Quando Morre Uma Canção.

Na infância de minha mãe tinha casa com janela. Casa velha de pau-a-pique, argamassada com argila. Só a fachada de tijolos dobrados. A janela de vão alto, e batente largo, acomodava, com folga, uma menina como minha mãe um dia fora. A porta da frente era de folha inteiriça. Por dentro, um crucifixo de palha de coqueiro trançado. Tradição de semana santa. No domingo de ramos, ainda de madrugada, vestidas de preto, as mulheres da devoção ao sagrado coração de Jesus, carregando uma imagem do padre Cícero do Cariri. Iam até um lugar alto, onde tivesse um cruzeiro, uma santa cruz de beira de estrada, uma igreja, ou capela. Rezavam a ladainha a Nossa Senhora e o santo ofício. E veriam chegar a noite, em claridez de vela, tremeluzidas de frio, choravam e choravam, emanando tênue lumiar, alaranjando tudo. E seguia a procissão cantando cantiga triste que falava de cálix bento, de oratório e de onde Deus fez a morada.

De volta pra casa minha vó trazia nas mãos, galhos de plantas nativas. Plantas que serviriam de remédio. Erva cidreira, capim santo, barbatimão. Por um ano inteiro as ervas bentas, benzidas pelo padre Moisés ficariam guardadas. “Preparai os caminhos! Desentortai as veredas! Pois o tempo do Senhor está chegando.” Exaltava o discípulo de Cristo às mulheres piedosas, zelosas da obra de Deus, na terra do carcará. E pedia-lhes que além das plantas, trouxessem sal, uma vela, e fósforos. Iriam precisar se quisessem sobreviver aos dias das trevas que estava por vir. Pedia pra fixar o crucifixo atrás da porta, para que a besta-fera quando passasse ali, não parasse nem entrasse. Seguisse seu perverso destino de ceifar almas de homens tribulados. E os sons que se ouviam nas madrugadas pias, era da coruja rasga-mortalhas sobrevoando as casas preambulando maus agouros, quase que arremedavam as matracas estridentes nas mãos dos coroinhas. E seguiam pisando o chão de terra. Lamuriento cortejo, cantando reza, de caminhos tão longe cheios de pedra e areia. 

Joana D’arc a frente do campo de batalha, elmo a cabeça, lança ao ombro. Olhar no adiante velava a parede frontal da sala. Na paralela, um biscuit exibia uma manada de touros vermelhos, tão artesanal, tão rústico que até hoje dói. Um pequeno corredor separado da sala por um pequeno declive no chão, e a manada de netos de minha vó, por ali deslizava e brincava. O corredor acessava a ínfima cozinha. Corredor e cozinha tinham piso revestido de tijolos de barro em tons pastel. Engraçados, lembravam na cor e no formato, grandes bolachões dos que a gente comprava nas bodegas e padarias, e que nunca ficavam velhos. O teto da casa era tão baixo que qualquer homem mediano, bastaria estender a mão à cima da cabeça, e tocaria os caibros lenhosos do telhado irregular. O fogão a carvão, não lembro um só dia que ao entrar ali, não tivesse uma panela de estanho decorada por duas tonalidades de tinta esmaltada, a parte do fundo de vermelho, e da metade para cima amarelo, fumegando. Isso ficaria para sempre impresso na minha cabeça. Fumaça plúmbea se misturando com o fumo azulado do cachimbo de minha vó. E a casa inteira de certo a ouviria cantar cantiga indígena de quando menina e misturava palavras y-hatê e português. E que tanto e tanto lembravam as cantigas de ninar de Inácia, a preta Bá que me embalou em criança. E a cantiga carregada de ameaças, dizia de boi da cara preta, de bicho papão, e de lá de cima dos telhados.

