IN[Z]ON(A) FICÇÃO outubro 2024


 

Capítulo 1                                                           (A)

As nuvens escuras, borrões de uma aquarela noturna. A lua flutuava sobre o caldo sinistro e silhuetado da montanha. Refúgio de vida selvagem. Saguís e corujas bailando, equilibrando-se, sobrevivendo o quanto podiam na escuridão. Os mosquitos e seus potentes radares localizavam com precisão animais de sangue quente, pra mais um banquete, noitada de festa. Formigões em procissões, em cortejos, estandartizando folhas. Caídas, de troncos escarlates de pântanos, charcos, cheios de vida, com cheiro de morte.

Era noite chuvosa. Chuva de vento, açoitando o telhado, os vidros da janela da casa de esquina. Tinha que ser logo de esquina. Nada contra, porém não achava legal. Não simplesmente por localizar-se numa encruzilhada. Noutra ocasião explicaria melhor o porquê do receio. Tinha pressa em contar o que importava. Receio besta aquele. Já cinco anos se passara desde que moravam ali. Não lembrava de algo tão sério como o que aconteceria dali a pouco. 

Na sala, uma xícara de café pousada fumegante na mesinha de canto. Enquanto lia o jornal Seu Antônio. Dona Dulce, na cozinha lavava a louça da janta. Taciturna, apreensiva pelo vendaval àquela hora da noite. Gioconda, Tábata e o primogênito Isachar nos quartos recolhidos dormiam. De repente, da rua um barulho, estampidos, tiros, gritos, alarido de gente correndo. Seu Antônio foi até a janela, abriu o pórtico que dar-lhe-ia, visão do que havia na rua. O vento frio, salpicou-lhe o rosto. E lá no calçamento encharcado de chuva um corpo no chão, corpo de homem morto.      

A água, o rio. A mais pura, e cristalina criatura. O sol, um ser tão belo. A água lânguida deslizando-se entre as pedras. Música para os ouvidos. Feito corpo nu, de mulher. Magnífica melodia.  


Talvez, numa noite qualquer, de agosto, tudo parecesse normal, dentro das casas. Mas seria apenas aparência, talvez fosse isso. Dentro dos corpos humanos aquecendo as almas, se esquecendo "das cenas terríveis, de visões espantosas, do rigor do dia do juízo, das pragas, incêndios, bruxarias, maldições" com tanto fervor citada em oração apressada, cheia de temor dos castigos de Deus. As paredes tenuamente clareadas por bicos de candeeiros, esforçando-se pra dar um pouco de quentura às conversas, debulhadas, sob um lastro de mesa. Tosca mesa de madeira. E a luta ali era pra espantar o silêncio que vinha do escuro, e dos vaga-lumes suicidas que carbonizados morriam camicazes avançando pra chama. 

Gioconda fazia-se sol, deitada na preguiçosa brincava com os dedos entrançando um cordão imaginário. Derick o gato, despojado sobre o cimentado morno, fazia seu asseio de língua, o banho matinal, começando sempre pelas patas. No tapete um cem números de figuras surgindo da imaginação da menina, um urso polar, uma velha com um cachecol que cobria-lhe a cabeça sorria desdentada, e seus olhos não possuíam pupilas. Gioconda perguntou a Derick o que ele achava de tudo aquilo? Ainda mais enigmático Dereck devolveu a pergunta: - O que você considera como: "tudo aquilo"?. Referia-se não apenas ao misterioso assassinato da noite passada. Mas a estranha história contada pelo pai Antônio antes deles irem pra cama.

A história de uma mulher encontrada morta dentro do rio. História entrecortada de medos, nunca antes revelados. Relampejos de insensatez, no brilho da lâmina da faca. Na visão horrível da mulher de olhos esbugalhados diante da morte, nos poucos segundos que um ser, depois de ser golpeada várias vezes com facadas, vem a morrer lentamente dentro d'água. Seu Antônio parecia deliciar-se com o medo causado por sua narrativa propositadamente carregada de terror. Adrenalina acelerando o coração, adrenalina correndo solta dentro da água escarlate que corria nas veias do rio. Dona Dulce, apenas o fato de ver a faca sobre o balcão da pia dava nos nervos. Os golpes eram mudos. Uma sucessão de imagens desconexas, borradas, interrompidas por chuvisco cinza, como tevê saindo do ar. Algo muito forte, acontecendo. Sem ter certeza se era real ou só coisa da sua imaginação. Em milésimos de segundos, sem querer, sem saber o porquê, se via nele, um assassino frio, cruel, desalmado, implacável. Não acreditava que estivesse acontecendo. Sentia-se como se ela mesma fosse o assassino da moça. Jamais seria capaz de tal atrocidade. Como era possível? Só podia ter sido outra pessoa. Outro alguém que habitando seu ser, praticara ato tão abominável. Pra depois ir embora. E voltar a dormir tranquilamente no seu quarto, debaixo do lençol aquecido pelo seu corpo, como se nada tivesse acontecido.

A árvore, ao aproximar-se o ocaso. O seu ocaso. Ao sabor do vento balançava insistentemente seus galhos, como se afagasse a relva, sua neta. Como enormes braços, de velhos, de músculos flácidos, descarnados, calejados de tanto trabalho.