Delírios Estrauss em 3 D

Bom seria se fosse outono, já que era outubro. Chegou como quem chega. Sempre assim chegaria. Como era bom rever mamãe, os irmãos. Filho longínquo de volta. A casa em que nascera continuava a mesma, mumificada. Mas o céu, já não era o mesmo céu que deixou desde que se fora, não era mais. Abraços, apertos de mão. Tão bom tudo tão família. Mãos falantes, como dantes sudoríparas, tremeluzentes. O sorriso ainda mais inteiro. Compondo melhor o rosto sulcado pelo arado do tempo. Talvez já sentisse a ferrugem lhe comer. Em cima da cama, a mala aberta no quarto que jamais lhe pertencera. Voltava a ser, ainda que assim fosse. Novamente a cama reclamou o peso extra que o menino velho adquirira. Chorou, mas pouco adiantava, tudo muda como tudo mudou. Porém mudo nunca esteve, não estava, jamais estaria. 

A casa continuava a explorá-lo. E ia andando empurrado pelas paredes dos longos corredores. Corredores que talvez lembrassem manicômios. O cheiro nauseabundo de hospitais virado em fumaça de cigarro e nicotina. Viciado o único ar respirável. Ala escura, ala clara. A cadeira de balanço calada, nem gemia, nem balançava a anciã. Por um instante olhava fixo à área verde depois a parede. Na nesga de flora havia uma planta que a muito pedira socorro, uma escora. Porém alguém que ninguém sabe quem, amputou o galho que carecia de muleta. Ódio ao intruso, que se fez deus, e decidiu quem merecia viver e quem merecia morrer, porque agonizante não estava. Nas paredes desfilavam elefantes, cobertos com tapetes persas, eram silhuetas e jamais resplandeceriam em cobertores vermelhos com dourado na franja, nunca seriam belos. Aqueles não estavam sob o sol de Istambul donde sultões e odaliscas surgiriam. Um enorme cão de raça indefinida guardava a mesquita. Pássaros revoavam. E cantavam canto novo, autêntico, mavioso como valsa de Strauss. Diferente do canto mecanizado dos pássaros de metais que sobrevoavam o Rio. Onde as notas musicais se materializavam na fumaça, do cigarro de plantas colossais que nunca soube como utilizar. Entrar naquela mesquita era preciso. 

Havia mais de um cão guardando a entrada. Entrar lá era questão de honra. Mas não tão necessário que todo o tempo do mundo não pudesse esperar. As paredes velhas foram pintadas na véspera do natal. Para renovar o ar da casa. Por sinal, muito mal pintadas. Tentativa vã de expulsar espíritos vagabundos que vão chegando e vão ficando porque gostam de lugares sombrios. Apesar da pintura, havia nódoas como impigem. Feridas mal curadas. Por conta das infiltrações, ou talvez da salinidade mantida no reboco argamassado com barro e areia do Panema. Nos umbrais, cantoneiras e portas havia um azul cansado mesmo antes de ser. Um branco e um pastel lagartixando as paredes. Minha mãe via ursos polares e palhaços, e um lobo preste a atacar uma mulher que não tinha rosto. Noutro momento do dia, o calor era mais intenso, e um dos ursos polares acabava virando o elefante de Istambul de quando ainda era Constantinopla. E tudo não passava apenas de parte de um todo que ainda estava pra acontecer. Episódios violáceos, com gosto salgado de lágrimas, guardados no fundo do poço das memórias, aflorados. E isso era o suficiente para acordar sonhos velhos. E que jamais conseguiriam acalentar um menino triste que não parava de chorar, um choro triste, choro de fim de tarde. Tudo porque o pai não o deixou ficar com o filhote de cachorro que ganhou, talvez de Geraldo. Mas o menino não seria menino a vida inteira. E uma vez menino velho ganhou outro cão. 

A cadela de Jário teve cachorrinhos. Cães de bom pedigree. Pastor alemão era venda certa. Vendeu quase todos. Estava escrito em algum canto que aquele último seria dele. E foi. Jário disse que não precisava pagar, sabia que seria criado com carinho. Não era um cãozinho, era uma cadela. Saramandaia era nome de novela da época. Porque aquela cadelinha era sonho de menino que precisava voar. E voou o tempo, sobrevoou o Rio, cão alado. Cão do segundo livro, dotado de asas. Braços abertos. Não achava nem ruim, nem bom, o apelido. Tantos outros deviam haver. E isso acabou por lembrar, do tempo do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, de como os adultos recomendavam as outras crianças para manterem distância. Não se sentia uma ameaça da terceira guerra mundial, uma catástrofe ou a vida no planeta Alfa Centauro. Sucedeu que numa das vezes que foi buscar leite na casa de Seu Domício achou a carteira de alguém na sarjeta. Havia dinheiro, documentos. A ingenuidade de criança levaria a mostrar a mãe, e foi orientado a devolver. Assim o fez. E acabaria suspeito de ato impróprio, acusaram-no de ter surrupiado o objeto de um lugar seguro, onde “na certa” deveria se encontrar. 

E não parava de contar histórias incríveis! Onde agentes da KGB, ou do KGB? Isso pouco importa. O fato é que se infiltravam noutras histórias de um irmão que escreve apaixonadamente, feito um louco, desvairado. De como já havia andado pela cidade e personagens de contos daquele, saltaram na sua frente, cobrando-lhes atos rebeldes, que somente um trem bala retrocedendo no túnel de muitos calendários, conseguiria resgatar. A “admoestação” havia se fixado num canto qualquer da memória e vez outra saltava. Como o trecho citado em “Zé Sapo – Saltimbanco Condutor” 

“Manhã de domingo de carnaval. Ano qualquer, de 2000 em diante. De azul anil, vasto céu, admoestado por nuvenzinhas pálidas de verão.” 

Finalmente ia entrar na Mesquita. De repente, salve Jorge! Com seu cavalo saltou sobre. E os céus do Rio, ameaçador. Um dia quiçá seriam vividas histórias novas se fundindo com outras velhas. Se espalhando pela cozinha, por cima da geladeira. Empoleiradas na tesoura que sustenta os caibros. Em cima da mesa, se molhando de café e sintaxe. Colóquio infindável que fatalmente culminaria com riso. Riso às vezes rido, às vezes gargalhado. Em meio a muita fumaça e cinza de cigarro, riso-espasmos, crises de tosse. E Breno Accyoli vindo, num turbilhão de sentimentos, fazer-lhe constatar que se encontrava num exílio. E tudo o que importava naquele instante era rever o Rio, a companheira, os filhos. E se foi. 



Fabio Campos 25.10.2012

Um Navio, O rei, O País do Monumento

Era uma vez um gigante. Não um gigante como aquele da história de João e o pé de feijão. Porque pra eles existirem, só dependem do ponto de vista de quem vê. Pra nós, meninos moradores da Praça do Monumento, do início da década de setenta, Zé Reis se nos aparentava um gigante. Tronco minotáurico, braços colossais. A cabeça como que implantada em cima duma montanha de músculos, e um rosto talhado na pedra. Os olhos enterrados rente as espessas sobrancelhas, e a bocarra como que cortada a faca. Assim era Zé Reis. 

O Rei Teria surgido no Condado do Monumento, assim de um jeito muito semelhante à Gulliver quando surgiu na ilha de Lillipute. De uma terra distante, sem experimentar o naufrágio, em seu navio, teria chegado. Alvissareiros, os ventos noroeste fizeram com que conseguisse aportar com certa tranquilidade, no país do Monumento. Porque pra aqueles moleques, a Praça do Monumento, era um país. Menor que o Principado de Mônaco, porém igualmente rico. Tanto quanto o Vaticano. Não tinha ali a Capela Cistina, porém ao centro ostentava-se a Igreja de Nossa Senhora Assunção. O ouro espalhado no leito do Largo, pra quem quisesse pegar, era só estender a mão e tocá-lo. Sentir seu calor, sua luz, incandescente chegado do Leste nas primeiras horas, o sol se derramando. À esquina a casa de Seu Artur e a bodega de Seu Ozéias, delimitava o Norte do mais novo reinado que já se vira. A fileira de casas recuada por trás do quiosque “O Pinguim”, o limite a Nordeste. O consultório odontológico de Dr. Adelson olhando pro Grupo Escolar Padre Francisco Correia acessava o Leste. Ao mesmo quarteirão, ficava o oitão do velho educandário, o Ginásio Santana, juntamente com o Tênis Club Santanense apontavam e delimitavam o Sul do menor país do mundo. Seus citadinos, os moleques da praça, exerciam sua cidadania digladiando-se em constantes guerras. Havia quase todas as noites a Batalha pelas Bandeiras. Os meninos e suas clãs a tudo disputavam. Pela conquista das bandeiras, azul e encarnada se sucediam infinitos combates. A batalha com caroço de mamonas e a batalha das balas de barro de louça. Seguidores do Ipiranga e do Ipanema. A busca ao ouro (Ourobusca). A conquista do garrafão. A Revolta dos Queimados. 

