VILA ÁGUAS BELLA 17/02/2025.


Seu Antonio acordou sentindo uma sensação estranha, algo sobrenatural ocorrera naquela madrugada. O que realmente acontecera não sabia direito. Saiu da cama direto para o banheiro. E quase desmaiou ao se ver no espelho. Instintivamente levou as mãos ao rosto. Ele simplesmente não era mais ele. Seu Antonio quedou-se perplexo, estava no corpo de outro homem. Branco, ostentando volumosa barriga, os olhos claros e um cabelo liso e alvo. Logo descobriu que se chamava Robson, pois sua suposta esposa que se encontrava na cozinha assim o chamava.

Boquiaberto viu um imenso pomar no seu quintal, morava numa casa a beira-mar. Da porta da cozinha dava para ver a praia, o imenso oceano, ainda mais bonito assim pela manhã. Sorrindo-lhe no cintilante brilho do sol refletido na água-marinha em acenos de ondas, convidando-o a espumas com cheiro de maresia. O campinho dos meninos jogarem futebol, não carecia de murada. Uma clareira aberta no imenso mar de coqueirais na encosta da praia.

Interessante era que Seu Antonio, nessa nova vida, tinha o mesmo número de filhos da outra vida, três. A diferença que eram dois meninos e uma menina: Luciana, Luiz e Cristiano. A esposa, dona Carmem, aparentava ser mais velha que ele. Ela costureira, ele um funcionário da Vigilância Sanitária aposentado. Apreciava tudo que vinha, ou era trazido do mar, as marés, as ondas, o cheiro de maresia, os frutos, a pesca, os pescadores, a pescaria. A casa em que morava, a rua, o mar logo ali.

Seu Robinho, como era conhecido, tinha uma rotina de ir ver o mar pela manhã, passear na areia por longas caminhadas, sempre procurando se superar. Aumentando sempre o percursos. Avaliando a que horas a maré estaria enchendo ou secando. Às vezes Os filhos o acompanhavam. Outras vezes ia sozinho. Ia ao mercado do peixe, e quase sempre voltava para casa trazendo pescado. A tarde ia a periferia da vila, num reduto dos pescadores, as docas das Salinas, tomada por embarcações, canoas, barcas, barcaças, botes, algumas velhas, outras em recuperação, aportadas para o descanso diário, ou sem condições de navegar, simplesmente abandonadas.

Lá ia Seu Robinho, pilotando sua bicicleta Monark, dobrando a pracinha onde havia um monumento, a âncora centenária, a peça de moinho. Passaria na barbearia de Rubens, por um bom tempo ficariam jogando conversa fora, o senhor General, funcionário público aposentado da marinha mercante, um negro velho, sempre bem-humorado, sorriso largo, de dentes alvos, de volumosa pança, braços e peito aberto. Também chegava Zezinho “Boa Vida” e estava formado o trio de contador de lorotas, sempre traziam casos absurdos relacionados a desempenho sexual. As gargalhadas estaladas, individuais ou coletivas, dava para se escutar de muito longe.

Cauby funcionário da balsa, controlava a travessia do rio Manguaba na sua foz. Cauby ia até a barbearia de Rubens,  depois ia aliviar o calor daquele intenso verão, tomar uma água de coco no boteco do Jadinho. Sempre, naquelas ocasiões, passava no boteco do Jadinho, Por volta das quatro da tarde Jadinho tirava seu saxofone da caixa e dedilhava o instrumento, extraindo dele acordes, e pedaços de melodia que lembravam noites de seresta e os antigos carnavais. Professor Zito, e professor Sérgio apareciam no boteco, somente em dia de sábado para degustar doses de cachaça com limão acompanhada de um fruto do mar, uma lagosta, um caldo de maçunim, um polvo, um escabeche de cação, uma pratada de camarão, uma panelada de siri ou caranguejo guaiamum, capturado no manguezal. Quando a pesca nada dava, tinha que encarar um assado de cangulo um peixe de qualidade inferior. Ou um prato de unha-de-velho.

