O velho teria que esperar. Havia outra história ainda mais instigante pra ser contada. Um caso dos tempos atuais, que muito tinha de medieval. História, mesmo não sendo de trancoso, começava como “Era uma vez...”.

Pois bem, era uma vez, um castelo. Um daqueles castelos que nossa imaginação fica perplexa ao contemplar. Extasiados diante de tanta imponência, em arquitetura e beleza. Bandeiras tremulantes sobre as abóbadas. Os gigantescos portais, perfeição de assentamento de pedras, dos imensos muros de arrimos, fortificação rodeada de jardins. Belíssimas sacadas, ornadas de estátuas de bronze. Delfos, deuses e ninfas flutuavam sobre fontes de águas dançantes. O pomar com suas variedades de plantas de todos os continentes. Como se ali, um congresso de vegetais. Um encontro mundial de plantas, cada uma trouxera em majestade e graça seus dons e virtudes. Cactus em rudeza de deserto discutiam acaloradamente com musgos dos pântanos. Exibiam-se joviais orquídeas do velho mundo. Haveria de haver em algum lugar, quem explicasse por que quando alguém  põe os olhos num castelo, imediatamente sente uma necessidade quase incontrolável de o possuir. Desencadeia no íntimo de cada ser o sentimento de posse. 
   
Seis eram os herdeiros, daquela suntuosidade edificada. Duas meninas, quatro meninos. Vivera infância e adolescência na mais completa paz. Paz que o mundo não conseguia contaminar. Assim como os filhos do Jó bíblico. Cresciam em virtudes, ciências e sabedoria. Disciplinados na fé cristã, no amor ao próximo, na compreensão, na fraternidade, A prosperidade habitava aquele palácio. Três deles, duas meninas e um menino, tiveram pendência às letras, sedentos de saber, do conhecimento. Profundamente mergulharam seus espíritos rumo ao domínio das ciências dos homens. Outros três descobriram que as habilidades, os dons concebidos em suas almas, era o do deus Hermes, do convencimento com as artes do comércio. Possuíam enfim, poder de convencer persuasivamente, com a palavra.

Assim como nas Sagradas Escrituras, dois dos filhos, os mais velhos, decidiram partir. E tomaram do vosso pai a parte que lhes cabia na herança. E nunca mais retornaram ao seio paterno. Muito embora os pais buscassem notícias deles. De longe acompanhavam, e oravam pelos seus destinos. Contraíram matrimônios duradouros e profícuos. Suas esposas foram como o fruto da videira. Encheram suas casas de filhos e progrediram junto a parentela que fundaram, e cresciam em espírito e graça. E mesmo longe continuavam herdeiros de seus pais. Dois meninos e duas meninas. Tudo o que de bom, os pais puderam proporcionar proporcionaram aos filhos que ficaram. Assim viveram e cresceram em prosperidade e bonança.

O céu que cobria aquele palácio, e aquela família, por muito tempo foi um céu de nuvens alvas, de alvura cândida. O firmamento que os cobria era de um Deus justo, santo, fiel. Culminado de um azul impecável, irrepreensível, que proporcionava-lhes belíssimos verões. Os meninos e meninas partiam em fantásticas excursões, rumo a outros condados que lhes oportunizavam esplêndidas façanhas. Magníficas aventuras. Conheceram povos de costumes exóticos, e mesmo rituais estranhos a sua cultura. Povos de diferentes tradições. Muito aprenderam. Bem como compartilharam saberes. Mas isso teria consequências graves. Participariam de cerimônias religiosas que não agradavam seu deus, prostraram-se diante de deuses pagãos. Adoraram outros deuses que não o seu de origem. Prestaram culto a um deus que valorava em extremo o ouro e a prata.

Na entorno daquele maravilhoso castelo, o tempo da bonança foi ficando pra trás. Nuvens negras, do mundo das trevas ameaçadoras pairaram sobre o palácio. Os filhos daquela família passaram, desde então, a tecer um pelo outro ódio, inveja, espírito de rivalidade. Cada um que quisesse ser maior, e melhor que o outro. Como disse Jesus um dia: “Reino que se divide contra si mesmo, tenderá a perecer.” O primeiro que desceu ao sepulcro foi o pai. Depois, além da mãe, outras mulheres tornar-se-iam viúvas. Enfermidades incuráveis feito rastro de pólvora, se alastraram no seio daquela parentela. O castelo tornou-se sombrio e sem vida. Toda madeira, de pórticos, portões, pontes e tablados feridos pelo cupim, o ferro todo corroído pela ferrugem, o bronze mofou, o mármore trincou-se. O salitre feriu as pilastras de sustentação. As estátuas adquiriram aspectos demoníacos. Os jardins visão dantesca. As plantas irremediavelmente envenenaram-se. Ainda assim os filhos desembainharam suas espadas de fel, e procuravam ferir com a língua, uns aos outros, com o único e vil interesse de herdar o lamaçal na qual transformara a única e pobre habitação de sua herança. Assim foi, assim tinha sido.

