
Mundo
Noutro dia, havia um menino brincando
de bola na rua. Na verdade vários meninos brincando de bola se haviam.
Brincaram e brincaram, mas também foram pra escola. E os meninos virariam rapazes
e depois homens feitos. Deles que conheceriam outros mundos, e outros amigos. E
dariam de andar em más companhias. E vilipendiariam o conselho dos mais velhos.
E conheceriam o fascínio devastador da diamba, talvez pra outros e mais outros
sonhos psicodélicos, se sentiram atraídos. E nessas viagens embarcariam de
corpo e mente, que tanto mentia. E da mentira que vivam passariam a mentirem
pra si mesmo. Uma senhora idosa, viúva, fora estuprada, a poucos metros daquele
jardim. Pobre viúva vivia sozinha. Ninguém ouviu nada. Dias depois morreu. A
pobre senhora morreu. O rapaz que escolheu o mundo dos sonhos, quão caro
pagaria. Foi atacado no meio da rua, alvejado por um tiro, nas costas. Acabou
paraplégico. E o sol pela manhã ia misturar-se com o balaústre do jardim. Nele se
entranhou, no ouro amarelo de cor. E emprestou-lhe calor, e aquecia o vento que
vinha admoestar os tecidos epiteliais. Tanto por sobre a pele como para além
dela. E desciam a possibilitar novas vidas, no jardim, sob a terra, sobre as
plantas, e para além delas. Tudo, tudo muito a cima dos pensamentos volúveis.
Os pardais, sob os fios de alta
tensão, se aqueciam entufavam suas penas e enchiam o ar de cheiro de sertão, e
de menino de calça curta e atiradeira. Cheios de inocência, de tomar banho no
riacho. Nus, sem pudor, de sexo minhoca, que nem pelos pubianos tinham.
Meninas, no frescor da água e da vida, só de calcinha, raquíticas, de
minúsculos tórax, apontavam seus peitos intumescidos, e se embeveciam de
barreiro. E os pardais cantavam canto de
namoro, núpcias e acasalamento, e diziam a todos que assim era bem mais fácil
viver. Era preciso se dar conta de que
tudo, tudo que respirava, tudo que rastejava, vivia. E tudo que vivia admoestava
a si mesmo, pelo fato de viverem, pelo peso da existência. Elementos sociais do
mesmo universo, do mesmo nível, dito elevado, ainda que fossem do nicho de
vermes, insetos, anfíbios, quão diferente um dos outros eram. Grilos que
cantavam canto de esfregar patas, mas que pouco nos importavam seu canto. E que
podíamos enxotar ou simplesmente esmagar sob o calcanhar. Sua cri-cri sinfonia
que tanto e tanto incomodava. Importava-nos o incômodo que causavam, e
decidíamos que haviam tornado-se réus de morte, porque a execrável opereta
entomológica afetavam o sistema neurológico, de seres ditos mais evoluídos, ditos
humanos, desumanos. Haveríamos de considerar que possuíam o péssimo hábito de roerem
roupas. Sentenciados eram de morte, por lei promulgada e outorgada por nós
mesmos. E como deuses de um mundo, mundo. Tínhamos poder pra decidir quem viveria
quem morreria.
Submundo
Ainda havia o jardim. E lá
adiante uma esquina, por várias vezes, haviam encontrado um trabalho de oferendas
para entidades de outras esferas existenciais. Ainda de manhãzinha, dona
Gestrudes, ia passando, ao ver o despacho, lançou grito de horror. Porém isso,
nem um pouco alterou a lida dos mosquitos, e do orvalho, que cumpriam sua
missão de fazer o amanhecer se fazer dia. Gélido halo duma manhã de sexta-feira
treze de agosto. E alguém teria dito que o trabalho tinha sido feito pra criar
desavenças num casal casado. Uma mulher dama que tinha um caso com um marchante,
queria que o açougueiro deixasse a mulher com quem vivia. O despacho amanheceu
lá na encruzilhada, de onde o jardim olhava, e ficou lá pra quem quisesse ver.
Um balaio contendo uma garrafa de cachaça, anéis partidos, cédulas de dinheiro
impregnadas de perfume, pétalas de rosas, uma galinha preta, morta, farofa,
azeite de dendê, pipoca, bombons de chocolate, maços de cigarro, fósforos. Fotografias
três por quatro, de um homem de meia idade sisudo, bigode, cabelo bem penteado
e paletó, que por certo se sentia tão mal dentro daqueles trajes, e debaixo
daquela manhã pior ainda. Dava pra perceber que nenhum só dia o marchante teria
sido aquela pessoa do retrato. A mulher era de uma tez serena, quase ingênua,
por certo nada satisfeita por saber-se exposta a vista do povo, fora da caixa
de sapatos onde passara mais de vinte anos guardada. O sangue do galináceo respingara
sobre as fotos. Enquanto o que se havia no pires branco, fora invadido pelas
formigas. O marido da viúva estuprada
apareceu lá. Lembro de quando ele morreu, era um homem forte um homenzarrão,
tipo assim, pau pra toda obra. Desentupia esgotos, esgotava fossas, carreador
de mangaios da feira. Cuidava com zelo de muares, criar burras de carroça era
mais que um trabalho, era passatempo, era diversão. Limpar terrenos baldios e
roçar mato, o trabalho menos árduo que realizava. Ainda trajava sua roupa
surrada, seu chapéu de palha de abas curtas, suado na dobra, empretecido de
fungos. As bocas da velha calça enrolada até as panturrilhas. Chinelas de dedos
sofridas feito tudo nele. A mesma barba rala por fazer, os dentes encardidos de
fumo. Não falou comigo pensava que não o via. Perguntou a sim mesmo o que
estava fazendo ali. E chegou uma menina de seus treze anos. Reconhecia-a, era a
sobrinha da mulher da casa do jardim. A pelo menos seis anos havia tirado a
própria vida. Olhou pros quatro cantos da encruzilhada. E se foi. Alguns
espíritos maus desta dimensão invocavam com aqueles trabalhos espíritos
desencarnados que apesar de terem feito a travessia, não descansavam, vagavam no
limbo. Alguns compareciam ao chamamento mesmo sem o saber porque. Como nada
tinham a ver com aquilo, voltavam. Assim fez a menina. O homem rude ainda
espantou cavalos e pos fogo num matagal, antes de voltar.
Ultramundo
Jardins na terra, por mais ínfimo
que fossem, representariam outros dois tipos de jardim. Aquele de onde veio e
regressaram a menina e o homem rude. Jardim das tribulações, herbário da
expiação, pradaria da purificação, bem como o jardim mais elevado. Aquele que o
povo hebreu vagou quarenta anos pelo deserto a procura, jardim donde emanava
leite e mel, para onde toda alma boa deve almejar ir um dia. Aquele de onde o
homem e a mulher que vieram do pó acabaram expulsos. E que alguns chamam de
paraíso, outros de jardim do éden. Preferimos jardim dos encantos e desencantos.
Por isso esperava.
Fabio Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário