Labirintos

“Em verdade te digo: nesta noite mesma, antes que o galo cante, três vezes me negarás.” – Mateus 26,34

Tão longe se encontrava dali. Muito além, dos telhados das casas. Talvez num país dos sonhos. Para além do horizonte. Donde um novo dia se pronunciava. Estrela Dalva resignada assistia a invasão do monarca sol, instalando seu etéreo reinado de doze horas. Seu corpo se havia. Coberto, jazido sobre o leito. Talvez não tivesse consciência de ter acordado. Apenas o movimento da respiração, acusava vida. Ainda de olhos fechados permaneceu por mais tempo. O morno de seu corpo entranhava-lhes as carnes, debaixo dos lençóis. Uma preguiça de estimação, de modo algum o permitia tomar as rédeas do consciente. Ainda assim tentou lembrar como, e qual fora, o dia anterior. Nada. Semi-acordado sentia transcorrer infinitésimos espaços de tempo, segundos, minutos e nada. O homem se quer se lembrava quem ele era. Absolutamente de nada lembrava. Não, não era comum, acordar e não lembrar qual tinha sido o dia anterior, muito menos quem era aquele que lhe habitava o corpo.

Abriu os olhos. A baixa luminosidade forçava a dilatação das pupilas, esforçou-se para reconhecer o ambiente. Era um quarto pequeno, bastaria estender o braço e tocaria uma das paredes. Ao pé da cama um criado-mudo, um abajur apagado. Um ventilador, obediente cumprindo sua função, muito embora dizendo: não. Uma janela tomava praticamente quase toda a parede oposta. Cortinas escarlates filtravam um irrisório feixe de luz que ensanguentava as paredes. Tomando coragem sentou-se na beira da cama. Se tivesse sido mais minucioso na sua observação, teria visto, ao lado do ventilador, uma carteira de couro, um maço de cigarros aberto, um óculos, uma vela apagada, uma caixa de fósforos. Um copo com água. Para que será que servia aquele pequeno comprimido branco num pires? Maquinalmente levou-o a boca, e engoliu com o auxílio de um pouco d’água. Se tivesse percebido que fazia aquilo todo dia, seria avanço. Dirigiu-se a porta, girou a maçaneta. Abriu. Havia uma sala com sofá e centro de tampo de vidro. Uma porta que naturalmente acessaria a um banheiro. E um corredor que levava a cozinha. 

Optou por ir ao banheiro. Ao abrir a porta, assustou-se, ao ver sua silhueta projetada sobre o espelho do toucador. Era a de um homem velho, de longos braços, e de um tórax avantajado. Hesitou em acionar o comutador da lâmpada do toalete. Tinha medo. Precisava de algo mais para encarar aquele si mesmo. Recostado ao umbral da porta, buscou fundo, o que mais poderia saber sobre aquele homem estranho, projetado na camada de prata, junto ao toucador, ele próprio. Aqueles cabelos grisalhos revoltos lembravam seu pai. Denotava ser um homem que na juventude tivera que trabalhar no pesado, porque não nascera em família abastada. Somente intenso serviço braçal poderia ter lhe dado tal corpanzil. Aquele homem que não era ele, talvez tivesse que acordar de madrugada, para trabalhar no abate de suínos. Os dedos nodosos, nas mãos enormes, cuja aliança de casamento jamais sairia facilmente, talvez tivessem adquiridos tais nós, com o manejo do cutelo, fatiando com habilidade as carnes, e as vísceras dos rosados suínos, de olhos serrados. Cujas cabeças separadas do corpo, em cima duma tarimba, pareciam sorrir. E quando pegava um tacho para encher de água, a aliança se chocava contra o metal, produzindo um som de ouro e bronze. Quem sabe aquele homem, tivesse guardado numa caixinha de madeira, uma medalha de honra ao mérito, que ganhou porque um dia esteve à frente de uma tropa da polícia, e combateu na década de trinta, o cangaço no sertão. A verdade é que não se sentia aquele que estava lá. 