Dona Maria, a moradora da casa da esquina que dava para o ancoradouro da balsa, tinha um pé de carambola no quintal. Badeco que trabalhava no outro lado da rua, no prédio da telefônica, ia pedir a Dona Maria para pegar umas carambolas. Ela sempre permitia. A cadeia pública guardava ainda os traços arquitetônicos do século dezesseis. As janelas tinham largura nos tijolos dobrados. Entrar ali era mergulhar no túnel do tempo. Dava pra sentir a presença das almas literalmente apenadas, e quantas vidas se teriam perdido naquela clausura. Tudo cheirava a tempos passados. O som de grades se chocando, elos de correntes se arrastando entre os grilhões, os lamentos, os pedidos de clemência, vindo dos porões, das masmorras, não era somente algo imaginado. Eram cenas seculares se eternizando, se repetindo. Como se aquele ambiente aterrador e hostil jamais conseguisse se livrar da inclemente maldição do passado.

A escola Ciridião Durval, abarrotada de barulho de crianças, que um dia cresceriam. Porém, continuariam crianças. Ainda que crianças velhas, que já se tinham ido. Partiram em busca de seus sonhos, de aventuras. Alçaram vôos, capitaneadas por seus ideais, navegariam por mundos estranhos. Ora voavam, ora sobrevoavam, pilotavam suas embarcações imaginárias, navegavam até o alto-mar. Muitos venceriam as tempestades, muitos sobreviveriam, muitos naufragariam. Muitos virariam soldados, e com tanto orgulho serviram a pátria. E depois, tantos outros se desiludiriam, e se atirariam ao delírio, a embriaguez que o mundo podia oferecer, e viveriam também suas frustrações. Outros partiram, e continuariam partindo com um gosto de sal na boca. Deixando para trás, amigos, vivências, experiências, paixões, amores, dissabores. O destino os empurrariam, obrigariam a darem às costas, sem olhar para trás. E lágrimas deslizaram pelos seus rostos. E nunca mais, é muito tempo, quem sabe voltariam. Tito? Onde estais? Edvaldo? Para onde fostes? Seu Paulú, me dê conta desses meninos!

A capela de Nossa Senhora da Piedade ainda preservava os traços barrocos, a própria imagem vinda de Portugal datada de 1607, no frontispício, o marco de sua fundação. Dona Lourdes zeladora, dona Belmira vereadora, a mantenedora. A igrejinha delimitava a praça com o próprio nome da santa, que ficava logo em frente, e a Rua Vigário Bello, com a placa indicando a mais de século que aquele centenário vilarejo fora parte importante do descobrimento do Brasil. O lugar que um dia fora chamado Águas Bellas, de antigo casario, de ruas com antigo calçamento, onde carruagens imperiais trafegaram, "Ò peble! Curvem seus corpos, o imperador estar a passar!". O pisoteio dos cavalos e coturnos dos soldados, quebrando o silêncio da madrugada, ainda dar para se ouvir. Os estampidos dos canhões e bacamartes. O embate entre corsários e capitães de terra. Os gritos de horror dos condenados a forca, das chibatadas nas costas dos negros escravos encarcerados. Nos recônditos assoalhos, por baixo das tábuas, ensebadas de óleo e rum, carcomidas pelos cupins, dobrões de prata, espadas, moedas, medalhões de ouro, e pedras preciosas, tantas sepultadas, cujos donos, piratas, mercenários, caçadores e desbravadores destituídos de suas aparências humanas, apoiados somente por suas pobres almas, que teimavam em permanecer aprisionadas aos cadáveres, aos restos mortais do que um dia foram seus corpos, e defenderiam como poderiam, seus tesouros.  

 


 

A MURALHA IN [Z[ [A] NOS 04/02/2025



Seu Antonio encasquetou que os crimes do homem do meio da rua e da mulher do rio, não teria passado de um delírio. Talvez um delírio coletivo. Fruto da imaginação. De onde tirou essa conclusão, isso é que torna o caso ainda mais complicado. Pela ausência de ações das autoridades, da polícia, que nada investigava. E pasmem, da lua. Seu Antônio tinha, com o satélite natural da terra, um vínculo muito forte. Era coisa de infância. Sua mãe dizia que ao completar sete meses de gestação, teria ficado fissurada pela lua. Daquela data em diante, todas as noites, assim que o sol se punha, a mãe de Seu Antônio tinha por obrigação procurar a lua, e ficava horas a admirá-la. Um prazer imenso, sentia o menino, naquele gesto que a mãe, por força da vontade dele, ficava a admirar a bola de luz flutuando na imensidão do cosmo. Era uma noite de lua cheia, a apenas sete dias pro nascimento de Seu Antônio algo estranho aconteceu, a criança chorou no ventre da mãe. Para os mais velhos isso era um mau presságio.