O Navio    Aportado à praça era o símbolo da conquista do território ocupado: o País do Monumento. A nau concebida e construída das mãos do rei, com esmero a fez. De madeira nobre seu casco revestido, em latão e zinco hermeticamente calafetado. Azul de colbato, branco e vermelho carmim, em cores vivas, luzidia a couraça do monstro náutico. Imponência culminando a bandeira dizia “Liberdade, Fraternidade, Igualdade” no alto do mastro a observar o horizonte. Escotilhas blindadas com acabamento de vitrais. Botes salva-vidas, encordoamento de arremesso. Possante timão envernizado, adiante do painel de controle a casa de máquinas. Antenas e sonares, radares e campainha de alarme. Um soldado de chumbo fixado à proa e mais dois guardiães das pás da hélice arrematando a popa. A estibordo e a bombordo, gradil e parapeito caprichosamente arrematado por boias salva-vidas. Admoestação a lua, ofuscando a noite opulência de luzes da nave nauta. Afronta inconcebível! Se ia o monarca a outros países, singrava os ares a imensa nau, pelo próprio rei timoneada. Os moleques do país do Monumento jamais aceitariam pacificamente aquela ocupação. Um decreto foi baixado “ninguém podia aproximar-se do navio, salvo exceções se na companhia do imperador”. Decerto nisso residia os segredos da conquista territorial. As mentes febris dos meninos maquinavam e maquinavam planos. O rei invasor não perdia por esperar. 

O País   O dia sete de setembro. Parada militar pra marcar o dia da Independência do país. Mas que independência? Se ainda havia o rei mandando no povo? Zé Reis punha vestes de fuzileiro naval para passar em vista as tropas de guerrilheiros da Corte. Fazia uma trança com o cabelo, ficava parecendo um cavalheiro de infantaria, da guarda do palácio da condessa Beatriz. O rei também garbosamente desfilava. Constituía-se de arcos medievais a entrada do Palace Hotel da Condessa Beatriz uma pequena saleta, o hall. Adiante do lado direito os quartos dos hóspedes. Do lado oposto as janelas. Indo adiante a cozinha, ornada de belas mesas, naturezas mortas nas paredes, compostas de avelãs, uvas, damascos, vinho tinto em garrafões de palhinha trançada, obras por Zezinho assinaladas. A hospedaria de esquina acessava a Alameda Rotary que acessava outro país, a ilha de Liliputas. Ali liliputanos viviam sob o regime da anarquia. Vida aventureira, cassinos: jogos de cartas, gamão, xadrez. Libertinagem, mulheres. Dada início a década de sessenta, os liliputianos santanenses que já haviam crescido se organizaram e criaram “Os I Jogos de Inverno” que ganhou o simpático de apelido de Festa da Juventude. 

O Combate    Os meninos se organizaram “Fora o Rei com seu Navio!”. Era o grito de ordem. Bombas de cordão atiradas a Arca, na campanha de São João. A Companhia de Jesus apoiava a Corte. O ataque não surtira o efeito desejado. Permanecia o reinado. Os negros que levavam os dejetos dos senhores feudais pra lugares ermos, estavam do lado dos meninos, e na calada da noite catapultaram fezes a nau. Duro golpe! A fedentina emporcalhou o país, mesmo assim o monarca resistiu bravamente. Numa tarde que o rei saiu a passear, os meninos colocaram um pé de fícus sobre o navio para que seus galhos ferissem o casco. Lançaram mão de sua âncora pondo a deriva, no leito da rua. Acionaram-lhe a campainha de alerta, provocando alarido. Foi golpe fatal. Finalmente o rei combalido. Dando-se por vencido abandonou o país. 

O Reencontro    Quase metade de século já havia se passado. Fui encontrar o rei deportado, no degredo. Cumprimentei-o. Humilde prestava serviços na prisão de Alcatraz. Na terra dos Cavalos inteligentes, que faz fronteira com o país das Liliputas. Apenas contemplei seu rosto e encheu-se de um sorriso, reconheceu-me. Apertou-me a mão, e o coração. A pronúncia de Seu nome José Paulo Soares Morais e deu-se em água meus olhos. Decidi seguir minha jornada, intencionava encontrar-me com o rei. Não havia mais rei, nem gigante era mais. 

