
- Fan-fon Pen!
-Professora! Ele está me
encrencando!...Mande ele ficar quieto...
-Calma Renan...
O menino que os outros apelidavam era Renan. O apelido ele odiava, perdia
o controle. Só a professora Dona Carmem e seus pais, chamavam-no pelo nome. Tão
desacostumado, que achava até estranho quando o chamavam de Renan. Era como se
estivessem chamando, uma outra pessoa, e não ele. A estatura incomum, era
apenas mais um detalhe, destacava-se no meio das outras crianças por outras
coisas. Já ouvira alguém comentar sobre síndrome de Down, não entendia direito
o que isso significava. Ninguém lhe
explicava, tampouco queria entender. Não se importava por ser mais alto, que os
outros meninos. O que não gostava mesmo era de ser visto, pelos colegas ou
pelos adultos, como bicho estranho. Não se sentia estranho. Por vezes vira as professoras falando baixinho
pra ninguém ouvir, sabia que falavam dele. Observavam-no, não com olhar de reprovação.
Era olhar apreensivo, de quem se preocupa. E isso lhes deixava mais tranquilo.
Gostava de saber que se preocupavam de alguma forma com ele.
A PROFESSORA
Ele achava-a linda. Como era bom, toda manhã, por mais de quatro horas,
ali na presença dela. Disputando com os outros meninos sua atenção. Nenhuma
importância dava as atividades, dessas nem queria saber. O tempo todo dedicado à tarefa que mais gostava:
Ficar olhando a professora. Só se
distraía, se outro menino o importunasse. Deslumbrado admirava seus longos
cabelos pretos e lisos presos no alto, por um lenço de estampa colorida. Igualmente
belos seus grandes olhos negros. Como achava linda a professora! Seu rosto pontilhado de sardas, um charme
especial. O jeito de ajeitar os óculos, as unhas bem cuidadas. O perfume inebriante
do seu colo. Sua voz, melodia para seus
ouvidos. Meiga, nunca se alterava. Como, não se alterava? Mas claro que se
alterava! Ainda outro dia, pegou-lhe
pela orelha, por estar brigando com o Roberto. Ficou só uns dias magoado, mas esqueceu.
Quando um colega a requisitava, porque quer que fosse. Chamava-lhe, só pra ter a
atenção dela. Mesmo sem ter nada pra perguntar ou lhe mostrar. Escrevia cartas
de amor pra Dona Carmem Azevedo e sempre lhes entregava ao final da aula. E ela
sorria. Com seu sorriso de dentes alvos, perfeitos. Quando Dona Carmem, estava
com os meninos menores do jardim infantil. Invejava-os, porque levava pra lhes dar água.
Outro dia, ficou se roendo de raiva, de um deles. Levou-o pra urinar, viu
quando entraram os dois no banheiro. Ele ficou olhando de longe, quando saíram
ainda deu tempo de vê-la fechando a braguilha do moleque. Roeu-se de ciúme de
Dona Carmem. Depois teve vergonha, como podia ficar com ciúme de um menino de
quatro anos. Ele que tinha quinze. Não podia pedi-la pra levá-lo ao banheiro.
Sentia seu corpo mudando, expulsando aos poucos, o menino que ele relutava em
não deixá-lo sair, de si. Os pêlos pubianos despontados incômodos. Que importa,
pra ele ainda sentia-se menino. Por vezes sentiu o sexo retesado, em plena
aula. Certa ocasião se vendo nessa situação, esfregou-o tanto por cima do
calção da farda, que um jato de líquido quente lhes saiu, impregnando as roupas
de baixo. Os outros meninos zombaram dele. Disseram a Dona Carmem que ele havia
urinado nas calças. Ele sabia que não era urina, mas não disse nada. Ficara
terrivelmente envergonhado. Por causa disso, nesse dia foi pra casa mais cedo.
Precisava mudar a roupa. Odiou os colegas.
O MENINO
Tinha um colega na escola que Fan-fon Pen gostava de brincar, mais do
que os outros. Era Ciro “Ratazana”. Um menino de olhar sofrido, que antes morava
no sítio Jaqueira. Dele, ouvira histórias muito tristes, o apelido caricaturava
sua feiúra. Contou-lhe que tinha mais doze irmãos, por ser muito doente veio
pra cidade tratar de sua asma, morar com uma tia na rua de Zé Quirino. No sítio
sofria com as ignorâncias do pai. Na rua os maus tratos da tia que não gostava
dele. Mas não era por seu padecer familiar que Fan-fon Pen gostava de
“Ratazana”. A afinidade era porque ambos padeciam de um sofrimento comum, a
rejeição no meio dos outros meninos. O menino, por ser rural e asmático, ele pelo
retardo mental. No recreio costumavam
ficar juntos. Criou-se entre os dois, uma espécie de cumplicidade e companheirismo.
