Fan Fon Pen


Dona Carmem resolvera sair do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, com seus pupilos. Naquela manhã de segunda-feira, iria fazer uma aula a céu aberto pelas ruas da cidade de Santana do Ipanema. Visitariam prédios públicos e praças. Começaria pela Praça das Coordenadas. A professora e sua turma parecia uma galinha com seus pintinhos. Comparação deselegante, mas não conseguimos pensar noutra coisa. A semelhança poderia ser ainda maior, se não tivesse no meio dos meninos, um que se destacava por conta do tamanho:  

- Fan-fon Pen!
-Professora!  Ele está me encrencando!...Mande ele ficar quieto...
-Calma Renan...

O menino que os outros apelidavam era Renan. O apelido ele odiava, perdia o controle. Só a professora Dona Carmem e seus pais, chamavam-no pelo nome. Tão desacostumado, que achava até estranho quando o chamavam de Renan. Era como se estivessem chamando, uma outra pessoa, e não ele. A estatura incomum, era apenas mais um detalhe, destacava-se no meio das outras crianças por outras coisas. Já ouvira alguém comentar sobre síndrome de Down, não entendia direito o que isso significava.  Ninguém lhe explicava, tampouco queria entender. Não se importava por ser mais alto, que os outros meninos. O que não gostava mesmo era de ser visto, pelos colegas ou pelos adultos, como bicho estranho. Não se sentia estranho.  Por vezes vira as professoras falando baixinho pra ninguém ouvir, sabia que falavam dele. Observavam-no, não com olhar de reprovação. Era olhar apreensivo, de quem se preocupa. E isso lhes deixava mais tranquilo. Gostava de saber que se preocupavam de alguma forma com ele.

A PROFESSORA

Ele achava-a linda. Como era bom, toda manhã, por mais de quatro horas, ali na presença dela. Disputando com os outros meninos sua atenção. Nenhuma importância dava as atividades, dessas nem queria saber.  O tempo todo dedicado à tarefa que mais gostava: Ficar olhando a professora.  Só se distraía, se outro menino o importunasse. Deslumbrado admirava seus longos cabelos pretos e lisos presos no alto, por um lenço de estampa colorida. Igualmente belos seus grandes olhos negros. Como achava linda a professora!  Seu rosto pontilhado de sardas, um charme especial. O jeito de ajeitar os óculos, as unhas bem cuidadas. O perfume inebriante do seu colo.  Sua voz, melodia para seus ouvidos. Meiga, nunca se alterava. Como, não se alterava? Mas claro que se alterava!  Ainda outro dia, pegou-lhe pela orelha, por estar brigando com o Roberto. Ficou só uns dias magoado, mas esqueceu. Quando um colega a requisitava, porque quer que fosse. Chamava-lhe, só pra ter a atenção dela. Mesmo sem ter nada pra perguntar ou lhe mostrar. Escrevia cartas de amor pra Dona Carmem Azevedo e sempre lhes entregava ao final da aula. E ela sorria. Com seu sorriso de dentes alvos, perfeitos. Quando Dona Carmem, estava com os meninos menores do jardim infantil.  Invejava-os, porque levava pra lhes dar água. Outro dia, ficou se roendo de raiva, de um deles. Levou-o pra urinar, viu quando entraram os dois no banheiro. Ele ficou olhando de longe, quando saíram ainda deu tempo de vê-la fechando a braguilha do moleque. Roeu-se de ciúme de Dona Carmem. Depois teve vergonha, como podia ficar com ciúme de um menino de quatro anos. Ele que tinha quinze. Não podia pedi-la pra levá-lo ao banheiro. Sentia seu corpo mudando, expulsando aos poucos, o menino que ele relutava em não deixá-lo sair, de si. Os pêlos pubianos despontados incômodos. Que importa, pra ele ainda sentia-se menino. Por vezes sentiu o sexo retesado, em plena aula. Certa ocasião se vendo nessa situação, esfregou-o tanto por cima do calção da farda, que um jato de líquido quente lhes saiu, impregnando as roupas de baixo. Os outros meninos zombaram dele. Disseram a Dona Carmem que ele havia urinado nas calças. Ele sabia que não era urina, mas não disse nada. Ficara terrivelmente envergonhado. Por causa disso, nesse dia foi pra casa mais cedo. Precisava mudar a roupa. Odiou os colegas.