Fabio Campos

Olhos Morenos que Sorriam

Um trovador, em seu cavalo havia, tocando majestosa craviola, sob um luar, cortejava belas donzelas à sacada postas. Em vestes feudais trajados, a um suntuoso castelo galés, um cão da raça Collie arrematando a cena, em lusco-fusco de verdes fulgores. O quadro compunha a parede lateral do ambiente. Muito embora, não aparecia, devido ao ângulo donde a foto havia sido tirada. Mas estava lá, fazia muito estava lá. Sua irmã, e o noivo, meu irmão mais velho. Ambos em pé na sala, abraçados, compunham o postal. Tão sérios que nem pareciam felizes recém-casados. Era o suficiente, já estávamos lá.
O centro sobre o tapete. Os biscuits de três golfinhos na parede, saltando de um mar inexistente, tão em voga nos anos sessenta. Da cor de doce de leite, a vitrola de móvel, de tampa arapuca. Lá dentro negro disco lascivo. Deslizando, em toda sua essência a melodia. Se insinuando aos outros cômodos da casa, em fino sabor de vinho verde, suave. 

“Sonhei que eu era um dia um trovador 
Dos velhos tempos que não voltam mais...” 

Lá na cozinha. O papagaio emudecido - sempre emudecia a segunda metade do dia - amolava o bico no poleiro, piscava os negros olhinhos, com o cocuruto coçava as asas, banzeiro. As palhas de coqueiros e palmeiras de outros quintais esticavam seus longos dedos de clorofila, que chegava junto com tênue azul floral, adornando alvas nuvenzinhas promitentes. Indo e indo, num breve estalo de um cão latindo lá longe. Se a porta da frente, fatalmente os olhos desceriam a ladeira. Destrambelhados despencariam na Ladeira de Seu Carrito, Ladeira de Seu Zé Quirino iam parar lá em baixo. Pra bem junto do Panema. Indo inebriar a alma nos cheiros, de pele morena, de roupas molhadas, amofinando o granito cardado. Os pés do tangedor de mula, engelhados, túrgidos, afundando na areia fazendo chople! 

Praça de São Pedro, o mundo do menino Marcos. Jogo de ximbra, pião, ferro de finca. O velho prédio da perfuratriz, virado posto do fomento agrícola. A seus galpões sombrios, gigantescas pilhas de cereais, encerados em sacos de papelão, carimbados com prazo de validade em tinta preta. Purgado pra não empestear de pichilinga. Na brincadeira de esconde-esconde, gabirus, morcegos, e almas velhas vagando, do tempo de Lampião. Aguardavam a oportunidade de se apossarem de um desafortunado, de pobres mendigos ou bêbados, pondo tanto medo, que vinha forte a vontade de urinar. Dona Celina deixava ir tomar banho no rio, se fosse com Mailson. Sabia que já sabia nadar, mesmo assim só ia com o irmão mais velho. 

Pela manhã o Grupo Escolar Padre Francisco Correia, a farda branca, calções azul-marinho. Morenês de pele queimada de sol e rio. Menino feliz, que ia a Rua Nova comprar pão na padaria de Seu Bendito. Café com leite esfumaçando o raio de sol, pão com manteiga. O líquido quente deitado ao pires, soprado pra esfriar, tomado aos chupões fazendo um som engraçado. Angariando reclamos de Dona Celina. Molhava alguns nacos e jogava por baixo da mesa, pros gatos que ronronavam a se esfregarem nas pernas enterradas em meias, e sapatos vulcabras. Marcos logo a se tornar rapaz. Educado sob os auspiciosos cuidados de Seu Breno, seu pai. 

“Relembro a casa com varanda 
Muitas flores na janela...” 

Jogo de bola no campinho de areia, sem tempo marcado pra acabar, duas pedras se faziam de traves, Deus, o juiz, que nunca marcava impedimento, nem apitava o fim da partida. Pras bandas de Riacho Grande o sol desvanecendo. Meninos de carvão, projetados no flamulante vermelhão solino, arremedado pelo rio salino. 
A volta do rio era pela Rua de Zé Quirino, Praça São Pedro. Num daqueles cair de tarde prazenteiros, ao passar na porta do Bar de Seu Lelé viu Gilvan de Dona Mariquinha tocando violão. Foi amor a primeira vista. Passou da hora de voltar pra casa, e ninguém sabia onde estava o menino. Embevecido pela melodia das cordas, desfrutava do boêmio dedilhando o cordil retesado, sem perder um só movimento das mãos. Gilvan não demoraria aperceber o interesse do rapaz, perguntou se queria aprender a tocar. Por essa época Já estudava no Liceu santanense Colégio Professor Deraldo Campos. Cocada, Pangaré, Xogoió, Aderval Papa-figo, Ubiratan, Ubiracy, Ubirajara, Marcondes, os filhos de Seu Liôu, dentre outros que tinha por amigos. 