Aquele homem, que sua própria imagem projetava, por certo seria seu pai. Tudo nele, naquele instante remetia a ele. A rudeza de seu corpo. Como não tivera uma vida fácil, era homem de coração duro, de pedra. Recordava de como tratava a ele, e a seus irmãos. E de como achava suficiente prover o lar naquilo que fosse necessário. Recordou de uma única vez em que lhe chamou, para uma conversa de pai pra filho. Poucas foram as palavras, porém nunca as esqueceria. Perguntou-lhe o que pretendia da vida. E apenas quinze anos tinha. Lembrou de sua mãe que fora uma mulher muito doente. E que muitas vezes vira seu pai chegar à casa de manhãzinha, e sorrir. Porém ela não devolvia o sorriso. E iam dormir. E dormiriam o dia todo. E a mãe concebeu e deu a luz a um outro menino. Mas era uma criança muito doente. E a avó do bebê, muitas vezes viria auxiliar sua filha, no período de convalescença que chamavam de resguardo. E o menino doente chorava muito. E aquele homem, que não era ele, se aborrecia com o choro porque precisava repousar. Isso doeu profundamente na pobre mãe. E o irmãozinho doente, nem completou um ano, morreu. E o galo cantou.

Toda primeira sexta-feira de cada mês ia a mãe, puxando o menino pelo braço. Ia cumprir a sua devoção de rezar o santo rosário, e assistir a missa matinal na igreja matriz da paróquia de Santo Antonio. Era uma promessa por uma graça alcançada, a visão do filho recuperada. Vou contar como foi. Foi assim, um dia o menino saiu pra brincar com os colegas. Tinha por volta de nove ou dez anos, acho. Inventaram de caçar passarinho. Embrenharam-se na mata branca. Não adiantava negar depois pra onde tinham ido, seus corpos denunciaria. Caso fossem tomar banho de barreiro, o azinhavre na pele. A caatinga também imprimia suas marcas epidérmicas, riscos de rasga-beiço, calombos de urtiga, mordidas de formigas. Noutros tecidos, pega-pinto, nódoas de pinhão roxo, caju, sumos e cardos, além do aromático perfume das frutas temporãs desfrutadas impregnavam a roupa. O menino tentou apanhar um ninho de uma codorna que estava para além dum pé de labirinto. O avelós que o farmacêutico chamava de Euphorbia tirucalis foi deitar sua seiva leitosa justo nos olhos do menino, e ele ficou cego. Naquele tempo frei Damião, o frei capuchinho, peregrinava pelo sertão pregando suas santas missões. E a mãe levou o menino cego, pro frei impor-lhe as mãos. O menino ficou curado. E cresceu tornando-se belo varão. E já homem feito, deu-se em casamento a uma bela jovem, que era devota de Nossa Senhora de Fátima. Um dia a esposa chamou seu marido, para irem a uma missão do frei capuchinho, e teve que amargar uma frase de deboche, porque a única coisa em que seu esposo acreditava, era na força do trabalho. O mundo o havia tornado um empresário bem sucedido. Porém o capital tornara-se seu deus, somente nele acreditava. E o galo cantou, pela segunda vez.

Na nossa história daria de aparecer João Pedro. Belo menino, de feição angelical. O dúbio prenome advindo do avô, e do pai. Ao pequenino uma rígida instrução catequética. O primário em colégio de freiras. Paulatinamente teria sua existência, modulada dentro de princípios cristãos. O amor maternal, aliado a um desejo pessoal, alimentava a esperança de vê-lo um dia, abraçar a vida sacerdotal. A mãe sempre que tinha oportunidade fazia questão de lembrar-lhe, quem eram seus padrinhos. Cobrava-lhe a benção, se esquecia de pedir. Um dia contou-lhe em detalhes como tinha sido a cerimônia do seu batizado. Foi um dia de júbilo, um dia de festa, para toda a família. Seu padrinho, homem influente na política partidária da capital, tomou vinho mais o compadre e nunca mais apareceu. O padre, além de administrar o sacramento da igreja, no mais novo irmão de Cristo, fez questão de aspergir água benta em todos os cômodos da casa. 