No ano de 32 minha mãe contava com seis anos de idade. Aquele,  fora um ano de muita seca. Estiagem medonha. Castigos imposto ao Faraó do Egito por ter perseguido o povo hebreu, veio se repetir no nosso sertão. Aridez severa, pessoas morriam de fome. De nada valia dobrões de ouro guardados na burrinha, o vil metal de nada servia onde escasseara o precioso líquido do céu que possibilitava o alimento da terra. Dos frutos agropastoris vivia minha parentela. Naquele dia estavam todos na casa da roça. Ali se encontrava minha vó Amância, cujo nome indígena vem de A-man-tyá, que significa “senhora da chuva”. Avô Thomaz, homem pacato, sereno, nunca ninguém viria de humor alterado. Exercia também a profissão de barbeiro. Enquanto cultivavam a mãe terra. E viram um tumulto, pequena aglomeração na porta da casa da rua. Isso era vista como daqui lá longe. Um primo de minha mãe fora pedir socorro, acabou desmaiando de fome, na porta da casa de minha vó. Na terra do sol poente o sertão euclidiano, com todas pinceladas de angústia que aquele escritor testemunhara, eles viveram. As lamúrias e penúria. Gonzaga mais tarde melodiaria o lamento do sertanejo. “Senhor perdoa esse pobre coitado que de joelho rezou um bocado.”

Ao lado do quarto de minha vó ficava a dispensa. O quarto dos mistérios para os netos. Proibidos éramos de lá entrar. O escuro se fazia ali, ainda que do lado de fora estivesse o maior solão, lá dentro permanecia uma bolha impetrável de escuro. Tão fluída, flutuava e dava medo, dava pra sentir a gélida aura que dali emanava. Arrepios ao ter que entrar lá. Hoje sei que ali permaneciam, os espíritos dos antepassados de minha vó, Minha “grande mãe”. Cuja mãe morrera cedo, de complicações no parto. Seu padrasto, um índio legítimo. Índio, não tinha pena de ninguém, a vida que levavam, endurecia seu coração. Assim disse minha mãe. E meu avô barbeiro cortava o cabelo das filhas quando lhe aprouvesse, bem como não permitia que cortassem por conta própria, mesmo depois que adquiriram a capacidade de discernir o que queriam. E as meninas pareciam presas, as músicas de roda que falavam de samba, de crioulas, e de bacia areada com sabão.

Minha mãe foi menina de uma irmã só, que se chamava Maura, que um dia descobriria que o nome Maura viria de amarga. Maura sonhava em ser artista do rádio. Sonhava um dia ir pra São Paulo cantar numa emissora de rádio. Melodiava canções de Chiquinha Gonzaga e Isaurinha Garcia. E a vizinhança parava para ouvi-la. Aconselhavam-na seguir carreira. E ela simplesmente esperava, um dia seria cantora. Minha mãe conheceu o caminho da igreja, descobriu que o caminho da igreja lhe oportunizava sair de casa. Cantar as músicas sacras. Cidadezinha, nunca tem muitos atrativos. Em dia de feira, da janela, olhar os bêbados que voltavam da feira, alguns vinha cantarolando, músicas de Vicente Celestino, vivendo em tempo real o personagem. Se natal a única diversão era ir aos currupios um carrossel rústico. Na praça ouvir os tocadores de pífano, depois da novena. Acompanhar o leilão. Assistir o alto do Natal onde Maura fazia papel de uma preta frívola, caricata. Mambembe fazia rir a todos com seus trejeitos. No seio daquela família Deus conceberia de nascer um menino, e minha mãe sugeriu que colocasse o nome de Dorival porque tinha um livreto com as músicas de Dorival Caymmi. “O mar quando quebra na praia é bonito”.

E o mundo rodopiou feito pião feito de goiabeira e que só rodava na ponteira, na palma da mão dos meninos e meninas que iam pelas ruas, Rua da Assembléia onde morava minha vó. E  corriam, corriam aqueles meninos e meninas até se cansarem, e exaustos cairiam na areia do olho d’água que embalariam seus sonhos. Sonhos de velhos navegantes que vão navegar por águas nunca dantes navegadas. Lugares carregados de mistérios onde são sepultadas as músicas, e os sonhos de velhas crianças que queiram ser artista. Lugares aonde são enterradas toda vida, a vida toda, sempre e sempre... Quando morre uma canção.


Fabio Campos  

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