Quando aprontavam traquinagem com os outros, era em parceria. Se sofressem
agressões ou humilhações defendiam-se mutuamente. Nas brigas, todos sabiam que
os dois se ajudavam. Sabendo estarem os dois juntos, ninguém se atrevia a
encrencá-los. Um dia no recreio Fan-fon Pen brincava com “Ratazana” num canto
do pátio, quase isolados dos demais. Começaram a trocar petelecos nas orelhas.
Daí a pouco estavam embolados no chão numa briga de mentira. Tanta era a
satisfação de recíproco prazer entre os dois amigos naquele momento, que num
ímpeto de êxtase, Fan-fon Pen tentou beijá-lo na boca. “Ratazana” a muito custo
conseguiu esquivar-se. Enojado juntou as mirradas forças de seus braços
franzinos e empurrou-o, enquanto cuspia fora o ósculo furtivamente roubado.
A MULHER
A biblioteca municipal de Santana do Ipanema, funcionava no primeiro
andar, do velho sobrado de esquina ao lado da igreja matriz de Senhora Santana.
A bibliotecária era Dona Iolanda. Nunca se entregando a idade que possuía. Já
iniciada na segunda metade de século de vida, com esforço, buscava aparência de
mulher de trinta, muito embora conseguindo apenas parcialmente seu intento. Vestia-se com zelo e elegância, ainda que
fosse só pra ir até na padaria da esquina. Mantinha-se sempre maquiada e
perfumada mesmo na lida doméstica. De ida ao trabalho, dobravam-se os esmeros.
A demais, era uma senhora bem apanhada. Mantinha firme o busto, ofertado aos
gulosos olhares masculinos pelo decote dadivoso e o quadril avolumado
desenhava-se febril nas saias e anáguas. Ao ver aquele menino, sentado a mesa
de leitura, absorto em sua tarefa. Depois de alguns movimentos pela sala de
leitura, a matrona aproximou-se e perguntou se podia ajudá-lo em alguma coisa.
Ele agradeceu dispensando. Mesmo assim ela sentou-se ao seu lado. O busto
impudico foi parar dentro dos olhos de Fan-fon Pen, também seguiram para lá, o encontro final, de suas
volumosas pernas cruzadas. Ela suavemente pousou sua mão alva e aveludada sobre
a coxa dele. Fez isso enquanto fazia uma
referência àquele livro. E uma centelha de fogo invisível percorreu todo o
corpo do mancebo. E seu sexo fez-se inflado feito bexiga de festa dentro das
calças. A mão de fada procurou ávida a vara de condão. E o menino sem tirar os
olhos do livro, viajou sereno na garupa de uma magnífica vaca encantada dotada
de asas e tetas divinais. E nos seus pêlos ásperos cavalgou. E foi arrebatado
para o alto, cada vez mais alto, tão alto que lhe veio uma vertigem e ele caiu
desfalecido na mesa de leitura.
AREIA E PEDRINHAS
Gostava de ir brincar na beira do rio Ipanema, a tarde quando nada
tinha pra fazer. Tão bom, ficar horas brincando na areia. Deixava-se rolar na
areia fofa, macia. E com areia molhada fazia desenhos, construía figuras e
bonecos. Dava nome as suas esculturas. De areia, esculpia toda a sua turma
excetuando a professora Dona Carmem. Pois uma vez tentou esculpi-la, mas ficou
tão feia e ele preferiu dizer que era uma de suas irmãs, a Renata. Depois
destruía tudo, esmurrava os bonecos que representavam os colegas que mais
implicava com ele. Construiu de areia, uma cidade. Imaginou uma cidade feito
Santana só de meninos e meninas. Ele
mesmo se elegeria prefeito, não precisaria de eleição. Seria prefeito o menino
que tivesse a cabeça maior, pronto era ele mesmo! Fan-fon Pen prefeito da cidade de Santana do
Ipanema, na versão só pra meninos e meninas.
Baixaria uma lei: Ali ninguém
podia fazer chacota uns dos outros. Colocar apelido em alguém seria um crime
punido com prisão perpétua. Em caso de reincidência, pena de morte sem apelo.