Como as páginas de uma bíblia aberta, soprada pelo vento, o mundo soprou vertiginosamente as folhas do tempo. João Pedro deixou a infância pra trás. E uma vez jovem, não se decidira que sacramento abraçar: vida matrimonial ou vida religiosa? Mas Leviatã, o príncipe das trevas, sacudiu o rabo. E o belo varão de nome evangélico, deu de duvidar em seu coração, que Jesus Cristo jamais se incorporava na hóstia, perante a consagração no altar. E disse pra si mesmo que ia provar isso. Numa áurea manhã, de domingo foi à missa. Se introduziu na fila da comunhão. O pão sagrado foi recebido. Em surdina, saiu de sua boca para a mão, e da mão para o bolso. Uma vez em casa João Pedro dirigiu-se ao seu quarto. A alva célula eucarística, ele a depositou sobre um banco de madeira, e passou horas fitando-a. Estava decidido. Erguendo um martelo a cima de sua cabeça, desceu com toda força sobre a partícula do pão consagrado. Seu rosto, seus braços, as paredes do quarto tudo que havia ali ficou tinto de sangue. Cantou o galo, pela terceira vez.

Fabio campos

Jardim dos Desencantos

Do banco onde estava sentado dava pra ver o jardim. Olhando assim parecia apenas um jardim. E era só um jardim. Se olhasse para cima um céu azul maravilhoso estava lá, pedindo pra ser olhado. E se namorasse aqueles azuis, por certo viria encher os olhos, a boca semi-aberta, traqueia, e pulmões. O frescor, invadindo a mente, que tanto carecia de refrigério. Esperava. Por Deus! Era tão cansativo. Quem gosta de esperar? Ninguém gosta! Porém era preciso. Pois além do que apenas viam os olhos, talvez houvesse outros mundos. Submundo, ultramundo. Se bem que parecia, apenas parecia, não caber naquele instante, discernir que tipos de mundos além daquele existiriam ali. Além daquele que viam os olhos. A grama no jardim, pedia água, sempre pedia. Musgos sempre careciam de água. Era só abrir a torneira. E tinha consciência que detinha o poder entre abrir e não abrir. Poder entre a vida e a morte. A torneira, não estava mais que um braço estendido. Cristalina fluída, translúcida, refrescante, água que possibilitaria vida.

Mundo
Noutro dia, havia um menino brincando de bola na rua. Na verdade vários meninos brincando de bola se haviam. Brincaram e brincaram, mas também foram pra escola. E os meninos virariam rapazes e depois homens feitos. Deles que conheceriam outros mundos, e outros amigos. E dariam de andar em más companhias. E vilipendiariam o conselho dos mais velhos. E conheceriam o fascínio devastador da diamba, talvez pra outros e mais outros sonhos psicodélicos, se sentiram atraídos. E nessas viagens embarcariam de corpo e mente, que tanto mentia. E da mentira que vivam passariam a mentirem pra si mesmo. Uma senhora idosa, viúva, fora estuprada, a poucos metros daquele jardim. Pobre viúva vivia sozinha. Ninguém ouviu nada. Dias depois morreu. A pobre senhora morreu. O rapaz que escolheu o mundo dos sonhos, quão caro pagaria. Foi atacado no meio da rua, alvejado por um tiro, nas costas. Acabou paraplégico. E o sol pela manhã ia misturar-se com o balaústre do jardim. Nele se entranhou, no ouro amarelo de cor. E emprestou-lhe calor, e aquecia o vento que vinha admoestar os tecidos epiteliais. Tanto por sobre a pele como para além dela. E desciam a possibilitar novas vidas, no jardim, sob a terra, sobre as plantas, e para além delas. Tudo, tudo muito a cima dos pensamentos volúveis.

Os pardais, sob os fios de alta tensão, se aqueciam entufavam suas penas e enchiam o ar de cheiro de sertão, e de menino de calça curta e atiradeira. Cheios de inocência, de tomar banho no riacho. Nus, sem pudor, de sexo minhoca, que nem pelos pubianos tinham. Meninas, no frescor da água e da vida, só de calcinha, raquíticas, de minúsculos tórax, apontavam seus peitos intumescidos, e se embeveciam de barreiro.  E os pardais cantavam canto de namoro, núpcias e acasalamento, e diziam a todos que assim era bem mais fácil viver.  Era preciso se dar conta de que tudo, tudo que respirava, tudo que rastejava, vivia. E tudo que vivia admoestava a si mesmo, pelo fato de viverem, pelo peso da existência. Elementos sociais do mesmo universo, do mesmo nível, dito elevado, ainda que fossem do nicho de vermes, insetos, anfíbios, quão diferente um dos outros eram. Grilos que cantavam canto de esfregar patas, mas que pouco nos importavam seu canto. E que podíamos enxotar ou simplesmente esmagar sob o calcanhar. Sua cri-cri sinfonia que tanto e tanto incomodava. Importava-nos o incômodo que causavam, e decidíamos que haviam tornado-se réus de morte, porque a execrável opereta entomológica afetavam o sistema neurológico, de seres ditos mais evoluídos, ditos humanos, desumanos. Haveríamos de considerar que possuíam o péssimo hábito de roerem roupas. Sentenciados eram de morte, por lei promulgada e outorgada por nós mesmos. E como deuses de um mundo, mundo. Tínhamos poder pra decidir quem viveria quem morreria.
  