“Um dia a areia branca 
Seus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos...” 

Tomou posse das claves de sol, lá, si, dó. Descobrira porque tinha vindo à vida. Amava suntuosamente o som despetalado das ligas de metal esticadas. A música sua paixão desenfreada. Sua segunda pele. Claves. Chaves que abriam seu espírito. Libertando su’alma. Um dia, ao acordar Marcos, Dona Celina percebeu o travesseiro tinto de sangue. Sangrara pelo nariz, enquanto dormia. Ou desfalecido estava? No hospital o diagnóstico, leucemia. O grito preso na garganta. O pinho virou único companheiro, único confidente. A música, ainda mais a embalar os sonhos. Não, não seria a passagem que ia impedir sua intergalática viagem. E tocava e tocava, enquanto seus olhos castanhos sorriam. 

“Cadê você, cadê você, você passou 
O que era doce, o que não era se acabou...” 

Fabio Campos

Vã é a Casa dos Insanos (Salmos 127-128)

“Cânticos dos degraus de Salomão – Bem-aventurado aquele que teme ao Senhor e anda nos seus caminhos; Pois comerás do trabalho das tuas mãos, e te irá bem. A tua mulher será como a videira frutífera...Salmo 128-1,4)”

A um lugar bonito, chamado de Queimada do Rio - Sudeste da cidade de Santana do Ipanema – ficava a casa de José. Se a gente sair andando a margem do rio da imaginação, podemos vislumbrar donde vêm nomes tão carregados de música e forte significado. Vamos a um tempo em que os pais, ajuntavam a família, no prelúdio da primavera, indo ao preparo do solo, pra cultivar leguminosas e cereais, à várzea do Nilo santanense, feijão, consorciado com o milho. Noutra seara algodão e palma. O silo de trincheira acusava a preocupação com o período de estiagem que inevitavelmente viria. O gado lanado rebanhado na escalada do serrote, nos baixios e grotões. Ajuntava-se as coivaras. O fogo no aceiro selando a aliança do homem com Deus. Haveria de ter o holocausto, em agradecimento à fertilidade do solo. Assim, por essa ocasião ocorriam as queimadas do rio. 

José, nem vem a ser o personagem central de nossa história. Está aqui pra lembrar a gente, aquele do Egito, filho do profeta Jacó, e que também tinha onze irmãos. Isac, Zenon, Rubens, Natalicio, Benjamim, Jasão, Simeão, Levi, Joatan, Gaudino e Ageu. O José que está narrado na Bíblia, por inveja e ciúme dos irmãos, acabaria vendido a mercadores nômades, tornando-se escravo. O nosso José, não foi vendido, muito embora, assim como o hebreu, foi vítima de uma cilada dos seus irmãos. Quando veio a época da colheita daquele ano, seria acusado de roubo de parte da safra da família. Acabou preso. Encarcerado na Cadeia Pública de Santana do Ipanema, muito teria sofrido. Clamou aos céus por justiça, e Deus ouviria sua súplica. Muitas vezes acordava durante a noite aos gritos. Considerado louco, por alguns detentos, porque dizia ter visões premonitórias. Ditava visões de fatos futuros que realmente acabavam acontecendo. Dizia sobre o porvir de alguns encarcerados, de quando seriam libertados, e mesmo a morte de alguns deles previu. Ditou um presságio com o delegado, teria mandado lhe avisar para que não viajasse naquele dia, pois sonhara com um acidente ocorrido com a viatura da polícia. O delegado nem chegaria a receber o recado, mas por conta de um imprevisto acabou não viajando. O veículo capotou, não sobrou um sobrevivente. A par do ocorrido o homem da lei, meditou que realmente aquele rapaz era dotado de poder de decifrar sonhos.

