
O Rei Teria surgido no Condado do Monumento, assim de um jeito muito semelhante à Gulliver quando surgiu na ilha de Lillipute. De uma terra distante, sem experimentar o naufrágio, em seu navio, teria chegado. Alvissareiros, os ventos noroeste fizeram com que conseguisse aportar com certa tranquilidade, no país do Monumento. Porque pra aqueles moleques, a Praça do Monumento, era um país. Menor que o Principado de Mônaco, porém igualmente rico. Tanto quanto o Vaticano. Não tinha ali a Capela Cistina, porém ao centro ostentava-se a Igreja de Nossa Senhora Assunção. O ouro espalhado no leito do Largo, pra quem quisesse pegar, era só estender a mão e tocá-lo. Sentir seu calor, sua luz, incandescente chegado do Leste nas primeiras horas, o sol se derramando. À esquina a casa de Seu Artur e a bodega de Seu Ozéias, delimitava o Norte do mais novo reinado que já se vira. A fileira de casas recuada por trás do quiosque “O Pinguim”, o limite a Nordeste. O consultório odontológico de Dr. Adelson olhando pro Grupo Escolar Padre Francisco Correia acessava o Leste. Ao mesmo quarteirão, ficava o oitão do velho educandário, o Ginásio Santana, juntamente com o Tênis Club Santanense apontavam e delimitavam o Sul do menor país do mundo. Seus citadinos, os moleques da praça, exerciam sua cidadania digladiando-se em constantes guerras. Havia quase todas as noites a Batalha pelas Bandeiras. Os meninos e suas clãs a tudo disputavam. Pela conquista das bandeiras, azul e encarnada se sucediam infinitos combates. A batalha com caroço de mamonas e a batalha das balas de barro de louça. Seguidores do Ipiranga e do Ipanema. A busca ao ouro (Ourobusca). A conquista do garrafão. A Revolta dos Queimados.
O Navio Aportado à praça era o símbolo da conquista do território ocupado: o País do Monumento. A nau concebida e construída das mãos do rei, com esmero a fez. De madeira nobre seu casco revestido, em latão e zinco hermeticamente calafetado. Azul de colbato, branco e vermelho carmim, em cores vivas, luzidia a couraça do monstro náutico. Imponência culminando a bandeira dizia “Liberdade, Fraternidade, Igualdade” no alto do mastro a observar o horizonte. Escotilhas blindadas com acabamento de vitrais. Botes salva-vidas, encordoamento de arremesso. Possante timão envernizado, adiante do painel de controle a casa de máquinas. Antenas e sonares, radares e campainha de alarme. Um soldado de chumbo fixado à proa e mais dois guardiães das pás da hélice arrematando a popa. A estibordo e a bombordo, gradil e parapeito caprichosamente arrematado por boias salva-vidas. Admoestação a lua, ofuscando a noite opulência de luzes da nave nauta. Afronta inconcebível! Se ia o monarca a outros países, singrava os ares a imensa nau, pelo próprio rei timoneada. Os moleques do país do Monumento jamais aceitariam pacificamente aquela ocupação. Um decreto foi baixado “ninguém podia aproximar-se do navio, salvo exceções se na companhia do imperador”. Decerto nisso residia os segredos da conquista territorial. As mentes febris dos meninos maquinavam e maquinavam planos. O rei invasor não perdia por esperar.
O País O dia sete de setembro. Parada militar pra marcar o dia da Independência do país. Mas que independência? Se ainda havia o rei mandando no povo? Zé Reis punha vestes de fuzileiro naval para passar em vista as tropas de guerrilheiros da Corte. Fazia uma trança com o cabelo, ficava parecendo um cavalheiro de infantaria, da guarda do palácio da condessa Beatriz. O rei também garbosamente desfilava. Constituía-se de arcos medievais a entrada do Palace Hotel da Condessa Beatriz uma pequena saleta, o hall. Adiante do lado direito os quartos dos hóspedes. Do lado oposto as janelas. Indo adiante a cozinha, ornada de belas mesas, naturezas mortas nas paredes, compostas de avelãs, uvas, damascos, vinho tinto em garrafões de palhinha trançada, obras por Zezinho assinaladas. A hospedaria de esquina acessava a Alameda Rotary que acessava outro país, a ilha de Liliputas. Ali liliputanos viviam sob o regime da anarquia. Vida aventureira, cassinos: jogos de cartas, gamão, xadrez. Libertinagem, mulheres. Dada início a década de sessenta, os liliputianos santanenses que já haviam crescido se organizaram e criaram “Os I Jogos de Inverno” que ganhou o simpático de apelido de Festa da Juventude.
O Combate Os meninos se organizaram “Fora o Rei com seu Navio!”. Era o grito de ordem. Bombas de cordão atiradas a Arca, na campanha de São João. A Companhia de Jesus apoiava a Corte. O ataque não surtira o efeito desejado. Permanecia o reinado. Os negros que levavam os dejetos dos senhores feudais pra lugares ermos, estavam do lado dos meninos, e na calada da noite catapultaram fezes a nau. Duro golpe! A fedentina emporcalhou o país, mesmo assim o monarca resistiu bravamente. Numa tarde que o rei saiu a passear, os meninos colocaram um pé de fícus sobre o navio para que seus galhos ferissem o casco. Lançaram mão de sua âncora pondo a deriva, no leito da rua. Acionaram-lhe a campainha de alerta, provocando alarido. Foi golpe fatal. Finalmente o rei combalido. Dando-se por vencido abandonou o país.
O Reencontro Quase metade de século já havia se passado. Fui encontrar o rei deportado, no degredo. Cumprimentei-o. Humilde prestava serviços na prisão de Alcatraz. Na terra dos Cavalos inteligentes, que faz fronteira com o país das Liliputas. Apenas contemplei seu rosto e encheu-se de um sorriso, reconheceu-me. Apertou-me a mão, e o coração. A pronúncia de Seu nome José Paulo Soares Morais e deu-se em água meus olhos. Decidi seguir minha jornada, intencionava encontrar-me com o rei. Não havia mais rei, nem gigante era mais.
Fabio Campos
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