Submundo
Ainda havia o jardim. E lá adiante uma esquina, por várias vezes, haviam encontrado um trabalho de oferendas para entidades de outras esferas existenciais. Ainda de manhãzinha, dona Gestrudes, ia passando, ao ver o despacho, lançou grito de horror. Porém isso, nem um pouco alterou a lida dos mosquitos, e do orvalho, que cumpriam sua missão de fazer o amanhecer se fazer dia. Gélido halo duma manhã de sexta-feira treze de agosto. E alguém teria dito que o trabalho tinha sido feito pra criar desavenças num casal casado. Uma mulher dama que tinha um caso com um marchante, queria que o açougueiro deixasse a mulher com quem vivia. O despacho amanheceu lá na encruzilhada, de onde o jardim olhava, e ficou lá pra quem quisesse ver. Um balaio contendo uma garrafa de cachaça, anéis partidos, cédulas de dinheiro impregnadas de perfume, pétalas de rosas, uma galinha preta, morta, farofa, azeite de dendê, pipoca, bombons de chocolate, maços de cigarro, fósforos. Fotografias três por quatro, de um homem de meia idade sisudo, bigode, cabelo bem penteado e paletó, que por certo se sentia tão mal dentro daqueles trajes, e debaixo daquela manhã pior ainda. Dava pra perceber que nenhum só dia o marchante teria sido aquela pessoa do retrato. A mulher era de uma tez serena, quase ingênua, por certo nada satisfeita por saber-se exposta a vista do povo, fora da caixa de sapatos onde passara mais de vinte anos guardada. O sangue do galináceo respingara sobre as fotos. Enquanto o que se havia no pires branco, fora invadido pelas formigas.  O marido da viúva estuprada apareceu lá. Lembro de quando ele morreu, era um homem forte um homenzarrão, tipo assim, pau pra toda obra. Desentupia esgotos, esgotava fossas, carreador de mangaios da feira. Cuidava com zelo de muares, criar burras de carroça era mais que um trabalho, era passatempo, era diversão. Limpar terrenos baldios e roçar mato, o trabalho menos árduo que realizava. Ainda trajava sua roupa surrada, seu chapéu de palha de abas curtas, suado na dobra, empretecido de fungos. As bocas da velha calça enrolada até as panturrilhas. Chinelas de dedos sofridas feito tudo nele. A mesma barba rala por fazer, os dentes encardidos de fumo. Não falou comigo pensava que não o via. Perguntou a sim mesmo o que estava fazendo ali. E chegou uma menina de seus treze anos. Reconhecia-a, era a sobrinha da mulher da casa do jardim. A pelo menos seis anos havia tirado a própria vida. Olhou pros quatro cantos da encruzilhada. E se foi. Alguns espíritos maus desta dimensão invocavam com aqueles trabalhos espíritos desencarnados que apesar de terem feito a travessia, não descansavam, vagavam no limbo. Alguns compareciam ao chamamento mesmo sem o saber porque. Como nada tinham a ver com aquilo, voltavam. Assim fez a menina. O homem rude ainda espantou cavalos e pos fogo num matagal, antes de voltar.
 
Ultramundo
Jardins na terra, por mais ínfimo que fossem, representariam outros dois tipos de jardim. Aquele de onde veio e regressaram a menina e o homem rude. Jardim das tribulações, herbário da expiação, pradaria da purificação, bem como o jardim mais elevado. Aquele que o povo hebreu vagou quarenta anos pelo deserto a procura, jardim donde emanava leite e mel, para onde toda alma boa deve almejar ir um dia. Aquele de onde o homem e a mulher que vieram do pó acabaram expulsos. E que alguns chamam de paraíso, outros de jardim do éden. Preferimos jardim dos encantos e desencantos. Por isso esperava.