O MENINO

Tinha um colega na escola que Fan-fon Pen gostava de brincar, mais do que os outros. Era Ciro “Ratazana”. Um menino de olhar sofrido, que antes morava no sítio Jaqueira. Dele, ouvira histórias muito tristes, o apelido caricaturava sua feiúra. Contou-lhe que tinha mais doze irmãos, por ser muito doente veio pra cidade tratar de sua asma, morar com uma tia na rua de Zé Quirino. No sítio sofria com as ignorâncias do pai. Na rua os maus tratos da tia que não gostava dele. Mas não era por seu padecer familiar que Fan-fon Pen gostava de “Ratazana”. A afinidade era porque ambos padeciam de um sofrimento comum, a rejeição no meio dos outros meninos. O menino, por ser rural e asmático, ele pelo retardo mental.  No recreio costumavam ficar juntos. Criou-se entre os dois, uma espécie de cumplicidade e companheirismo. Quando aprontavam traquinagem com os outros, era em parceria. Se sofressem agressões ou humilhações defendiam-se mutuamente. Nas brigas, todos sabiam que os dois se ajudavam. Sabendo estarem os dois juntos, ninguém se atrevia a encrencá-los. Um dia no recreio Fan-fon Pen brincava com “Ratazana” num canto do pátio, quase isolados dos demais. Começaram a trocar petelecos nas orelhas. Daí a pouco estavam embolados no chão numa briga de mentira. Tanta era a satisfação de recíproco prazer entre os dois amigos naquele momento, que num ímpeto de êxtase, Fan-fon Pen tentou beijá-lo na boca. “Ratazana” a muito custo conseguiu esquivar-se. Enojado juntou as mirradas forças de seus braços franzinos e empurrou-o, enquanto cuspia fora o ósculo furtivamente roubado. 

A MULHER

A biblioteca municipal de Santana do Ipanema, funcionava no primeiro andar, do velho sobrado de esquina ao lado da igreja matriz de Senhora Santana. A bibliotecária era Dona Iolanda. Nunca se entregando a idade que possuía. Já iniciada na segunda metade de século de vida, com esforço, buscava aparência de mulher de trinta, muito embora conseguindo apenas parcialmente seu intento.  Vestia-se com zelo e elegância, ainda que fosse só pra ir até na padaria da esquina. Mantinha-se sempre maquiada e perfumada mesmo na lida doméstica. De ida ao trabalho, dobravam-se os esmeros. A demais, era uma senhora bem apanhada. Mantinha firme o busto, ofertado aos gulosos olhares masculinos pelo decote dadivoso e o quadril avolumado desenhava-se febril nas saias e anáguas. Ao ver aquele menino, sentado a mesa de leitura, absorto em sua tarefa. Depois de alguns movimentos pela sala de leitura, a matrona aproximou-se e perguntou se podia ajudá-lo em alguma coisa. Ele agradeceu dispensando. Mesmo assim ela sentou-se ao seu lado. O busto impudico foi parar dentro dos olhos de Fan-fon Pen, também  seguiram para lá, o encontro final, de suas volumosas pernas cruzadas. Ela suavemente pousou sua mão alva e aveludada sobre a coxa dele.  Fez isso enquanto fazia uma referência àquele livro. E uma centelha de fogo invisível percorreu todo o corpo do mancebo. E seu sexo fez-se inflado feito bexiga de festa dentro das calças. A mão de fada procurou ávida a vara de condão. E o menino sem tirar os olhos do livro, viajou sereno na garupa de uma magnífica vaca encantada dotada de asas e tetas divinais. E nos seus pêlos ásperos cavalgou. E foi arrebatado para o alto, cada vez mais alto, tão alto que lhe veio uma vertigem e ele caiu desfalecido na mesa de leitura. 

AREIA E PEDRINHAS

Gostava de ir brincar na beira do rio Ipanema, a tarde quando nada tinha pra fazer. Tão bom, ficar horas brincando na areia. Deixava-se rolar na areia fofa, macia. E com areia molhada fazia desenhos, construía figuras e bonecos. Dava nome as suas esculturas. De areia, esculpia toda a sua turma excetuando a professora Dona Carmem. Pois uma vez tentou esculpi-la, mas ficou tão feia e ele preferiu dizer que era uma de suas irmãs, a Renata. Depois destruía tudo, esmurrava os bonecos que representavam os colegas que mais implicava com ele. Construiu de areia, uma cidade. Imaginou uma cidade feito Santana só de meninos e meninas.  Ele mesmo se elegeria prefeito, não precisaria de eleição. Seria prefeito o menino que tivesse a cabeça maior, pronto era ele mesmo!  Fan-fon Pen prefeito da cidade de Santana do Ipanema, na versão só pra meninos e meninas.  Baixaria uma lei:  Ali ninguém podia fazer chacota uns dos outros. Colocar apelido em alguém seria um crime punido com prisão perpétua. Em caso de reincidência, pena de morte sem apelo. Dividiria Santana ao meio: A Camoxinga seria das meninas e o Monumento seria dos meninos.  Uma Santana, onde todos se preocupassem unicamente em brincar, quanto mais criativa a brincadeira, mais a meninada ganharia por isso. Seus salários claro, seriam pagos com os doces, bolas de futebol, patinetes, bicicletas da Casa Comercial de Seu Marinho. Todos podiam fazer coleção do que quisesse. Ele gostava de colecionar pedras e conchinhas. Estava sempre em busca de uma pedrinha de cor diferente pra aumentar sua coleção. Cada pedrinha sua, tinha nome de coisas bonitas. Na beira do rio Ipanema já encontrara tantas pedrinhas que aumentavam sua coletânea. Tinha vontade de colecionar outras coisas. Talvez botões, pipas, bolas de gudes, flâmulas de clube. A única regra era: tinha que ser coisas coloridas.  