A parede, possuía uma textura de cor alaranjada. Como  havia se erguido ali, ninguém sabia. No meio da mata. E não parava por aí o mistério, ao olhar para cima não se conseguia ver o fim do imenso muro cor laranja, incrivelmente se perdia céu à dentro. Simplesmente incrível, um muro que não terminava, nem para cima, nem para os lados. Monalisa, Isachar e Tábata estiveram uma vez ali, isso lá na infância deles, estavam brincando no sítio da tia Emília, entraram na mata e se depararam com o muro, ao tocá-lo Monalisa sentiu-o gelado, Isachar  tocou-o tomou um choque elétrico, e Tábata sentiu sua mão afundar, como se a colocasse num lago. A reação foi imediata, saíram correndo. Se tivessem esperado mais um pouco, teria presenciado algo fantástico, um imenso portal se abrindo dando passagem para o outro lado. Derick que não fugira, olhou para lá dentro, e arriscou entrar pra ver o que havia, além da muralha laranja.

Seu Antônio estava de frente pro espelho do banheiro, fazendo a barba. Muito queria entender por que todas às vezes que se barbeava, lembrava da primeira vez. Era sempre a sim. A primeira vez, que fez a barba, nem barba tinha, o aparelho era do pai. E tudo que conseguiu foram alguns pequenos cortes que a mãe percebeu e ralharia com ele, por aquela proeza.

Uma espécie de cidade envolta numa redoma de vidro equilibrava-se sobre vigas, na encosta de uma montanha. De repente, da linha do horizonte começaram a surgir naves espaciais, um exército inteiro de naves de vários tamanhos e formatos. Derick correu a se proteger debaixo de uma árvore. As naves foram se aproximando e pousando lentamente fazendo um barulho ensurdecedor.

O gato não tirava o olho das criaturas que lentamente desciam das aeronaves, alienígenas, seres os mais estranhos, mais pareciam monstros marinhos, lulas, polvos, siris, e outros crustáceos, cheios de tentáculos, olhos ofídicos e boca de peixe. Derick entendeu que iam discutir algo sobre a cidade da redoma de vidro. Isso porque eles se colocaram em círculo. Um que tinha a cara de tubarão-martelo parecia ser o chefe, pois começou a falar, se é que aquilo poderia ser chamado de fala. Um grunhido como de alguém tentando falar embaixo d’água. O tempo todo apontava pra cidade.

Seu Antônio lembrou de um dia, na casa de sua infância, estava sentado à mesa com a cabeça apoiada nos braços. Não estava nem triste, nem alegre. Porém, sua mãe acudiu perguntando-lhe o que tinha. Respondeu com um grunhido. Sua mãe foi fazer um chá. Era sempre assim, O menino não tinha nada mais do que cansaço, por ter uma manhã cheia de afazeres da sua natureza, caçar passarinho, tomar banho de rio, armar arataca para pegar preá. Escalar mamoeiros, mangueiras e cajueiros, atirar pedras em umbuzeiros pra conseguir-lhes frutos, que no mais das vezes inexistia, porque não era tempo.

O ataque foi imediatamente decidido entre eles. Já voltavam pra suas aeronaves quando o contra-ataque iniciou-se. Os habitantes da cidade da redoma de vidro, surgiu no meio da campina. Era um número colossal de guerreiros, havia uma tropa de soldados portando lanças e escudos que corriam na frente. Em seguida, homens montados em dinossauros, emas e lagarto gigantes, também pterodáctilos, voavam rasantes montados por guerreiros com armas de fogo. Os alienígenas foram pegos de surpresa, a maioria não iria conseguir embarcar em suas aeronaves, e o combate iniciou-se ali na campina. O mato verde experimentou naquele instante o tinir de aço se chocando, os gritos de raiva, o som de ossos se partindo, de músculos dilacerados, os urros de dor, de ódio, e um rio de sangue correndo sobre a montanha.