Fabio Campos      

Quando Morre Uma Canção.

Na infância de minha mãe tinha casa com janela. Casa velha de pau-a-pique, argamassada com argila. Só a fachada de tijolos dobrados. A janela de vão alto, e batente largo, acomodava, com folga, uma menina como minha mãe um dia fora. A porta da frente era de folha inteiriça. Por dentro, um crucifixo de palha de coqueiro trançado. Tradição de semana santa. No domingo de ramos, ainda de madrugada, vestidas de preto, as mulheres da devoção ao sagrado coração de Jesus, carregando uma imagem do padre Cícero do Cariri. Iam até um lugar alto, onde tivesse um cruzeiro, uma santa cruz de beira de estrada, uma igreja, ou capela. Rezavam a ladainha a Nossa Senhora e o santo ofício. E veriam chegar a noite, em claridez de vela, tremeluzidas de frio, choravam e choravam, emanando tênue lumiar, alaranjando tudo. E seguia a procissão cantando cantiga triste que falava de cálix bento, de oratório e de onde Deus fez a morada.

De volta pra casa minha vó trazia nas mãos, galhos de plantas nativas. Plantas que serviriam de remédio. Erva cidreira, capim santo, barbatimão. Por um ano inteiro as ervas bentas, benzidas pelo padre Moisés ficariam guardadas. “Preparai os caminhos! Desentortai as veredas! Pois o tempo do Senhor está chegando.” Exaltava o discípulo de Cristo às mulheres piedosas, zelosas da obra de Deus, na terra do carcará. E pedia-lhes que além das plantas, trouxessem sal, uma vela, e fósforos. Iriam precisar se quisessem sobreviver aos dias das trevas que estava por vir. Pedia pra fixar o crucifixo atrás da porta, para que a besta-fera quando passasse ali, não parasse nem entrasse. Seguisse seu perverso destino de ceifar almas de homens tribulados. E os sons que se ouviam nas madrugadas pias, era da coruja rasga-mortalhas sobrevoando as casas preambulando maus agouros, quase que arremedavam as matracas estridentes nas mãos dos coroinhas. E seguiam pisando o chão de terra. Lamuriento cortejo, cantando reza, de caminhos tão longe cheios de pedra e areia. 

Joana D’arc a frente do campo de batalha, elmo a cabeça, lança ao ombro. Olhar no adiante velava a parede frontal da sala. Na paralela, um biscuit exibia uma manada de touros vermelhos, tão artesanal, tão rústico que até hoje dói. Um pequeno corredor separado da sala por um pequeno declive no chão, e a manada de netos de minha vó, por ali deslizava e brincava. O corredor acessava a ínfima cozinha. Corredor e cozinha tinham piso revestido de tijolos de barro em tons pastel. Engraçados, lembravam na cor e no formato, grandes bolachões dos que a gente comprava nas bodegas e padarias, e que nunca ficavam velhos. O teto da casa era tão baixo que qualquer homem mediano, bastaria estender a mão à cima da cabeça, e tocaria os caibros lenhosos do telhado irregular. O fogão a carvão, não lembro um só dia que ao entrar ali, não tivesse uma panela de estanho decorada por duas tonalidades de tinta esmaltada, a parte do fundo de vermelho, e da metade para cima amarelo, fumegando. Isso ficaria para sempre impresso na minha cabeça. Fumaça plúmbea se misturando com o fumo azulado do cachimbo de minha vó. E a casa inteira de certo a ouviria cantar cantiga indígena de quando menina e misturava palavras y-hatê e português. E que tanto e tanto lembravam as cantigas de ninar de Inácia, a preta Bá que me embalou em criança. E a cantiga carregada de ameaças, dizia de boi da cara preta, de bicho papão, e de lá de cima dos telhados.