A MENINA

Assim que a viu apaixonou-se. Ficou completamente apaixonado pelos olhos de Gioconda. Não por ela, mas pelos seus olhos. Eram os mais lindos que até então ele já contemplara. A menina novata na escola tinha mais dois irmãos, Pietá e Leonardo. Eram filhos de um fiscal de impostos de renda estadual que viera transferido da capital morar em Santana do Ipanema. Matriculou os três na Escola Padre Francisco Correia. Agora, nada mais o fascinava que os olhos de Gioconda. Nem Dona Carmem com quem compartilhava suas confidências, nem as horas felizes com ratazana, nem as idas ao Ipanema, nem a volúpia do gozo velado, proporcionado por Dona Iolanda naquele dia na biblioteca. O prazer de contemplar os olhos de Gioconda, comparável apenas àquele de admirar as pedrinhas coloridas de sua coleção. Os olhos daquela menina passou a ter uma significação, de algo desejado nunca antes experimentado. Contemplar aqueles olhos era como entrar num mundo de sonhos só dele. Um mundo todo azul, suave, aveludado. Sentia-se leve numa outra dimensão. Um mundo em anil. Onde borboletas azuis marinhos, num céu azul piscina, esvoaçavam por uma aura azul turquesa. Dali do interior daquelas duas contas blues no rosto da menina, emanava uma paz nunca antes encontrada. Aquela paz lhe pertencia. Tinha certeza, a menina bem o sabia que não era de seu, mas dele. Surgida na sua vida para entregar-lhe:

 -Toma esses topázios são teus.

Dizia aquele anjo índigo, no sonho. É tua vida que te dou.    

DUAS PEDRAS MAIS PRA COLEÇÃO

Desde que vira a menina, suas noites tornaram-se insones. Agora ainda mais amuado nas aulas, motivaram preocupação dobrada de Dona Carmem que em vão investigava as causas. “Ratazana” não entendia o que acontecia com seu melhor amigo.

–Está em estado depressivo. Disse alguém na escola.

-Isso é da idade!  Falou um outro.

-Nada de diferente notei. Em casa comentou-se.

Mas ele andava feito um sonâmbulo. Parecia nada escutar do que lhes falavam. Transportado pra um outro mundo, estando somente de corpo, nesse. Corpo anestésico, letárgico. Sua mente, sua vida, sua alma dentro do natiê daquelas duas contas. Aquela menina, enfim ele as encontrara.  A coleção, apenas pretexto, sabia que um dia a encontraria.  De repente começou a faltar-lhe ar nos pulmões, sua vida se esvaindo, tragada pra o profundo daquelas duas auras de luz lazuli. O mundo girava, a sala de aula rodopiava. Os gritos dos meninos, no recreio do pátio, som distante. Procurou por ela. Lá estava, indo ao banheiro. Seguiu-a.
Um grito de horror ecoou no pátio. Uma menina apavorada se arremessou de dentro dos banheiros femininos. Em estado de choque nada conseguia dizer. A professora chamou a Diretora algo sério aconteceu no banheiro das meninas. Uma comitiva de professoras se dirigiu pra lá. Uma cena dantesca, macabra, fez-se ali. Fan-fon Pen, em pé, olhava fixo no nada. A menina estendida ao chão, corpo inanimado, seus longos cabelos loiros recobriam o rosto, a cabeça envolta numa poça de sangue. E das duas mãos crispadas dele, gotejava no piso úmido por entre os dedos, viscoso líquido vermelho sanguineo.  E pousavam da palma de suas mãos, duas contas globulares impregnadas desse líquido, num misto de vermelho, branco e azul.  

Fabio Campos

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