Dividiria Santana ao meio: A Camoxinga seria das meninas e o Monumento seria
dos meninos. Uma Santana, onde todos se
preocupassem unicamente em brincar, quanto mais criativa a brincadeira, mais a
meninada ganharia por isso. Seus salários claro, seriam pagos com os doces, bolas
de futebol, patinetes, bicicletas da Casa Comercial de Seu Marinho. Todos
podiam fazer coleção do que quisesse. Ele gostava de colecionar pedras e
conchinhas. Estava sempre em busca de uma pedrinha de cor diferente pra
aumentar sua coleção. Cada pedrinha sua, tinha nome de coisas bonitas. Na beira
do rio Ipanema já encontrara tantas pedrinhas que aumentavam sua coletânea.
Tinha vontade de colecionar outras coisas. Talvez botões, pipas, bolas de
gudes, flâmulas de clube. A única regra era: tinha que ser coisas
coloridas.
A MENINA
Assim que a viu apaixonou-se. Ficou completamente apaixonado pelos
olhos de Gioconda. Não por ela, mas pelos seus olhos. Eram os mais lindos que até
então ele já contemplara. A menina novata na escola tinha mais dois irmãos,
Pietá e Leonardo. Eram filhos de um fiscal de impostos de renda estadual que
viera transferido da capital morar em Santana do Ipanema. Matriculou os três na
Escola Padre Francisco Correia. Agora, nada mais o fascinava que os olhos de
Gioconda. Nem Dona Carmem com quem compartilhava suas confidências, nem as horas
felizes com ratazana, nem as idas ao Ipanema, nem a volúpia do gozo velado,
proporcionado por Dona Iolanda naquele dia na biblioteca. O prazer de contemplar
os olhos de Gioconda, comparável apenas àquele de admirar as pedrinhas
coloridas de sua coleção. Os olhos daquela menina passou a ter uma significação,
de algo desejado nunca antes experimentado. Contemplar aqueles olhos era como
entrar num mundo de sonhos só dele. Um mundo todo azul, suave, aveludado.
Sentia-se leve numa outra dimensão. Um mundo em anil. Onde borboletas azuis marinhos,
num céu azul piscina, esvoaçavam por uma aura azul turquesa. Dali do interior
daquelas duas contas blues no rosto da menina, emanava uma paz nunca antes
encontrada. Aquela paz lhe pertencia. Tinha certeza, a menina bem o sabia que
não era de seu, mas dele. Surgida na sua vida para entregar-lhe:
-Toma esses topázios são teus.
Dizia aquele anjo índigo, no sonho. É tua vida que te dou.
DUAS PEDRAS MAIS PRA COLEÇÃO
Desde que vira a menina, suas noites tornaram-se insones. Agora ainda
mais amuado nas aulas, motivaram preocupação dobrada de Dona Carmem que em vão
investigava as causas. “Ratazana” não entendia o que acontecia com seu melhor amigo.
–Está em estado depressivo. Disse alguém na escola.
-Isso é da idade! Falou um
outro.
-Nada de diferente notei. Em casa comentou-se.
Mas ele andava feito um sonâmbulo. Parecia nada escutar do que lhes
falavam. Transportado pra um outro mundo, estando somente de corpo, nesse.
Corpo anestésico, letárgico. Sua mente, sua vida, sua alma dentro do natiê daquelas
duas contas. Aquela menina, enfim ele as encontrara. A coleção, apenas pretexto, sabia que um dia a
encontraria. De repente começou a
faltar-lhe ar nos pulmões, sua vida se esvaindo, tragada pra o profundo daquelas
duas auras de luz lazuli. O mundo girava, a sala de aula rodopiava. Os gritos
dos meninos, no recreio do pátio, som distante. Procurou por ela. Lá estava, indo
ao banheiro. Seguiu-a.
Um grito de horror ecoou no pátio. Uma menina apavorada se arremessou
de dentro dos banheiros femininos. Em estado de choque nada conseguia dizer. A
professora chamou a Diretora algo sério aconteceu no banheiro das meninas. Uma
comitiva de professoras se dirigiu pra lá. Uma cena dantesca, macabra, fez-se
ali. Fan-fon Pen, em pé, olhava fixo no nada. A menina estendida ao chão, corpo
inanimado, seus longos cabelos loiros recobriam o rosto, a cabeça envolta numa
poça de sangue. E das duas mãos crispadas dele, gotejava no piso úmido por
entre os dedos, viscoso líquido vermelho sanguineo. E pousavam da palma de suas mãos, duas contas
globulares impregnadas desse líquido, num misto de vermelho, branco e azul.
Fabio Campos
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