No ano de 32 minha mãe contava com seis anos de idade. Aquele,  fora um ano de muita seca. Estiagem medonha. Castigos imposto ao Faraó do Egito por ter perseguido o povo hebreu, veio se repetir no nosso sertão. Aridez severa, pessoas morriam de fome. De nada valia dobrões de ouro guardados na burrinha, o vil metal de nada servia onde escasseara o precioso líquido do céu que possibilitava o alimento da terra. Dos frutos agropastoris vivia minha parentela. Naquele dia estavam todos na casa da roça. Ali se encontrava minha vó Amância, cujo nome indígena vem de A-man-tyá, que significa “senhora da chuva”. Avô Thomaz, homem pacato, sereno, nunca ninguém viria de humor alterado. Exercia também a profissão de barbeiro. Enquanto cultivavam a mãe terra. E viram um tumulto, pequena aglomeração na porta da casa da rua. Isso era vista como daqui lá longe. Um primo de minha mãe fora pedir socorro, acabou desmaiando de fome, na porta da casa de minha vó. Na terra do sol poente o sertão euclidiano, com todas pinceladas de angústia que aquele escritor testemunhara, eles viveram. As lamúrias e penúria. Gonzaga mais tarde melodiaria o lamento do sertanejo. “Senhor perdoa esse pobre coitado que de joelho rezou um bocado.”

Ao lado do quarto de minha vó ficava a dispensa. O quarto dos mistérios para os netos. Proibidos éramos de lá entrar. O escuro se fazia ali, ainda que do lado de fora estivesse o maior solão, lá dentro permanecia uma bolha impetrável de escuro. Tão fluída, flutuava e dava medo, dava pra sentir a gélida aura que dali emanava. Arrepios ao ter que entrar lá. Hoje sei que ali permaneciam, os espíritos dos antepassados de minha vó, Minha “grande mãe”. Cuja mãe morrera cedo, de complicações no parto. Seu padrasto, um índio legítimo. Índio, não tinha pena de ninguém, a vida que levavam, endurecia seu coração. Assim disse minha mãe. E meu avô barbeiro cortava o cabelo das filhas quando lhe aprouvesse, bem como não permitia que cortassem por conta própria, mesmo depois que adquiriram a capacidade de discernir o que queriam. E as meninas pareciam presas, as músicas de roda que falavam de samba, de crioulas, e de bacia areada com sabão.

Minha mãe foi menina de uma irmã só, que se chamava Maura, que um dia descobriria que o nome Maura viria de amarga. Maura sonhava em ser artista do rádio. Sonhava um dia ir pra São Paulo cantar numa emissora de rádio. Melodiava canções de Chiquinha Gonzaga e Isaurinha Garcia. E a vizinhança parava para ouvi-la. Aconselhavam-na seguir carreira. E ela simplesmente esperava, um dia seria cantora. Minha mãe conheceu o caminho da igreja, descobriu que o caminho da igreja lhe oportunizava sair de casa. Cantar as músicas sacras. Cidadezinha, nunca tem muitos atrativos. Em dia de feira, da janela, olhar os bêbados que voltavam da feira, alguns vinha cantarolando, músicas de Vicente Celestino, vivendo em tempo real o personagem. Se natal a única diversão era ir aos currupios um carrossel rústico. Na praça ouvir os tocadores de pífano, depois da novena. Acompanhar o leilão. Assistir o alto do Natal onde Maura fazia papel de uma preta frívola, caricata. Mambembe fazia rir a todos com seus trejeitos. No seio daquela família Deus conceberia de nascer um menino, e minha mãe sugeriu que colocasse o nome de Dorival porque tinha um livreto com as músicas de Dorival Caymmi. “O mar quando quebra na praia é bonito”.

E o mundo rodopiou feito pião feito de goiabeira e que só rodava na ponteira, na palma da mão dos meninos e meninas que iam pelas ruas, Rua da Assembléia onde morava minha vó. E  corriam, corriam aqueles meninos e meninas até se cansarem, e exaustos cairiam na areia do olho d’água que embalariam seus sonhos. Sonhos de velhos navegantes que vão navegar por águas nunca dantes navegadas. Lugares carregados de mistérios onde são sepultadas as músicas, e os sonhos de velhas crianças que queiram ser artista. Lugares aonde são enterradas toda vida, a vida toda, sempre e sempre... Quando morre uma canção.