Praça da Bandeira, monumento, rara beleza emprestada ao nobre bairro da cidade. Uma fileira de casas olhava pra igrejinha de Senhora Assunção. Diversificada colméia, de vidas. Casas simples encostada a outras mais imponentes. Também assim os protagonistas desse folhetim. Dividia o mesmo espaço urbano, comerciantes, jurista, pecuaristas, funcionários públicos. De família tradicional aqueles moradores. Pessoas cujos nomes, seus pais se inspirariam nos livros bíblicos para os batizarem. A casa de Maria, a casa de Jonas, a casa de João. Casa de Leonpoldo e casa de Aderaval. Encostadas umas nas outras, no linguajar matuto, faziam parede e meia. A prosperidade numa determinada proporcionalidade se distribuía por aquela artéria. Havia coisas, distribuídas de formas proporcionalmente desigual, que nem era, necessariamente os bens materiais. Vejamos.

A casa do profeta Jonas, simples, modesta, como verdadeiramente deve ser a casa do povo de Israel. Profícua e prolífera, como a geração de Abraão, cuja descendência se tornaria tão numerosa quanto a areia da praia. Assim como Abraão alcançou vasta idade, Jonas alcançou graça diante do senhor. Pois aquele, a despeito do número de anos de vida, teve com Hagar escrava de Sara, um filho varão, Ismael. E Deus poria a prova, sua fidelidade e fé. Seu filho primogênito pediria em oblação. No momento exato do holocausto, um anjo interveio, e indicou-lhe para o sacrifício, uma ovelha, pelos chifres presa a ramagem. Jonas bom cristão, criador de gente e gado. Algumas crias, mantinha no Cercado, que lhe dava o sustento a si, e sua numerosa prole. Agradecido a Deus, o que vinha do cultivo do campo, e do gado miúdo. A sua propriedade ficava onde seria construído o santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, monumento erguido pela igreja pra marcar a entrada do novo milênio. José, não o do Egito, o profeta da Queimada do Rio, previu todos estes acontecimentos. Como previu outros acontecimentos pra outros moradores daquele logradouro. 

João, outro morador daquela artéria. Constituiu família e era vizinho de Jonas. Em sonho teve a visão da consumação dos tempos. Inspirado pro Deus escreveu o livro do Apocalipse. Como está dito nas Sagradas Escrituras. De suas narrações consta que a virgem santíssima ”Uma mulher preste a dar a luz, aflita pela dor do parto, foi arrebatada para o deserto. Uma fera pronta para devorar-lhe o filho assim que nascesse surgiu, e deu a luz a um filho homem que haveria de reger todas as nações e foi arrebatado para o céu ”. E narrou dos cavalheiros que viriam pra separar as ovelhas. Teve João do Senhor, o dom para o comércio, com prodigiosa habilidade sovava a massa e deitando-lhe fermento produzia alimento sagrado, o pão. No abate do gado suíno especializou-se, alimento considerado impuro pelos fariseus. Constituiu descendência modesta, criados sob a égide de Nossa Senhora Assunção, deles que seguiram a vocação da linhagem de Levi. De sua prole, viria com dom e domínio da palavra, falada e escrita. A instrução e o magistério sob os preceitos da santa igreja. Também José previra tudo isto no cárcere.

“Cânticos dos degraus de Salomão- Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam, se o Senhor não guardar a cidade em vão vigia a sentinela. Salmo 127- 1,2”

A principal profecia do José do sertão, no entanto, não fora nenhuma dessas até então citadas. Vem a respeito de outros moradores daquele logradouro. Leonpoldo e Aderaval. Ambos prósperos pecuaristas.  Com mão de ferro governavam suas casas. Suas propriedades rurais, fazendas, administravam com vigor. Tinham vassalos que lhes prestavam serviços mediante ínfimos salários. A prepotência e a arrogância, via de regra, imperava. Sobejava austeridade em detrimento de compreensão e amor, as descendências e aos subalternos. E a mão pesada do infortúnio prevista por José profeta, cairia indubitavelmente sobre os incautos. José por essa época já a liberdade havia adquirido e disse: -Aqueles, não alcançarão velhice serena, no dia do velório não terão o choro dos seus entes queridos, somente o lamento onerado de carpideiras. Sua descendência se espalhará a ermo, nômades sem nunca fincarem alicerce em lugar algum. E o fogo se abaterá sobre seus bens os consumindo. Como de fato viria o fogo sobre a casa de um e a propriedade rural do outro. Precocemente deixaram este plano, e suas obras foram como pó levadas pelo vento. 

Fabio Campos