O velho, iniciou-se a contar sua história. Num tempo, muito lá trás. Disse. Muito antes de ser essa casa erguida. Existia aqui um estábulo. Nele morava uma família. Eu, minha mulher, e essa menina, Cecília, minha filha. Eu cuidava dos cavalos da paróquia de Santa Luzia. Era eu o cuidador dos cavalos do padre Capitulino. Um dia, com muita raiva, por ter perdido meu ganho, em aposta no jogo de baralho. Tomei umas cachaças. Bêbado, fui tratar dos bichos. Daí, maltratei um cavalo. Assustado com a brutalidade o animal avançou contra mim. Chamei Cecília para abrir a porteira, se não ia acabar pisado. Assim que ela abriu a cancela, o cavalo empinou e a pisoteou matando-a. Tomado de mais ódio esfaqueei-o até matá-lo. Assim foi. Assim aconteceu. 


Ilustrado por Aika (6 anos, neta do autor)   

Retrato Mofado



É velho sentar a calçada. À porta de casa a infância, ainda estava lá. Sentada, esperando que um dia os meninos voltassem. Os cotovelos sobre os joelhos, olhando pros pés. Os olhos volviam pras duas mãos de Deus. Os paralelepípedos, com o tempo, acabaram enrugados, envelhecidos, nunca esqueceram um só dia. Pedras que brincaram. Meninos que viraram pedras.

Dona Áurea, na cozinha, eternamente preparando almoço, jantar, um café da manhã. Quando não, um doce de leite, de pelotas. Por certo lá se encontrava, agora mesmo, na lida com quitutes, temperos, a mão na massa. Bom mesmo seria olhar pra trás, e ver novamente aquelas portas abertas. Os quadros nas mesmas paredes. A rede do Ceará com os punhos encontrados nos armadores, esperando os meninos, e voltarem a ranger e ranger, a dar solavancos e balanços. Até estourar alguns cordões.

A casa. Tristemente foi ficando sozinha. As vizinhas, simplesmente foram embora. Em seu lugar surgiram outras. Os anos passando, a rua vai mudando, só aquela casa continuava lá. Solitária, triste, esperando o dia que um dia chegaria. De sua morte, um dia, de ser sepultada um dia. Tantas foram as vezes que pariu seus filhos. Devagar foram saindo, um a um, indo embora, ganharam o mundo. Devagar passaram, um a um, por aquelas portas. Engatinhando, aprendendo a andar e andando, correndo, de velocípede, de bicicleta [inicialmente com as rodinhas de apoio]. Descalços, de chinelos, de sapatos. A gente e a casa éramos como crianças aos pés dos pais.

A escola. Ela cortou o cordão umbilical deles com a casa. A primeira comunhão dando significado à reza. A festa de são João de cada ano, fogos de artifício, ser pastorinho no pastoril. Ser anjo na lapinha viva, de natal. O jogo de bola a perna quebrada. Os dias sem ir à escola, o pai arranjou umas muletas. Parece que vão voltar os tempos das cisternas. Do jeito que vai, com a escassez d’água não vai demorar muito e voltam. O verão anda tão sertão.

Um dente, lá do oitão da boca, começou a doer. Ia alta a madrugada, e o dente a doer. Por que será que dente só dói em hora inconveniente? Todo mundo sabe disso. O dia inteiro tinha pra doer. Deixou justo pra depois da meia-noite. Pra aliviar se pôs a mastigar cravo da Índia. Dava sensação de adormecimento. E a dor dizendo estou aqui. E se botasse pasta de dente. E a dor nem aí. Lembrou duma simpatia: fazer um chá de camomila, embeber um algodão e colocar em cima. E a dor. Tentou [sem sucesso] rezar a Nossa Senhora das Dores. E a dor. Encheu as bochechas com uma mistura de elixir sanativo, um pouco de água e sal. E a dor. Deu murros na parede, mas só conseguiu ferir os nós dos dedos. E a Dor! [agora, latejando no dente, e nos nós dos dedos]. Mordeu até rasgar a fronha do travesseiro. E a dor. Finalmente deu sinal que ia parar. A dor de dente. Pela janela o dia [ardentemente esperado] vinha amanhecendo. Prometera fervorosamente, assim que amanhecesse iria ao dentista. Acordaria o homem do boticão logo cedo. Estava muito cansado pra isso agora. Não doía mais, o cansaço, e a ida ao dentista ficaria pra outro dia.