Fabio Campos  

A Décima Terceira Letra

Ao encerrar aquele livro, Maria não sabia se perplexa, ou apenas impressionada. Na ficção, uma personagem era ela mesma, não tinha a menor dúvida, era ela. Aquela história relatava com riqueza de detalhes uma pessoa a quem conhecia: ela própria. O autor, americano do Texas, um cara, a quem jamais, teria tido a menor chance de ter conhecido. Sua parca existência vivera em plena caatinga do sertão das Alagoas. Dona Durvalina sua mãe, tivera dezenove filhos, porém, somente treze vingaram. Era esse o modo do sertanejo dizer a lei de Darwin. Maria do Amparo Vieira, registrada no cartório das causas cíveis, daquele longínquo condado, incrustado na zona rurícola alagoana, nascera num tempo em que o militar, Artur da Costa e Silva, não havia muito, se encontrava no poder máximo da nação brasileira, Che Guevara morria na cordilheira Andina, e Fidel ainda verde, na idade e nas fardas, subira e se mantinha no poder de Cuba. Por essa época chegaria a décima terceira herdeira do clã dos Vieiras. O documento do tabelião bem que podia dito: Vai Maria! Vai viver tua infância de carros de boi, vai ser bela cabocla, adolescer nadando no riacho, colher fruta no pé e sonhar, esse é teu destino. Porém num ponto, a história do texano não batia com a dela.  Envolta em reminiscências, Maria não sabia, mais iria descobrir coisas interessantes.

Seu Floriano Doroteu Vieira, o pai de Maria, era homem rude. Um homem braços, tronco e mãos. Mãos severas, gigantescas. Mãos que, como ninguém, sabia laçar o boi, mãos que amava a terra, com ela amasiada, e lhe fazia carinho, e recebia em troca, com fartura e regozijos. E os céus de Deus testemunhavam e aprovava aquele amancebamento. Seu Floriano que levava horas, talvez as melhores de sua vida, manufaturando um cigarro de fumo picado e palha de milho. Escornado num banco corredor, a contemplar sua obra, feita com enxada, arado e máquina de plantar porém nada seria se não fosse a ajuda do Criador, a obra não estaria perfeita: milharal dando milho, palmeiral, dando palma, leguminosas: feijão. Cabeças de gado de leite, engorda e trabalho. O pai de Seu Floriano, Seu Pedro Rodrigues, fora um rico fazendeiro, que mantinha sua imensa propriedade, na lei do tempo da escravidão. Mantinha negros na senzala, castigava-os sem dó nem piedade. O próprio Floriano presenciou, uma vez, seu pai dar uma tremenda surra de chicote de couro cru, numa negra, totalmente nua no terreiro da casa grande, sob a vista de todos. Cada chicotada arrancava tiras da pele da negra, e o sangue lavando seu corpo ia tingir de um vermelho escuro o barro de chão batido. Tudo isso, unicamente porque a preta, havia negligenciado seu serviço, fazendo com que os bezerros da desmama, se soltassem do curral e fossem mamar nas vacas leiteiras. Seu Pedro que em surdina abusava daquelas mulheres escravas, as mesmas em que batia covardemente. E as mucamas davam de parir negrinhos e delas nasciam caboclos dos coitos pecaminosos, que viravam homens brutos, que viravam capitães do mato. Afilhados do poderoso padrinho, senhor Pedro. Herdeiro de metade das terras devolutas doadas pelo governo no começo de tudo, assim fora Seu Pedro Rodrigues. Terras fincadas pras bandas dos sítios Capim, Brejinho, Cava Ouro e Rua Nova. Floriano ainda jovem era dado às farras, o que herdou do pai, acabou. Em viagens de avião, pro sul do país, a gastar nos cabarés e cassinos da capital paulista.

Nas mãos daquele homem, agora velho, cansado e doente, Maria e os doze irmãos sofreram o pão que o diabo amassou. Seu Floriano amargava a revolta de ter perdido o que tinha, e culpava a imensa prole por isso. Dia de feira livre, era dia de espetáculo. Cedinho os bois de canga eram atrelados no carro, e rumavam pro povoado. Com ele ia toda a família. Só voltavam no fim da tarde, quando o todo poderoso, aquele que ditava naquelas plagas quem iria viver ou morrer, o rei sol. Aquele que ainda a pouco, inclemente castigava o roçado, e fazia tremer o aceiro, enquanto a rolinha Fogo-apagô, lá no galho do umbuzeiro cantava seu canto lamurioso. No cair da tarde o astro de fogo amansava, amolecido na sua brabeza, se inventava de exercer no céu, a mais nobre arte de pintor. Danava-se a pintar magníficas obras, como a despedir-se do sertão, seu servo cativo, prometendo retornar no outro dia. Seu Floriano embriagado, transformava-se num homem mau, ditava palavras duras contra dona Durvalina. Por nada, batia nos filhos, sem dó nem piedade, pura e simplesmente por revolta. Numa daquelas voltas da feira, chegou trazendo uma velha carabina. Estava resolvido a experimentá-la. Havia sido um de chuva, um mar d’água vertendo pelas veredas do sertão. Raios e trovões esbravejavam clareando o negrume do céu, como se reprovassem as atitudes dos homens cruéis. Era de tardinha, mas parecia noite. Seu Floriano obrigou Maria a ir colocar umas garrafas vazias de pé, no meio do terreiro, pra ele praticar tiro. Maria tinha medo de trovão, negou-se cumprir, mas a ordem estava dada, tinha que ir, não importava o choro. A menina deu o primeiro passo, vacilou. O trovão estrondou e o raio rasgou o breu celestial com mais um clarão. A menina estava decidida não iria, deu meia volta e correu, ao correr pro quarto, Seu Floriano fez da própria filha o alvo, atirou.

Maria, agora menina-moça se olhava no espelho, fixou o olhar na pequena cicatriz, na fonte esquerda deixada pelo tiro daquele dia. O colorido das roupas no varal dava um ar alegre, ao sertão seco. Numa tarde prazenteira e preguiçosa, ao voltar do açude, cabelos dançando no sopro do vento norte, Maria resolveu ir embora, ia sair de casa. Ia morar com sua irmã mais velha, professora na província vizinha. Despediu-se da mãe e dos irmãos, foi muito triste, muito choro. Seu Floriano não participou da despedida, jamais concordaria. Um dia alguém bateu a porta, Maria foi ver, era um carteiro, entregou a correspondência, mas também todo o seu coração ficou, todo seu amor, daria aquela bela morena, que correspondeu a amor do jovem mancebo, entregador de cartas. Treze meses de namoro, e se deram em casamento.

Maria foi embora de vez. Deixou sua terra e sua parentela para trás. Noutro dia, ia pelo meio da feira, da nova província onde vivia com seu marido. De repente foi interpelada por uma cigana. A mulher como que surgida do nada, com seu longo vestido colorido, muitos colares e brincos vistosos, destacava-se no meio do povo. Uma figura estranha como se tivesse saído de um velho conto de Cherazade, das mil e uma noites, ou do filme Laurence das Arábias. Pediu para ler sua mão em troca de algum tostão. Por curiosidade Maria o permitiu. A mulher embusteira, se dizia vidente, acabaria por dizer verdades do passado de Maria que ela julgava esquecido, morto e enterrado encoberto pela poeira do tempo. Disse de um belo rapaz, seu primo, que a amara em segredo, que morava vizinho a propriedade de seus pais. Esse rapaz hoje era casado porém não era feliz. Disse-lhe ainda que na velhice Maria iria ficar viúva. O que Maria gostaria muito de ter ouvido da vidente, que talvez soubesse, porém não lho revelou, era sobre um de seus irmãos que muito lhe amava, que praticamente a criou, que lhe dispensara cuidados na pré infância. Tantos eram os filhos que sua mãe tinha que os irmãos tinham de cuidar uns dos outros. Aquele era o que dava-lhe banho, alimentava-a, cantava-lhe cantiga de ninar. A vidente não disse que ele morreria de doença grave. Ao palácio celestino, onde se traçavam os destinos, em sonho, Maria teve uma visão. Ao lado de um anjo que lhes teria dito: “-Maria! É preciso que a décima terceira letra viva, para cumprir sua missão na terra.” Só então compreendeu, a décima terceira filha, ela na geração de seus pais. Seu irmão caiu em doença e faleceu, foi tanto amor que a própria vida, ainda que não soubesse como e porque, também lhes deu.         

Fabio Campos