A paixão pela prima. Deve está escrito no livro dos livros da Paixão de Afrodite e Vênus: A primeira paixão de um homem será pela prima. Não sei se tem fundamento mas o narcisismo pode ser o responsável por isso. Projetamos naquele ser, a nós mesmo. Uma vez que somos tão próximos de sangue, de carne, e de fisionomia. Daí a amamos com todas as nossas forças. Paixão avassaladora. Muito provável que não exista pessoa mais perfeita na face da terra. O cabelo (igual ao seu), castanho, deslumbrante, sedosos, cheirosos, perfumados. Bastaria chegar perto dela, assim por trás. Bastava sentir aquele cabelo roçando no rosto, nos lábios, e quase ia a loucura. Sua mãos eram de seda (iguais as suas) aquela pele, aquela tez, morena (igual a sua), aqueles olhos castanhos (iguais aos seus) aquela boca, que boca sensual, bem desenhada carnuda, voluptuosa. O não, dito tão docemente, que jamais pareceu não, Mas infelizmente foi não.

Quando o irmão mais velho casou, foi morar numa casa de Cohab - conjunto habitacional. Bonito ver as casinhas, todas iguaizinhas, os telhados iguais, as portas iguais, a pintura idem. A rua limpinha de dar gosto. Acho que foi sonho. Um dia viu uma cena pra lá de maluca. Os maridos saindo de suas casas de Cohab, pra ir trabalhar. Todos ao mesmo tempo, trajados de paletó, chapéu de massa, gravata, pasta zero, zero, sete, cidadãos classe média, americano, dos anos quarenta. As mulheres todas idênticas, em blusa e saia godê, de avental branco, cabelo preso em rabo de cavalo. E se despediam com um beijo. A mulher ficava em pé da porta acenava. Mas, o que prevalecia era uma piada contada na roda de amigos do pai, e nunca mais se apagaria, sempre que lembrava do irmão, vinha a anedota. “Casa de Cohab é tão pequena que o cara entra, se deita na cama, a cabeça e os pés ficam do lado de fora.” E imaginava o irmão naquela situação incômoda, engraçadamente desenhado por Caruso numa charge. O pai e os amigos, riam e riam divertidos.

 Os quinze anos. Não existem quinze anos sem festa. Isso, claro, se a aniversariante fosse do sexo feminino. Pros menino, a data passava em brancas nuvens. Era preconceito, resquícios da ditadura, machismo, do tempo do carrancismo. Engraçado, fazia tempo que não ouvia esta palavra... Fosse o que fosse, só sei que virou trauma. Foi desse, não direito a uma festa de aniversário, desde criança, que pegaria a mania de fazer festa de aniversário pra tudo quanto era coisa. Aniversário de tantos anos de conclusão da faculdade, aniversário de um ano de um neto, aniversário de quarenta anos do curso de datilografia. Comemorar [sem beber] um ano sem beber, um ano sem fumar. Um ano, passaria a ser referência para todos os tipos de superações.

 A ovelha e o porco. Não sei qual dos três, mais marcou minha infância, se o porco, a ovelha, ou a gata. Na casa da minha infância, meu pai gostava de gatos. Não de qualquer gato, tinha preferência por gatos malhados. Criou um monte. E dava do seu prato, da sua comida pra eles, por baixo da mesa. Minha mãe não gostava por que sujava o piso da cozinha. Depois que meu pai morreu, uma gata que ele gostava muito também adoeceu, e morreu. Coube a mim, fazer o sepultamento. Lembro que levei o corpo até a ribanceira do rio e deixei lá.  Dentro de uma caixa de papelão. O que lhe ocorreu não sei. O porco, vivia num chiqueiro improvisado atrás de casa, mas um dia ele escapou. Corri, corri atrás. Faltou paciência taquei-lhe uma pedra no meio da testa, caiu no chão ciscando. De medo, corri apanhei-o desmaiado e num esforço enorme levei pra casa. Sujei a roupa e quase apanhei por isso. A ovelha comia caroço de algodão. Achei bonito vê-la comendo. Dei o saco inteiro de caroço. Morreu empanzinada. 
  
Alguém falou que se você encontrar uma foto velha, mofada de família, veja em que parte estaria mofada. No local que estiver bolorento, naquela parte do corpo se vai adoecer. Se for nos olhos, a pessoa vai ficar cego, se for nas mãos, vai ter Parkinson, se nos pés, paralisia, no peito pode morrer do coração, ou ter câncer de pulmão.

Tia Maria morreu. Na sala havia muitos retratos da família. Num deles tia Maria aparecia de pé, trajada num belo vestido estampado. O cabelo negro, longo bem penteado. Olhar sereno. A mancha de mofo no retrato de tia Maria tomava-lhe parte das nádegas. Tia Maria morreu de câncer no reto. Acho que tia Maria nunca queria mesmo era receber a visita da sobrinha. Sobrinha que lhes dava conselhos. Conselhos assim, que se dá a alguém que morre de medo de avião. Vai viajar de avião. E fica sabendo quão perigoso seria andar de avião. 


Ilustrado por pintura [tinta acrílica sobre papel sulfite] de Aika (7 anos) Ela mesma disse que se chamava: "Homenagem a Maria"